terça-feira, 30 de julho de 2013

espinhas

O peixe atravessa-lhe a garganta ressequida por um choro contido e engolido à exaustão de uma vida inteira tocada a pau de marmeleiro. Crava-se-lhe uma espinha grossa que a engasga e a faz expulsar a comida que guardava sob insistência do marido que a sacode e a obriga a comer. O mafarrico chama-lhe uns nomes em surdina, que eu escuto porque os meus ouvidos servem a sua função de forma mui nobre, sempre soube disso desde tenra idade. Não me aquece nem me arrefece nas tarefas dos dias a não ser pontualmente, benesse aniquilada pela sobreposição de informações que dispensava totalmente e que me chegam em torrente, ainda que em pleno exercício da distracção. Chego-o para o lado, transmito-lhe que a recusa dela é muito mais do que fisiológica, que a vontade lhe morreu dentro do corpo mirradinho de meter dó a um valdevinos qualquer. Explico-lhe ao pormenor que a insistência a encolhe ainda mais um bocadinho, lhe aperta a garganta e lhe dificulta a passagem do alimento que a manterá viva de coração até que o pobre obedeça à única ânsia do corpo. Nisto tudo a pobre expulsa uns dentes que caíram no prato que continuou sobre a mesa, inundado de desperdícios envoltos em bocadinhos de carne picada e batatinha cozida com molho de tomate. Ele engelha o nariz e volta as costas às sobras da velhinha que foi sua uma vida inteira e que agora já não lhe obedece ao cajado. Pudesse e abandonava-a, diz-me com os olhos, morrer é uma coisa, mas morrer a contrariá-lo é outra. Quem manda aqui sou eu, prossegue, enquanto lhe afronto os caminhos da ira. Confesso que sempre me deu um gozo maior encarar a fúria de frente. Abraçá-la com os meus braços magros e impotentes e com as minhas mãos reduzidas a ossos e pele. Normalmente a malvada atordoa-se com a afronta, só por momentos suficientes. Logicamente na sequência é colocar a chavinha do mau olhado ao pescoço e andor, que a ruindade sobrevivente é fura vidas e fura corpos, fura casas e fura muros, fura ricos e fura pobres.

( Não me enojam os corpos doentes. Não me enojam os sobejos, os cheiros, as fraquezas ou as podridões. Enoja-me a maldade, a prepotência e o desdém pela dignidade humana, a única pureza que temos até ao fim.) 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

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(Audrey Hepburn)

Há muito que não falo do tempo. Não do meteorológico, mas daquele que utilizamos ou não num proveito qualquer. Usamo-lo sempre, está certo, ainda que possamos nada fazer para tal. Usamo-lo quando discorremos sobre um assunto que ninguém ouve, tanto como quando nos calamos para que o  mundo nos possa ouvir. Analisamos o seu préstimo essencialmente sobre dois domínios completamente distintos. De um lado o nosso próprio proveito, mensurável em algum critério definido, do outro um proveito externo às nossas vontades, que poderá ser profissional, pessoal, familiar, circunstancial, factual, desde que haja algum ganho com o dispêndio cometido. Tendemos globalmente a dar por mal empregue aqueles tempos em que vazamos o espírito e nos ausentamos do mundo, como se deles não dependêssemos enquanto pessoas que somos. Quem de vós não chorou já momentos desses, como se de um desperdício se tratassem, tudo porque não encontram proveito que se quantifique? A unidade de medida subjuga-nos à matemática da sociedade. Porém, a nossa existência enquanto pessoas é excelsamente superior e não se compadece com tamanha objectividade. O porque sim cabe-nos que nem uma luva ajustada até ao cotovelo, uma sublimidade que só visto. Daí partimos para o resto, lugar esse, possivelmente, bem mais objectivo.

sábado, 27 de julho de 2013

(calem-se, calem-se...)

