terça-feira, 23 de outubro de 2012

Batata doce

Agora são as batatas doces que assam no forno e deixam a casa inundada de um cheiro bom que convida ao palato. E é só. Em tempos, lembro-me perfeitamente, eram esmagadas com um garfo que as reduzia a um puré delicioso que serviria para a confecção das broas dos santos, que estão quase quase aí. Agora compro-as porque já não tenho quem me as faça. Há coisas eternas que quase se esquecem no tempo, porque as modernidades lhe atenuam a existência. Nem serão apenas elas, será eventualmente a falta das gentes que as vivia, muito a fundo e sustentadas nos corpos, o único sítio onde tudo pode viver e acontecer. Aqui, por exemplo, já não vivem as mãos que faziam os coscurões grossos de massa lêveda, que se tendiam com rolo de madeira na mesa velha da cozinha. Já não vivem os braços que os amassavam, horas a fio, benzindos a sumo de laranja e água ardente, a massa que depois descansaria entre o sossego a reza e o calor, no quarto escuro do fundo da casa. Já  vivem mirradas as outras que esmagavam a batata doce e tenra, que se transformaria em broa macia e gostosa que amolgava em cada dentada. O forno, o próprio forno da velha do lenço, deve de ter morrido com ela, no vazio do desuso e da solidão. As tradições dos povos não morrem com o tempo, morrem com os corpos que as viviam. As que fizermos viver viverão para além de tudo, haja-nos vontade e empenho, aqueles que por vezes nos fogem e nos deixam em ares de contragosto. Momentâneo. Valorizamos outras grandezas, outras questões, é o síndrome do aperfeiçoamento que nos vive nos corpos e do qual não nos queremos libertar, assumidamente. Nem sei se tal seria possível, tendo em conta que se considera que o retrocesso é sempre o inverso da evolução.

(Mas depois por vezes há dias em que a memória nos resvala para dentro do corpo e em que uma certa nostalgia nos faz lembrar que existem cheiros e gostos insubstituíveis, como o do ovo batido, por exemplo, misturado com a massa da broa, antes e depois da entrada no forno. O meu filho, daqui a anos, lembrará apenas a batata assada no forno da cozinha, nada de lenha, que não é precisa, enquanto no fogão da altura se cheirará outra coisa qualquer. Melhor, ou no mínimo, mais evoluída.) 


4 comentários:

  1. Adoro o cheiro delas no forno e de comer ainda morninhas! Hum... fiquei com vontade de comer uma!

    ResponderEliminar
  2. :) Por cá, o que se queria era mesmo a broa...

    ResponderEliminar
  3. Ai que me fez lembrar a cevada da minha bisavó, bem que tento recriá-la, fazer com o pó, deixar assentar, etc, mas não tem o mesmo gosto, lá está falta-lhe o forno de lenha, a cafeteira já gasta que servia exclusivamente para aquele fim e as mãos que a serviam.

    ResponderEliminar
  4. Isso Cat :) E a dedicação que punham nelas? Essa, juro, morreu mais do que todas as outras...

    ResponderEliminar

Deixar um sorriso...


Seguidores