Temos tendência a dividir desgraças de um lado e honras do outro, pobrezas e
riquezas, feiuras e belezas, de preferência emparelhá-las bem e reunir de um
lado a perfeição, do outro a aberração. Arrumamos a pobreza na desgraça feia, e
enaltecemos a honra da beleza e da riqueza, nada mais errado, mas tão
entranhado nas gentes. A menina loira, por exemplo, linda e de olhos verdes,
que chispa má educação, diria até loucura, por todos os ângulos do corpo, é
extraordinariamente estranha. Olha para mim e deita lume, corre para a rua e
exala distúrbio, regressa, com ânsias fortes de cá chegar. No caminho descontrola
as pernas esbeltas, despenteia os cabelos presos no gancho, gesticula, efusiva,
com umas mãos arranjadas, cor de sangue, seriam quase perfeitas não fosse a
urgência dos gestos. O sorriso foi engolido pela distracção dos sentidos, a
limpidez da maquilhagem desmanchou-se, a serenidade nunca lha vi, a formosura
encontrava-se tingida de preto, encoberta por uma nuvem de pó, comida por uma aflição
imprópria, a não ser que a enquadrássemos num qualquer âmbito externo de
desesperação (ou numa interna insanidade, pois claro). Somos injustos,
vulgarmente levianos, sentimos o direito de opinar e ordenar. Gostamos de
compartimentar o que nos faz sentido, de julgar que um fraco pode muito bem ser
infeliz, de intencionar que o inteligente chegará sempre tão longe, de achar que o endinheirado merece tudo quanto é bom. Estamos ao
engano, não estamos mais do que ao engano, a linearidade não existe e uma
beldade pode ser louca, sim. Tal como um enfermo pode atingir a tranquilidade, um génio pode ser um zero à esquerda no que toca à emoção, um apaixonado pode não saber ler nem escrever, e um necessitado pode viver sempre contente.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
terça-feira, 30 de setembro de 2014
domingo, 28 de setembro de 2014
escrever
Não é que isso interesse por aí além, mas por vezes dou por mim a pensar para quem escrevo. Das opções, poucas mas importantes, estou eu e o resto do mundo, qual delas a mais significativa. Debruçando-me apenas nos dados relevantes, apuro que se escrevesse só para mim teria um diário. Ou escreveria num livro de notas, um caderno que coubesse na minha mala de mão, rabiscos ou garatujas inconsequentes de quem despeja o lixo, as inconstâncias ou as ideias brilhantes. Mas por outro lado não posso deixar de considerar que se escrevesse para o mundo escreveria de outra forma. Escreveria bonito, de coisas bonitas, de factos bonitos. Entrando na profundidade da escrita, chego ao cerne que responde a cada uma das minhas questões. Escrevo para mim mesma e para os outros, mas com distintas orientações. Escrevo para soltar, mas o vazio de um lugar fechado não me chega. Escrevo para arrumar, mas o silêncio escuro de um caderno pode não ser suficiente. Escrevo para transmitir-me, mas as linhas escuras e sombrias cheiram a mofo. Concluo o óbvio, escrevo primeiro para mim, depois para o mundo, e por fim para mim outra vez, dado que não há acto sem intenção, comportamento sem direcção, não há dádiva pura e dura, genuína, sem ponta de interesse ou carência de alcançar alguém. O facto de desconhecermos o ponto exacto onde chegamos, é a magia que nos faz continuar. É o que nos assusta e o que nos impele, uma fundamento patente na escrita, patente na vida, patente no amor.
sábado, 27 de setembro de 2014
sexta-feira, 26 de setembro de 2014
agricultura
Por vezes não consigo entender a lógica do mundo. No meu humilde parecer, francamente restrito, a natureza deveria secar alguns ventres, apagar algumas vozes, matar alguns gestos. Em vez disso fertiliza-os e dissemina incoerência, como quem planta um milheiral.
