sexta-feira, 19 de outubro de 2012

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Lembro-me dela seca e baixa, metro e meio de gente, mais coisa, menos coisa. Caminhava ao meu lado enquanto me ensinava os nomes das flores, os ciclos da natureza, o que vem antes e o que vem depois. Descrevia-me a sua vida com palavras amargadas por um mundo pequeno demais para a grandeza que reunia no corpo, e tentou depurar-me da minha ingenuidade de criança muito cedo, sem efeitos. Não cabia dentro dela e isso notava-se muito. Usava um lenço que lhe apertava o pescoço e a guardava do sol e do vento, enquanto por dentro uma trança se enrolava em carrapito, desfeito e penteado diariamente, à noite, em frente à santa que lhe guardava os filhos, uns cá, outro lá. O oratório era de madeira envelhecida, enfeitado por um vidro fosco de onde se viam dezenas de retratos, alguns terços, inúmeras orações. Mesmo ao lado morava a arca velha onde se guardavam lençóis de linho branco, onde em tempos se havia salgado carne que se comia cortada em tiras finas e gostosas. No corredor, uma passadeira servia para que eu corresse sem limites até à porta que tinha um degrau de pedra no qual mergulhei vezes sem conta, indo cair directamente nas violetas do jardim. Eram roxas, cheiravam bem. Mesmo à frente a figueira dava uns figos redondos e vistosos que eu comia directamente da árvore, mal se faziam amadurecer. Um dia fizemos uma grande caminhada até um vale que tinha ameixas vermelhas e brancas. Ela apanhava uma a uma, enquanto me contava que a vida era um sítio muito grande onde podemos viver ou apenas estar. Ele passava os dias imerso em pensamentos nos quais nunca consegui entrar. Guardava-se do mundo, dela, de mim, enquanto sorria para dentro e sem ninguém ver, ao olhar o cozido que nascia das mãos magras e compridas da minha bisa. Nesses dias a minha avó chegava invariavelmente na hora do jantar. O cheiro da cozinha amarelecida pelo lume ia comigo para casa dela, entranhado por entre as roupas, os cabelos, o meu sangue. Tudo isso vive apenas cá dentro. As mãos dela, essas, tenho-as no corpo, e que se veja, pouco mais. Sim, é de lá que vêm. Eventualmente ainda, perdidas em mim, as rezas que rezava, todos os dias, para que os santos me guiassem o caminho.

4 comentários:

  1. Tão bonito este texto.
    "a vida era um sítio muito grande onde podemos viver ou apenas estar" :)

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  2. :). E não é que a bisa tinha razão??...

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  3. Lido ao Domingo, este texto é mais saboroso...
    E as tuas mãos, vindas dela, lindas!, não me canso de dizer :)

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  4. Tenho inúmeras memórias doces, sabes? Da minha bisa? Tenho coisas, sim. As mãos, entre outras que não se vêem (Obrigada :)...)

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