terça-feira, 30 de setembro de 2014

arrumações de adjectivos relativos

Temos tendência a dividir desgraças de um lado e honras do outro, pobrezas e riquezas, feiuras e belezas, de preferência emparelhá-las bem e reunir de um lado a perfeição, do outro a aberração. Arrumamos a pobreza na desgraça feia, e enaltecemos a honra da beleza e da riqueza, nada mais errado, mas tão entranhado nas gentes. A menina loira, por exemplo, linda e de olhos verdes, que chispa má educação, diria até loucura, por todos os ângulos do corpo, é extraordinariamente estranha. Olha para mim e deita lume, corre para a rua e exala distúrbio, regressa, com ânsias fortes de cá chegar. No caminho descontrola as pernas esbeltas, despenteia os cabelos presos no gancho, gesticula, efusiva, com umas mãos arranjadas, cor de sangue, seriam quase perfeitas não fosse a urgência dos gestos. O sorriso foi engolido pela distracção dos sentidos, a limpidez da maquilhagem desmanchou-se, a serenidade nunca lha vi, a formosura encontrava-se tingida de preto, encoberta por uma nuvem de pó, comida por uma aflição imprópria, a não ser que a enquadrássemos num qualquer âmbito externo de desesperação (ou numa interna insanidade, pois claro). Somos injustos, vulgarmente levianos, sentimos o direito de opinar e ordenar. Gostamos de compartimentar o que nos faz sentido, de julgar que um fraco pode muito bem ser infeliz, de intencionar que o inteligente chegará sempre tão longe, de achar que o endinheirado merece tudo quanto é bom. Estamos ao engano, não estamos mais do que ao engano, a linearidade não existe e uma beldade pode ser louca, sim. Tal como um enfermo pode atingir a tranquilidade, um génio pode ser um zero à esquerda no que toca à emoção, um apaixonado pode não saber ler nem escrever, e um necessitado pode viver sempre contente. 

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