quarta-feira, 24 de setembro de 2014
saber
Por vezes acho piada ao mundo doutorado que encontro por aí. Ao sapateiro indignado que sabe muito de política, ao professor interessado que conhece a fundo o ensino especial, ao clínico geral que é master em psiquiatria, ao povo no global, que adora a expressão "de médicos e de loucos todos temos um pouco", com especial incidência na medicina, claro, por alguma coisa a loucura aparece sempre no final. Nessas alturas apetece-me rir e perguntar aos sábios onde arranjam tanta sabedoria, que livros lêem, que caminhos percorrem, que leis escutam, que multidão analisam. Nunca chego a tanto, limito-me a ler, a ouvir, a tentar perceber o porquê de tanta sapiência a céu aberto ainda não ter alcançado o efeito desejado. Depois estanco no limite da minha ignorância, pois claro, jamais me estará ao alcance perceber a fundo os fundamentos de grandeza de quem me cerca. Bem vista as coisas, e curiosa que sou nestes assuntos, arriscaria dizer que na maioria das vezes nem o próprio sabe, para que quer tanto saber.
terça-feira, 23 de setembro de 2014
starlight
(Foi hoje pela manhã que a ouvi como se fosse a primeira vez. Vá saber-se o porquê mas não os ouvia há muito, acho que quase me tinha esquecido deles. Como, como terei sido capaz de quase esquecê-los?)
PS: Uma vida sem música é como uma casa vazia.
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
fado
Trouxe-me a notícia de que foi aos fados. A festa da guitarra portuguesa geme-lhe nas veias tal e qual o grito lhe escapa da voz, mais ou menos no timbre do fadista, pela noite afora, na cadência impaciente de um corpo que se desfaz. Sempre gostou de ver cantar tristeza, tal como sempre apreciou quem morre de amor, quem gesticula prazer, quem se desmancha no grito surdo da solidão. Desde há muito que a indiferença a indispõe. Indispõe-lhe o estômago, indispõe-lhe a mente, indispõe-lhe o corpo e as reacções, chorilhos de acções programadas que por vezes preferia matar. É que lembra-se de ser pequenina. Lembra-se de ser pequenina e da indiferença da mãe ser o suficiente para que o pai aparecesse vestido de monstro e arruinasse a casa, na calada da noite, também ela indiferente. Corria seguidinha, minuto sobre minuto, hora sobre hora, uma atrás da outra. Uma vez espreitou pela janela e era quase madrugada. Na casa em frente alguém a mirava, impávido, como se o cigarro aceso fosse a única coisa possível de se fazer. De manhã era tudo muito mais claro do que a água que pingava do beiral. O rosto da mãe sorria, uma festa na cara antes de ir para a escola, a noite estava longe de aparecer, faltavam horas, era mais logo. Começou cedo, muito cedo a saber que o mais logo chega tão depressa. Nessa altura, lembra-se bem, escolheu um boneco e levo-o consigo. Fez-lhe festas todo o dia e jurou a si mesma que jamais o abandonaria, se ele também não a abandonasse. O boneco, calado e diferente, colou-se a ela com toda a força do mundo. A indiferença, diz-me de olhos rasos, é uma dor que alguns seres inanimados podem apagar, e que alguns seres vivos podem acender. Sei disso, digo-lhe calmamente. Os fados, continua, os fados gritam ao mundo o que o corpo cala, embrulham-se num xaile e esbracejam, espremem a guitarra e aparecem, em cada esquininha, em cada voz. Jamais lhe serei indiferente, e perdoo-lhe a preferência pela noite. A noite, minha inimiga, por vezes também é minha.
Fiz silêncio, nem sempre é pertinente. Mas ali cantava-se o fado.
nós
Há dias em que deixo de ser mulher para pensar que sou um disco rígido, formatado, tabelado, certinho, direitinho. Nesses dias acordo cedo, pela fresca, engulo cereais saudáveis, saio de casa e respiro o ar limpo da manhã. Jamais passarei pelo pão branco, esqueço-me do mil folhas espalmado e do palmier coberto, entro no talho e trago uns insípidos bifes de frango, espreito a peixeira da praça e escolho uns peixes frescos, para degustar com salada verde. Nada disso me irrita. Sequer me perturba a montra carregada de roupa de Outono, porque só tenho um corpo e já muitos casacos, dois simples pés e um número mais do que suficiente de pares de botas, muitos lenços e um só pescoço. Em casa, tudo em ordem. Arrumo os sapatos no sítio (não vá alguém tropeçar e partir uma perna), o frigorífico respira bem estar, não há fruta engelhada, legumes secos, batatas com borboletas ou bolinhos com bolor. As mantas da sala estão arrumadas e a gata não se esconde lá por baixo por forma a desorientar o espaço. As almofadas não se encontram a dormir no chão, não há lenços ranhosos na mesinha, não se vislumbram contas espalhadas à espera de pagamento, trocos de um cêntimo, envelopes rasgados, migalhas de pão. A Teresa está limpa. O Óscar nada lampeiro no aquário de vidro, os livros estão ordenados, não há material de avaliação psicológica espalhado pela sala, desenhos projectivos ou tabelas de aferição. Mas que perfeição.
