terça-feira, 16 de setembro de 2014

modernices

Não sei o que seria de mim sem tecnologia. Já não me lembro do que é ter uma televisão de dois canais que iniciam a emissão ao final do dia, que dão meia hora de desenhos animados para depois mergulharem no fosso negro do noticiário, sempre em alto e bom som, a barulheira da criançada era uma coisa tremenda. Já não sei o que é viver num mundo onde não existem clics mágicos que nos colocam instantaneamente, tal e qual gelatina royal, em conexão com a rua ao lado, a casa em frente, a cidade distante ou o outro lado do mundo. Hoje as crianças circulam na rua com telemóveis na mão, preciosos localizadores de nos dão informação exacta no minuto da preocupação, no instante nervoso da dúvida, na hora do entardecer. Era eu miúda e desaparecia no fim da escola. Qual dez anos, cinco ou seis, um pão com tulicreme, uma bicicleta de cross e uns quantos e quantas iguais a mim. Havia poços no chão a descoberto, carros na estrada a desviarem a passagem, montes, vales e rios de água gelada onde nascia agrião. Sabiam lá de mim até que Deus quisesse. Anoitecesse e se o ouvido estivesse afinado, limpo de ceras e ranhos que entopem do nariz até ao último neurónio do corpo, e era escutar Carmina, bem alto do cimo do terraço, naaaaaaaa ouuuuuuuveeeeeeessssss??????????....... Ouvia, às vezes ouvia. Outras não, e era o relógio das vacas que regressavam do pasto que me lembravam que era hora de recolher. Nunca havia preocupação com a minha ausência. A aldeia era limpa, os rios corriam sãos, os poços serviam o propósito da rega, sacada a balde fio acima, não devoravam meninos na escuridão. Hoje há muitos mais perigos a cercar meninos. Não se contam histórias de papões, poderia traumatizar as criancinhas, mas controlam-se os passos das ditas até que as mesmas sacudam os adultos como quem sacode o pó do cansaço. Todas necessitam de estar permanentemente monitorizadas, controladas, localizadas, a excepção não existe e a liberdade é uma cor estranha que talvez jamais se encontre na loucura do horizonte. Percebo tudo, não sei o que seria de mim sem a tecnologia que nos guia até ao outro que nos aquieta. Faço parte da geração de pais que se assusta (qualquer coisa) com a ausência, com o espaço demasiado aberto, com as horas sem relógio de pulso, aquelas que nos nascem no corpo sem demais indicação. Mas de uma coisa eu tenho quase a certeza. O meu filho, uma criança controlada pelo mundo ( talvez não muito, mas sempre qualquer coisa), certamente não irá saber o que é pão com chocolate e formigas. Se calhar nunca descobrirá se o ploc da sua pedra é o mais sonoro do poço da horta, talvez nunca demore muito, para me sossegar a preocupação. Não será menos feliz por isso, quero acreditar, será só feliz de outra maneira, mais tecnológica, muito mais à frente. Coisas dos tempos modernos. 

2 comentários:

  1. Pois eu acho que são menos felizes, CF. Eles não sabem, e como não sabem são felizes de outra forma, como a CF diz. Mas acho que é uma forma mais pobre. Interagem pouco com a natureza e com as outras pessoas.
    Jogar à bola na rua, não é a mesma coisa que jogar futebol online. Estar sentado num muro a conversar com os amigos, não é a mesma coisa que estar no facebook. Tomar banho no rio, não é a mesma coisa que ir para a piscina. Exemplos pobres, mas que por isso mesmo, pela sua simplicidade, mostram as grandes diferenças.
    Onde apreendem os cheiros, as imagens, os sons … que tanto fazem parte das nossas memórias. E que tanto nos ensinaram?
    Contrariamente a outros pais sempre tentei que as minhas filhas saíssem de casa. Cada vez que as via no PC, imediatamente lhes dizia : vão para o jardim, vão para a rua, vão ter com os vossos amigos …
    No PC que sentidos usamos? Tacto ? - hum…plástico! Olfacto? -… é o cheiro da nossa casa! Visão? – sim. Mas é como ver uma fotografia em vez de ir ao local. Audição? – sim, claro! Mas sons muito limitados aqueles que ouvimos em casa! Até o paladar … o doce da avó da nossa amiga é sempre maravilhoso!
    Um beijinho CF

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    1. :) Sabe Maria João, eu também acho que são menos felizes. Mas ao mesmo tempo não gosto de assumir isso assim, até porque todos temos capacidades para termos momentos felizes, mesmo em situações menos propícias... No fundo, é como tão bem diz, perdeu-se muita coisa. Não só a liberdade, mas aí está, a experiência real dos sentidos... O problema maior, é que me parece que esta parte da "evolução" é irreversível... Oxalá, oxalá eu esteja enganada... O doce das avós, o pão cozido a lenha, os animais a pastar, é tudo tão bom... :))

      Um beijinho. E bom fim de semana para si.

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