A loucura bate-me à porta sem aviso prévio. Entra, senta-se na cadeira à minha frente, nada de licenças, tudo muito certo, encaro-a como quem encara uma visão mais lúcida do que o céu azul que nos cobre a existência. Olha-me com olhos de gente e escuta-me com gigantes ouvidos antropomórficos. Pede-me que a ajude a compreender-se, vejam só, ele há com cada uma. São pedidos estranhos, mais insanos do que a própria loucura. Disponibilizo o que sei, francamente pouco, eternamente pouco, e tento dizer-lhe de que cor é o fato que retalha em lugar nenhum que exista do lado de fora de si. Bem vistas as coisas brandos esquizofrénicos somos todos, numa realidade paralela e reduzida à capacidade ideada e supostamente salutar. Ora, lembrem-se do castelo, aposto que todos moraram no castelo. Agora imaginemo-nos presos e estaremos quase lá (?). Depois, depois é deixarmo-nos de saltitos graciosos de quem pode muito, só de saber entrar e sair nas vidas dos outros e na sua própria. É que nessa "sanidade" deambulante vive com cada monstro. Calem-se, calem-se, é o que me apetece dizer. 

sexta-feira, 26 de julho de 2013

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Os caminhos acima do chão sempre me deram uma visão privilegiada. Tomei-lhe o gosto em criança, acomodadíssima na carroça bem mais elevada do que o mini amarelo do meu pai. De lá mirava os quintais das vizinhanças e lembrava-me disso, quando já na ida para a faculdade via as casas dos caminhos e os carros lá em baixo. Nessa altura as horas não se podiam perder em descansos e em sonos esquecidos de acontecer, nas noites em que Freud me entrava pelos olhos adentro e me deixava aos soluços curiosos sobre como seria a psicopatologia da vida quotidiana. Agora não me canso com essas coisas. Passa o senhor a perguntar se bebo café, chá ou coca-cola, e eu como o nestlé de leite, não há doce melhor cá neste mundo. Também já não construo realidades ficcionadas enquanto o caminho fica para trás ao mesmo tempo que eu sigo sempre em frente. Ao meu lado umas jovens inglesas partilham fotos no facebook e riem muito. O outro que seguia em frente lia a revista Maria e um diário íntimo que ensinava as mulheres a terem muito mais prazer. Não percebi o interesse dele por terrenos proibidos, apenas autorizados sempre e só quando a mulher quer, o melhor será invariavelmente perguntar-lhe. Acabei a matar o tempo com considerações diversas acerca de pessoas. Há muito tempo que eu descobri que o maior entrave à evolução é o medo de nos conhecermos a nós próprios. Não sei muito bem como é que se dá cabo deste medo, mas poderemos sempre tentar devagarinho, um de cada vez. Depois no seguimento não resisti à saudade e dispus diálogos cogitados à mercê do que me apetece mesmo que seja. Defini horas, locais, pessoa e caminhos sempre vistos de cima, não fosse desordenar a abrangência. Não perdi coisa nenhuma, nem mesmo quando acordei do sonho, a não ser o nestlé que se derreteu no meu vestido, a alegria das moças que tinham parado, a satisfação do rapaz que entretanto arrumara a revista e o orgasmo feminino. Lambi os dedos e olhei o rio que estava em baixo numa nitidez fulminante. Ajeitei os óculos e prossegui a análise iniciada há muito por meandros de uma alma. Um depressivo, está mais do que visto, encontram-se amiúde por aí. Nunca me fartarei da tristeza alheia, estou certíssima disso. Trata muitas vezes uma desilusão clandestina encontrada na consciência da constatação. A ignorância pode sempre ser uma fiel amiga. Viável até ao dia em que o retrocesso teve fim. 

sábado, 13 de julho de 2013

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( há os que sossegam com o tempo e os que apuram o espírito. ora oiçam...)

quinta-feira, 11 de julho de 2013

agora eu, agora tu.

Às vezes penso nas palavras e nas caras, têm socialmente muito a ver umas com as outras. Sempre me irritaram leituras de caras, fracas tentativas de tradução de estados internos. Ora, caras são caras, não são livros abertos. A minha felicidade não se vê crua no meu rosto, a minha vida não me sai toda em gestos, a minha possível solidão não se lê nos meus olhos. Quem arrisca joga um jogo de lotaria sem nunca saber se acerta. A palavra escrita pode ter ainda mais valor, mas também pode não ter. Um beijo escrevinhado pode valer muitos que se guardam sem cabimento nenhum, mas sai só um porque é assim que julgamos soar melhor. Em psicologia gostamos de dizer que os conceitos nascem das palavras ideadas. Nada se constrói no vazio do nada, convenhamos, faz tanto sentido. Não há coisa no mundo que mais me assuste do que o vazio ao qual chegaremos quando a palavra perde símbolo e significado. Quando uma caneta não é nada ou é um garfo ou um sapato. Também não aprecio os risos cínicos do gozo contido na circunstância. Podemos não saber, e ainda bem que não sabemos, mas temos a obrigação de imaginar. As maldições caem onde devem cair, gosto de pensar assim, mas sou boa, muito boa até, jamais desejaria o mal de alguém. Só acho mesmo que os ensinamentos vêm através do corpo e o resto são conversas fiadas, género politiquices no parlamento. Se algum dia alguém regressar do vazio para me conseguir explicar o sentir, gostaria de sabê-lo, consciente da distância do discurso, claro. O conceito é uma vida e uma prisão no mesmíssimo segundo, mas a verdade é que nos exprime. O resto, a cara, é uma cara não é um livro aberto. E as palavras são qualquer coisa de validade máxima, tanto interna quanto externa, eventualmente com supremacias alternadas. Agora eu, agora tu.   