Depois há outros dias em que sou mulher e em que tudo se inverte. Em que nada me parece chegar, em que tudo me parece apetecer, em que a desordem, a malvada da desordem se instala cá em casa com pés pesados, capazes de arrastar animais comportados, filhos arrumados, instintos orientados. A cada canto choco com um papel, em cada esquina tropeço numa sandália, em cada legume descubro uma lagarta, em cada trapo encontro um vinco. Correr e zelar não me adianta grande coisa, porque na verdade a orientação é mais interna do que externa, coisa típica do obsessivo obstinado. Na realidade, bem vistas as coisas, nunca está tudo perfeito nem completamente desorientado, e nós somos tanto a nossa realidade. Por causa disso também me dou ao luxo de mandar à fava o calendário. Com a inerente consequência de ainda não ter descoberto ao certo, se hoje está um dia de Outono ou um dia de Inverno.
domingo, 21 de setembro de 2014
ovação
Quando durmo sestas acordo com uma dor nos sentidos. Necessito de acalmá-los, de sossegá-los, de colocá-los de novo no ponto certo da precisão. Hoje foi um bolo de chocolate, congelado há muito, que me trouxe de regresso ao mundo real. Daí a minha ovação ao microondas, a máquina que me permitiu comê-lo em escassos minutos, morno, acabadinho de fazer. A dose foi excessiva, é um facto, a fatia generosa, a gula impetuosa. Dessa parte, confesso, desliguei. Há pecados perante as quais desisto de contabilizar consequências, ainda antes de começar a cometê-los.
dia internacional da paz
( fotografia retirada do google)
(se esquecermos todos os outros para generalizar este, ganharemos.)
sexta-feira, 19 de setembro de 2014
imaginar
Longe vão os tempos em que rumava com o meu filho às salas de cinema a fim de comer pipocas, beber coca-cola e assistir a um bom filme de desenho animado. Cá dentro guardo todos os "Toy Story" ( uma das melhores animações de sempre), algumas divertidas "Idade do Gelo", muitos fabulosos "Madagáscar", uns dois "Shrek", um "Up Altamente" de derreter o coração, uns "Rio" deliciosos, dois "Gru Mal Disposto", bem mais interessantes do que o nome nos faz imaginar. Guardo ainda perus revoltados, dragões treinados, meninas indomáveis e outros tantos dos quais já nem lembro o nome, vistos de olhos aberto ou meio fechados, dependia da hora, do dia, da semana, do cansaço. Hoje já não liga à minha pergunta do, vamos ao cinema?, a não ser que o pacote traga Transformers ou outro de carácter semelhante, enormes monstruosidades fantasmagóricas, felizmente inexistentes, capazes de nos desassossegar duas horas seguidinhas, de ficar com uma pipoca atravessada na garganta por algum susto maior, de nos impedir de fechar os olhos, tal o barulho da maquinaria em acção. Nem mesmo a sedução do hambúrguer, remate final sem o qual não vivíamos, o faz sentar-se comigo num lugar onde a animação ainda existe, e do qual eu tenho saudades. Não que a minha imaginação não viva fora de uma sala de cinema, que vive. Mas quem já foi ao cinema com uma criança sabe que em nenhum outro lugar é igual (as crianças e a imaginação fazem do mundo um lugar tão melhor).
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
Dr. Scholl
Uma unha de um pé. Uma unha de um pé é tudo o que lhe basta para que o resto do corpo doa, não há direito. Explica ao Senhor Doutor, que perante a impaciência a questiona de forma alargada sobre distintas questões. No final, prematuramente julga ela, mas com um ar deveras consubstanciado, afirma ela também, atira-lhe à cara com uma menopausa precoce. Sabe como é, não vai para nova... A unha passou a ser quase um pormenor; o resto não é que a assuste, mas verdade seja dita, mete respeito. Logo depois levanta umas palmilhas coloridas do filho numa loja de ortopedia. Tropeça na entrada, sempre foi desajeitada, eventualmente (é quase certo) desde que nasceu. O senhor do balcão percebe e tenta vender-lhe uns Dr. Scholl, são um conforto, uma segurança a andar, hoje até bonitos já são... Nessa altura, do alto dos seus saltos, via-se, começou a ficar perturbada. Não lhe ocorreu mais nada senão contrariar o que o médico lhe tinha diagnosticado previamente, e controlou a irritação (vencer é sempre o melhor caminho). Foi o que valeu ao vendedor, uma simpatia de pessoa, um profissional atento e prestável. Merecia lá o pobre tamanha indignação.
onde?
