Descobri entretanto que ainda se apalavram casamentos. Que ainda existem famílias que escolhem maridos e esposas, longe de etnias e outras supostas "epidemias". Nelas não manda apenas a cultura ou a promessa, manda principalmente a carteira, o nome, a posição social, uma série de regras que os forçados nubentes deverão considerar em respeito e conveniência. Ela tem dezassete, e não sabe como poderá afastar-se dele. Namoram há três longos anos, suficientes para que se partilhe a mesa da família, a família, os passeios da família e a cama dela, na casa da família. O pior é que a ela já não faz sentido, desconforto acentuado quando ele, na fúria do ciúme e da posse, lhe bateu dentro do carro, à porta da escola. Bateu-lhe, puxou-lhe os cabelos, mordeu-a com força na cara, ficou a dentada marcada. Ela ficou em pânico e contou à mãe. A mãe, acérrima defensora do futuro genro, mais mãe dele do que sogra, muito mais mãe dele do que dela, defendeu-o com unhas, dentes, palavras e gestos, parecem iguais, como se fossem feitos da mesma massa de sangue, mãe a genro. A culpa era dela, não dele, e a marca foi atenuada e não evidenciada. O namoro prosseguiu em vez de morrer na hora, ela aceitou, não tem forças para coisa nenhuma. Ele é e será sempre o menino bom de boas famílias, diz a mãe. Tem nome, é o namorado da filha dela, o genro perfeito, o pai dos netos. Esta filha está verdadeiramente assustada, porque para ela, ele não é nada daquilo. Conta-me tudo na surdina das paredes, pede-me que não deixe transparecer a vontade dela de mandá-lo embora, precisa que a mãe acredite que ela gosta dele porque não lhe é permitida outra realidade, e sendo assim o que lhe resta é enfiar-se na cama para poder falar às escondidas com o seu novo amor, nas noites vagas do namorado actual. Não fosse o dramatismo da história, e o livro poderia nascer perfeito. Não fosse haver vida e (in)felicidade envolvidas, e poderíamos ler o romance debaixo de uma árvore, numa simpática cadeirinha de leitura, com sorte ao sol. Não fosse real e seria uma bela de uma ficção, capaz de adaptação para obra cinematográfica. Não fosse a ganância e a grandeza, a manipulação e a prepotência, e seria tudo muito mais simples e verdadeiro. Não fosse eu quem sou, e teria dito àquela mãe que está terrivelmente enganada, poderia até dizer-lhe que quem merecia ter levado um puxão de cabelos era ela, por pressionar a filha a este cenário dantesco. Eventualmente, e se não fosse eu quem sou, poderia ser eu a puxá-los, com alguma força e sem hipóteses de redenção. Mas eu sou quem sou, é um facto, e resta-me ganhar a confiança para manipular a acção, e atingir lentamente os objectivos daquela jovem abandonada. Não sou boa, nunca fui boa para trabalhos de paciência que me afrontem directamente a razão. E por enquanto, não consigo concluir mais nada que preste.