terça-feira, 9 de julho de 2013

entardecer


Era sempre verão e ele entrava na mesma porta pela qual tinha saído no fresco da manhã nascida muito cedo, ao longe, via-se bem por detrás dos montes. A incongruência dos sentires que se alojam nos nacos dos corpos é qualquer coisa de incompreensível, na simplicidade que se quer nascente e crescente para que tudo seja fácil o suficiente. Ora, todos sabemos que a complicação é inimiga da felicidade. Dizem os livros, dizem as pessoas, dizem os animais que comem, dormem e procriam na hora exacta que tem de ser, onde for e como for, desde que seja quando o corpo quiser. Ela ficava sentada a uma mesa de cozinha por onde entrava um ar submisso ao ceptro dos deuses que devem estar loucos, têm de estar loucos, isto só pode ser bafo de loucura. Vagueava nos dias que corriam insanos pelas paredes sem relógio, que tiquetaqueava nos segundos e nos suores que limpava devagar na testa e nas coxas demasiado quentes. Calava-se e colava-se ao calor de um verão que a moía insistente nos lençóis brancos onde à tarde se deitava muito nua, sempre à mesma hora. A nudez começava uns minutos antes do findar do dia. Emergia do sol que abalava e da lua que aparecia nuns céus que falavam com línguas de um amor que morava recolhido nas árvores e nos bichos, nas coisas e nas pessoas. O amor é tão óbvio, que em tudo está mesmo sem se ver. Na espera não havia complicação alguma que a estorvasse e se houvesse, era porque no corpo resistia alguma roupa em estorvo, a matar e de uma vez. Tudo estava simples e no seu devido lugar. Ela olhava-se demorada e insistentemente, sem meditações de maior: a pele protegia-a dos males do mundo. A boca alimentava-a na fome, os olhos viam o que tinham de ver, as mãos tocavam o que quisesse mexer. No coração e no ventre sentia e guardava para sempre o amor que escolheu. O sangue que a corria espalhava tudo pelo corpo que assim se mantinha vivo e imponente, estendido e fácil ao entardecer,
- chegaste?
- sim.
- estava certa disso.
- eu sei.

arte


(a arte pode ser tudo ou pode ser quase nada. pode ser sumptuosa ou pode ser simples. pode ser uma banda inteira ou uma única pessoa com um único instrumento.)