Gosto da intenção sadia de quem me cerca. Do cuidado genuíno de quem percebe que o que me conforta é um chocolate gelado e não um chá quente (não posso com camomilas), de quem descobre que prefiro uma manta velha e macia a um casaco engomado, de quem compreende que há momentos em que profiro palavras a mais, apenas por falta de gestos úteis (adoro a lei da compensação). Muitas vezes, por amor, predicado ou atenção, descobrem-me até aos fundilhos da alma. Desnudam-me os medos, as fragilidades, delineiam a pincel fino as arestas fechadas, delimitam as fronteiras, precisamente, sem milímetro de falha ou hesitação. Não raras vezes, falham redondamente. Nelas, não sei a que mecanismo me socorrer, a que fundamento me agarrar, em que teoria me encostar. Nelas, quando a insalubridade da consciência não se higieniza com a singela vontade de quem para todos os efeitos, sabe de nós.
terça-feira, 16 de setembro de 2014
modernices
Não sei o que seria de mim sem tecnologia. Já não me lembro do que é ter uma televisão de dois canais que iniciam a emissão ao final do dia, que dão meia hora de desenhos animados para depois mergulharem no fosso negro do noticiário, sempre em alto e bom som, a barulheira da criançada era uma coisa tremenda. Já não sei o que é viver num mundo onde não existem clics mágicos que nos colocam instantaneamente, tal e qual gelatina royal, em conexão com a rua ao lado, a casa em frente, a cidade distante ou o outro lado do mundo. Hoje as crianças circulam na rua com telemóveis na mão, preciosos localizadores de nos dão informação exacta no minuto da preocupação, no instante nervoso da dúvida, na hora do entardecer. Era eu miúda e desaparecia no fim da escola. Qual dez anos, cinco ou seis, um pão com tulicreme, uma bicicleta de cross e uns quantos e quantas iguais a mim. Havia poços no chão a descoberto, carros na estrada a desviarem a passagem, montes, vales e rios de água gelada onde nascia agrião. Sabiam lá de mim até que Deus quisesse. Anoitecesse e se o ouvido estivesse afinado, limpo de ceras e ranhos que entopem do nariz até ao último neurónio do corpo, e era escutar Carmina, bem alto do cimo do terraço, naaaaaaaa ouuuuuuuveeeeeeessssss??????????....... Ouvia, às vezes ouvia. Outras não, e era o relógio das vacas que regressavam do pasto que me lembravam que era hora de recolher. Nunca havia preocupação com a minha ausência. A aldeia era limpa, os rios corriam sãos, os poços serviam o propósito da rega, sacada a balde fio acima, não devoravam meninos na escuridão. Hoje há muitos mais perigos a cercar meninos. Não se contam histórias de papões, poderia traumatizar as criancinhas, mas controlam-se os passos das ditas até que as mesmas sacudam os adultos como quem sacode o pó do cansaço. Todas necessitam de estar permanentemente monitorizadas, controladas, localizadas, a excepção não existe e a liberdade é uma cor estranha que talvez jamais se encontre na loucura do horizonte. Percebo tudo, não sei o que seria de mim sem a tecnologia que nos guia até ao outro que nos aquieta. Faço parte da geração de pais que se assusta (qualquer coisa) com a ausência, com o espaço demasiado aberto, com as horas sem relógio de pulso, aquelas que nos nascem no corpo sem demais indicação. Mas de uma coisa eu tenho quase a certeza. O meu filho, uma criança controlada pelo mundo ( talvez não muito, mas sempre qualquer coisa), certamente não irá saber o que é pão com chocolate e formigas. Se calhar nunca descobrirá se o ploc da sua pedra é o mais sonoro do poço da horta, talvez nunca demore muito, para me sossegar a preocupação. Não será menos feliz por isso, quero acreditar, será só feliz de outra maneira, mais tecnológica, muito mais à frente. Coisas dos tempos modernos.
