Temos tendência a dividir desgraças de um lado e honras do outro, pobrezas e
riquezas, feiuras e belezas, de preferência emparelhá-las bem e reunir de um
lado a perfeição, do outro a aberração. Arrumamos a pobreza na desgraça feia, e
enaltecemos a honra da beleza e da riqueza, nada mais errado, mas tão
entranhado nas gentes. A menina loira, por exemplo, linda e de olhos verdes,
que chispa má educação, diria até loucura, por todos os ângulos do corpo, é
extraordinariamente estranha. Olha para mim e deita lume, corre para a rua e
exala distúrbio, regressa, com ânsias fortes de cá chegar. No caminho descontrola
as pernas esbeltas, despenteia os cabelos presos no gancho, gesticula, efusiva,
com umas mãos arranjadas, cor de sangue, seriam quase perfeitas não fosse a
urgência dos gestos. O sorriso foi engolido pela distracção dos sentidos, a
limpidez da maquilhagem desmanchou-se, a serenidade nunca lha vi, a formosura
encontrava-se tingida de preto, encoberta por uma nuvem de pó, comida por uma aflição
imprópria, a não ser que a enquadrássemos num qualquer âmbito externo de
desesperação (ou numa interna insanidade, pois claro). Somos injustos,
vulgarmente levianos, sentimos o direito de opinar e ordenar. Gostamos de
compartimentar o que nos faz sentido, de julgar que um fraco pode muito bem ser
infeliz, de intencionar que o inteligente chegará sempre tão longe, de achar que o endinheirado merece tudo quanto é bom. Estamos ao
engano, não estamos mais do que ao engano, a linearidade não existe e uma
beldade pode ser louca, sim. Tal como um enfermo pode atingir a tranquilidade, um génio pode ser um zero à esquerda no que toca à emoção, um apaixonado pode não saber ler nem escrever, e um necessitado pode viver sempre contente.
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