segunda-feira, 8 de julho de 2013

a terrível burocracia do sapato

Há dias em que me apetece escrever sobre a simplicidade da minha vida, mas a verdade é que os textos que escrevo nesses momentos podem soar a uma vulgaridade demasiado banal. Por certo a ninguém apetecerá saber, ainda para mais com um calor destes, que ao dia de hoje, mais precisamente na parte da manhã, esfolei umas sandálias na calçada de Santarém. É uma coisa que me interessa a mim, ao sapateiro e a pouca gente que me possa ler, mas a realidade é que esta questão me ensombrou o dia, que para pouco mais prestará. É claro que a reunião que tratava inserções no mundo do trabalho, inaugurações de novos CACI sediados aqui e acolá sob a orientação de técnicos especializados para o efeito pretendido de empregar pessoas, é muito mais útil para a sociedade. É ainda claro que eu poderia discorrer sobre isso de uma forma sensata e ponderada, os recursos, os meios, os fins, as limitações e as exigências, os meandros e as consequências, as dificuldades e as mais valias, mas a verdade é que não me apetece. E não em apetece não só por respeito à desgraça das sandálias que trago nos pés, como também pelas delicadeza das situações sociais distintas que envolvem o mundo laboral. A relação entre procura e oferta é pouco linear e  muito preocupante. As intervenções directas esquecem por vezes dinâmicas familiares importantes e centram-se num resultado, que antes de evoluir na essência, não tem como desembocar coerentemente num ajuste final adequado. Mas escreve-se e fala-se consideravelmente, que o português no discurso da conversa elucidativa e justificativa é exímio, seguramente um dos melhores do mundo. Tudo parece ter sentido, tudo está devidamente delineado, esquematizado, formatado e planeado, e a falha é usualmente de atribuição externa, analisada exaustivamente na discussão dos resultados que ficam aquém, vezes demais. Por tudo isto e perdoem-me a futilidade declarada, a minha preocupação de hoje é de facto o salto danificado que me obriga a uma ida ao sapateiro rápido, que por sê-lo, rápido, nunca será barato. É este por ora o meu simples problema, que os outros, os reais, discutem-se nos gabinetes e são traduzidos em números e em percentagens. Ainda assim vou tentar ajustar o meu contratempo por forma a torná-lo válido, perdoem-me lá o abuso: acabo de perder 5% do meu calçado; precisarei de 1% do meu dia de amanhã para resolver o assunto e ando sem tempo; gastarei não sei quanto do  meu orçamento, uma maçada. Se tudo correr bem, a relação custo benefício será proveitosa. Se por ventura correr mal, terei de reunir um conjunto de pessoas para analisar o problema e perceber onde ocorreu o erro, reunião da qual resultará uma acta, lida e assinada. Daí em diante não sei onde vamos parar, mas será por certo a um qualquer local onde se escreve, documenta, analisa e verifica, tarefa esta executada por diversos intervenientes especializados, num gabinete com garrafinhas de água num tabuleiro e um ar condicionado fresquinho, que é verão e não se pode. No final de tudo poderá concluir-se que o problema não se resolveu porque o sapateiro não reunia condições. Mas ninguém se vai lembrar de formar o sapateiro.

( Leia-se famílias e pessoas no lugar de sapateiro, caso não se entenda. De formação profissional está o País cheio.)

domingo, 7 de julho de 2013

curtas


( O fato de banho caiu num desuso forçado, jamais voltará a tapar pernas. As bolas são eternas. A graça de um conjunto assim já não se vislumbra por aí, ninguém a encontraria. Ao verão perdoo quase tudo excepto as noites cortadas em pedacinhos impossíveis de colar. As letras morrem-me nos dedos que deixam forças ao corpo, não vá este não respirar. Um dia ainda me enfio assim na tua objectiva. Depois rio que nem uma perdida e fujo para o mar.) 

sexta-feira, 5 de julho de 2013

é simples

Estamos cansados de uma insatisfação criada por querermos tudo cada vez mais. Não há limites que nos contenham o espírito até onde a inteligência permitir a criação de manobras capazes de manipular os princípios da existência, muito além das questões pertinentes à digna sustentabilidade humana. Esquecemos uma analogia banal. Tudo quanto se passe da pele para fora não é nosso e se lhe escaparmos certamente morreremos. Um confim, haja um que nos segure a desmedida da ambição, mas existem outras limitações da humanidade que deveríamos encarar. Não há como ir além da morte, não há como fabricar gente do nada, não há como evitar a fúria da natureza, e tudo quanto se faça nesse sentido é excessivo e potencialmente perigoso. No fundo nada mais simples: não devemos interferir com princípios básicos da evolução. Ponto.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

incoerências

Decisões sérias deverão ser tomadas no recato da calma, longe de visibilidades e acima de tudo devidamente mastigadas. Para o bem e para o mal temos dois pólos distintos, que nem sempre se encontram. Há um deles excepcionalmente emotivo, sensível ao ponto de nos fazer escolher o lado errado em reacção. Ups, já está. Cabe a cada um o auto conhecimento, perceber se estamos perante uma emoção ponderada ou irascível, esta última perfeitamente capaz de deixar transparecer tudo o que se deveria esconder. A incoerência interna e resguardada define a pessoa para a própria pessoa. É saudável, portanto. A incoerência externa define a pessoa em sociedade. E pode muito bem ser o fim do caminho. 