segunda-feira, 15 de setembro de 2014
círculos
Hoje, especialmente, estou com todas as crianças que chegam ou voltam à escola (e com uma ou outra, de forma ainda mais especial). Nestes dias, como de resto em todos os outros, é importante repensar o papel activo de cada um de nós, em particular pais, avós, professores e todos os outros membros da comunidade educativa. Elas vêm de nós, mas nós seremos delas, daqui a uns anos. Nunca nunca, se esqueçam disso.*
domingo, 14 de setembro de 2014
equilíbrio
( Imagem retirada do google)
Sempre soube que a vida é feita de equilíbrios, de contrabalanços, de harmonias. Por isso sabia bem que não deveria sair para o cabeleireiro com uma leitura pesada no saco, mas a espera era longa e a GQ, sempre presente no salão, não chega para me entreter as vistas (lamento, estou fartinha da Scarlett Johansson). Sentei-me e folheei as folhas amareladas, absorvi umas letras, digeri um pouco de história, numa dada altura apercebi-me de que a empreitada descrita ia demorar a construir, ia ser dura de erguer, ia custar a parir (obras grandes têm sempre este malvado senão). Ao fim de uma hora naquilo, enquanto o cabelo tingia e a minha força se empenhava em me manter à parte da conversa alheia, sonora e animada, chega a tesoura. Uma senhora tesoura, devo salientar, basta encostá-la de mansinho e o cabelo já foi. Olhei para o espelho e senti-me pesada. Sacudi os cabelos para trás, mirei-me de lado como uma desconhecida, fitei os artistas de arma em riste e anui que se entretivessem, outra longa hora, mais coisa menos coisa. Ainda não perdi a força mas lembrei Sansão, e confesso que tive medo que tal desgraça acontecesse. Foi do livro, não tenho dúvidas, o acesso só pode ter nascido do livro, demasiado pesado para se aguentar com meras manobras de manutenção.
(Ou do facto de, bem vistas as coisas, ter uma pontinha de inveja da Scarlett Johansson.)
sábado, 13 de setembro de 2014
o perdão
Ontem um menino trouxe-me um texto retirado da net que defendia a prescrição dos crimes ao coração. Mais ou menos como na justiça, na qual os anos servem para apagar o que de mal se fez ao mundo. Desenhou de seguida uma série de desenhos aos quais juntou um conto onde um casal dá tiros um ao outro. No final da história estão ambos de mãos dadas, e o menino defende por si que o perdão é o que nos salva. À parte da inocência infantil, apeteceu-me acreditar cegamente na realidade sob a qual a sua crença incidia. Apeteceu-me procurar a história dos crimes do coração, lê-la de trás para a frente e da frente para trás, perceber até que ponto temos reais mecanismos para induzir essa acção de prescrição que poderia ser de dez anos, quinze anos, vinte anos. Nos meandros primários da nossa estrutura mental, não encontrei cabimento para a teoria. Pareceu-me rudimentar, limitada, reduzida a uma simples regra de precisão matemática, hoje dói, amanhã já não. Porém, à medida que aprofundei o inconsciente e me deixei envolver nos seus territórios secretos, considerei que a validade da dita, ainda que limitada, pode bem ser considerada. Talvez isso justifique uma criança maltratada ser capaz de amar, uma mulher traída ser capaz de acreditar, um velho abandonado ser capaz de gostar. Curar feridas abertas de corações destroçados cansa, e perdoar todos os dias também, será eventualmente por isso que vão prescrevendo cada um a seu tempo, sem critério definido em termos de exactidão, sem regras claras, por vezes até em contra-mão. Um dia, tenho para mim, lá mais para o fim do caminho, deveremos ser capazes de os eliminar mais depressa. Deve ser nessa altura que quase nos morre a desilusão.