terça-feira, 2 de julho de 2013

cheiros


Sempre gostei de monumentos religiosos, igrejas, mosteiros, abadias, capelas, mesquitas, altares modestos onde se ora em silêncio por uma calma esvaída em dias cinzentos de vidas apertadas. Há uma busca dirigida do que pode ou não encontrar-se, mas que acende sempre uma esperança de conforto, mesmo que mortiça, de que se atinja um patamar superior de existência presente e futura. Mais saúde, mais amor, mais sossego, mais sucesso, menos dor. É esta crença divina que transcende o espaço e quem o procura que me encanta, uma áurea clandestina que me faz sorver as energias boas dos sentires sofridos. Para além disso encontro sempre o silêncio que já me foi estranho nos retiros de mim. Mas que ausência era essa, senhores, em que pensaria eu? Onde encaixaria um inconsciente ainda desconhecido e ansioso por engolir o mundo todo de uma vez? Parar era morrer, dizia muita gente e acreditava eu, piamente crente de que interior e movimento residiam mano a mano num corpo só. Meu Deus, mas que erro maior. Era hoje que eu jamais desperdiçaria as irmãs que me fizeram pensar dois dias sem parar, altura em que eu mastiguei pastilhas elásticas e cantarolei baixinho musicas que me distraiam o que morria de inquietação. O medo ou a ausência de saber parar para pensar é qualquer coisa de limitativo e significativamente perigoso, e deveria tratar-se nos manuais escolares, conjuntamente com a matemática e o português. Até porque fazer contas erradas é perigoso e falar por falar também. Nunca na escola primária alguém me disse que era cá dentro que nascia tudo. Ensinaram-me antes a ler, a soletrar, a contar, a imaginar subjugada à regra da redacção. Nada de pontuação excessiva, cuidado com a gramática, vamos lá a respeitar a temática do texto, as linhas já são mais do que muitas, ou ainda, como queres dizer tanto em tão poucas palavras? Relatividades, banalidades. Hoje consigo dizer tudo numa frase minúscula, construir um texto sem transmitir coisa nenhuma que se veja, imaginar sem rédeas e viver um dia inteiro cá dentro, em silêncio. Consigo ainda vagar se o espaço me deixar respirar o ar que arde em forma de velinhas amarelas e que circula nos corpos dos  fiéis que se ajoelham na confiança da fé. Haverá pouquíssimas coisas neste mundo mais urgentes do que a confiança que mora escondida nos locais impróprios, guardada numa caixa de esmolas quase trancada ao redor. Gosto de cheirá-la, preciso de cheirá-la de vez em quando, entranha-se-me no corpo e mantenho-a viva até que se desvaneça de novo, na loucura da humanidade.    

breve síntese da complicação

Se as coisa são claras como água, só pode ser o excesso de simplicidade que nos desconforta, o que faz com que a dificuldade emocional se preserve viva para todo o sempre, arrematada aos sentires. Calma, calma, a simplicidade é demasiado simples para nós. A humanidade merece sentimentos mais sublimes.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

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Bem sei, bem sei que o tempo é de calores, mas é sempre nesta época que me apetece a patanisca de bacalhau com muita salsa e arroz de tomate malandrinho. Também começo a querer as sardinhas fritas na véspera banhadas em molho de escabeche, qualquer uma das duas acompanhada por uma salada de pimento, uma sombra e um mar ao longe. Isto já vem do tempo em que a avó se levantava e ia à praça. Chegava com umas arrofadas macias e com um pão perfumado, com peixe e com o tomate da banca da velha do lenço preto que cortava couves em caldo verde verdinho. E ameixas secas? Ameixas secas comia-as eu em escadinha, intercaladas com figos frescos e doces, comprados numa outra banca de uma outra velha, numa mesma praça. Há coisas que só me apetecem algumas vezes no ano. São representativas, significantes, mais ou menos como as filhós que só consigo comer no natal, ainda que vivam todo o sempre. Papo-secos com manteiga também pertencem ao meu Verão, regados a café forte e salpicados com compota ou mel nos dias de maior vontade, ele há mais do que muitos, assim haja tempo, que gulodice e pressa não se costuram em parte alguma deste mundo. A esses levava-os comigo ano afora. Significariam acima de tudo vagar, varanda e vento ameno, que os vês também me têm préstimo ao dicionário, muito embora pareça que não. Perdoem-me estes devaneios, mas acompanham uma estratégia de aceitação muito própria, preciso dela para viver o verão mais ou menos tranquila, por entre os ares quentes e abafados, as noites sem sono e as janelas frescas, essas sim, uma nobre tentação.

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