( Um obrigada especial ao menino que me colocou a pensar sobre o assunto com este afinco. Há sítios onde as paredes escuras do tempo se instalam firmes, e um mote singelo sobre uma coisa boa é uma pérola preciosa, capaz de me enfeitar o espírito, afagar o corpo, dar-me a mão.)
sexta-feira, 12 de setembro de 2014
fim
Sem faltas modéstias, sou genuína. Ainda se ouve dizer que é uma qualidade, que revela um bom carácter, que traduz personalidade consistente, que transmite segurança. Temo que seja relativo no proveito próprio, e considero-a um excelente predicado apenas em questões de princípio social e de consciência. No mundo que eu conheço para se viver bem é preciso agradar a gregos e a troianos, mostrar encantamento mesmo por quem não se tem, encostar ao lado dos que sabemos serem importantes, ainda que isso nos custe em esforço. Uma das minhas maiores dificuldades actuais é ensinar ao meu filho o porquê de eu ainda considerar a genuinidade uma coisa boa: cada vez mais as pessoas são um meio e não um fim, não valem por si mas pelo que nos dão, não constituem um valor mas um trampolim de subida, um puro delírio, pseudo-evolução. No topo de tudo, houvesse varinha de condão, e era transformar pessoas em pequenas moscas capazes de escutar. Nos minutos seguintes desabavam as casas, desabavam as ruas, desabavam as cidades e desabavam os países, desabava o mundo e erguia-se a guerra onde morreríamos todos, genuínos incluídos, esmagados pela fúria da constatação.
(A minha avó sempre me ensinou que magia só nos livros e nas crianças. Sendo assim, continuemos.)
quinta-feira, 11 de setembro de 2014
quarta-feira, 10 de setembro de 2014
rentrée
Faço retrospectivas vezes de mais, raramente no último dia do ano. Porque há muitos outros dias em que me apetece fazê-las, em que ameaço os erros e valorizo as virtudes, em que planeio mudanças e reitero a importância de perpetuar alguns dos meus hábitos de vida saudáveis. O inicio do ano lectivo, por exemplo, marca-me sempre, a mim, que não tenho directamente a ver com o ensino. Marca normalmente um final de férias e de um período de descanso, coisa que me acontece raras vezes no ano, dado que passo semanas sem conseguir pegar num livro que me conte uma história, dias inteiros com milhões de coisas na cabeça incapaz de voar, noites completas em que depois das prioridades o corpo já não quer as séries que me distraem do mundo, e eu confesso, preciso de me distrair do mundo. Ainda ontem vim de férias e a minha agenda afigura-se-me como a minha maior inimiga. Apetece-me apagá-la, mandá-la ao ar e esperar que ela morra, fingir-me a mim de morta e fazer as pessoas acreditarem que durante as ditas desapareci, engolida por uma escarpa ventosa, algures em sítio nenhum. Não gosto de regressos e de encontrar iguais as minhas dificuldades. Não aprecio o sentimento de impotência que me faz questionar a minha resiliência, a minha inteligência, a minha competência. Talvez seja por isso que por vezes me desacredito. Nestes dias, felizmente poucos dias, não há quem me faça mudar de sentir. Não há quem tente, ou no mínimo, não há quem consiga. Daqui a pouco tempo, de novo submersa no ritmo da loucura, sosseguem, estarei em mim outra vez.
terça-feira, 9 de setembro de 2014
...
( Foto de Sean Connery, retirada do google.)
(De recantos perfeitos está o mundo cheio.)
echarpe
Não sei ao certo quanto tempo demorei a perceber que na essência somos todos iguais. Uma franca limitação do meu intelecto, só isso justifica o nascer tardio deste facto dentro de mim, uma das mais óbvias manifestações da natureza humana. Talvez tenha sido por esta demora que por vezes me espantei quando encontrei palavras tão sinónimas de mim mesma. Textos que eu poderia ter escrito, assim houvesse a desenvoltura da escrita, palavras que eu poderia ter bramado, assim me faltasse a vergonha na hora do grito, letras que eu mesma conseguiria ter reunido, tal e qual o autor as coloca, exactamente pela mesma ordem, rigorosamente no mesmo local, precisamente naquele minuto. No restante temos o que se assemelha a um acessório, o que não significa, claro, pouca importância. Constitui o colar de pérolas do crescimento, o verniz encarnado da educação, o trajo, que pode ser toalete ou toilette, dependendo da vocação, da presunção e da ambição. A essência, essa, a gema da questão e a génese do exercício principal, é sempre igual, nunca se esqueçam disso. Como tal não aprecio grandemente que me tentem impingir a outra convicta estória, pequena mentira, tudo pura ficção. Medo é igual em toda a gente, nascer é surgir, morrer é partir, crescer é ser. Ódio será sempre raiva, e amor acarretará eternamente a mais profunda ligação. O que se julga mais enfeitado é sempre igual ao presumível desgraçado, na hora de comer, na ânsia de consumar, no infortúnio de adoecer, na urgência de se aliviar.
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