domingo, 31 de janeiro de 2016

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Quase à mesma hora assisto a duas realidades em televisão. Uma dedica-se à mudança da cor dos olhos, arriscando a cegueira, fenómeno ao qual aderem milhares de pessoas, em persistente espera. Outra dedica-se a criar condições mínimas de habitabilidade num país onde a educação e a saúde se encontram em défice significativo, e onde um livro, um brinquedo ou um médico, podem ser um luxo irreal. Não consigo analisar matematicamente a evolução de uma e a evolução da outra, sinto que me deparo com um conflito interno único e inconsequente. O que valerá mais? A simplicidade irrepreensível da essência da vida na extrema escassez de recursos, ou a futilidade exagerada, emergida da riqueza e da ciência evolutiva para onde se caminha, com ânsias repreensíveis de perfeição? Eis a questão...

(Definição de equilíbrio: estado de um corpo que se mantém, boa inteligência, harmonia, incapacidade humana.)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

"ninguém morre sozinho"



Uma criança de onze anos foi agredida numa escola e morreu. A culpa não se encontra, acaba escondida no meio de coisa nenhuma, trata-se uma vida humana como quem encara uma fraca questão. Ainda ontem encontrei o vizinho que pela vigésima vez expulsa em mim a revolta que o mói por dentro, desde a morte da mulher, esquecida num corredor de um hospital no meio de cinquenta macas desorientadas e não identificadas. Há bem pouco tempo morreu um jovem num hospital por falta de um serviço de neurocirurgia que o operasse ao fim de semana, e não houve remédio que se lhe pudesse valer senão a morte. São todas vitimas distintas, mas revelam à sua maneira o vazio da sociedade, que as matou a todas. O foco centrou-se no Eu, e ninguém ensina a ninguém que o respeito pelo outro faz parte do respeito consigo próprio, e que ao quebrarmos um quebramos os dois ao mesmo tempo, porque nada nem ninguém existe isolado. Ninguém parece preocupar-se com o facto de neste mundo os fenómenos se contagiarem como uma gripe ou peçonha, que correm de pessoa para pessoa e matam de geração em geração, sem dó nem perdão. Ninguém ocupa o seu tempo a pensar que enquanto nas nossas mãos residir a responsabilidade da educação, o compromisso com o mundo é uma virtude vital, que nos transforma em agentes superiores de mudança e evolução. Enquanto continuarmos a deixar morrer com o mesmo sangue frio de quem passa por uma rua agitada, nunca conseguiremos resgatar as pessoas que deveriam ser salvas do esquecimento, da desordem , do fundamentalismo ou da deseducação, que por serem abandonadas morrem. Morremos todos um bocadinho enquanto seres sociais, e assistimos hoje  em dia a um suicídio colectivo, quietos, complacentes, cientes de que o nosso lugar nunca estará ameaçado.

(Oiçam a música e sosseguem. Não há nada mais falso do que a ilusão)

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

direitos e deveres

Nesta vida estranha ganhamos forma feita tal e qual um jarrão de barro, impossível de moldar. Nesta vida os rótulos colam-se tal e qual se colam as famas, os defeitos, os predicados e as virtudes. Nesta vida os alunos mal comportados são sempre os culpados, os ladrões roubam eternamente, os coitadinhos são protegidos e acalorados, os valentes terão de ser sempre fortes. É também nesta vida que damos e retiramos os direitos de cada qual, e analisamos sob o nosso próprio dom que um polícia não pode fugir, um preso não pode restabelecer, um médico não pode falhar e um pobre não pode enriquecer. Cada vez mais me convenço de que tenho direitos limitados e atribuídos por quem me cerca, muito além do legislado. Completamente distintos dos direitos dos outros, moldados em outra forma e numa outra fibra, mais delicada ou mais tosca, depende, não só do material mas da avaliação do compadrio. A isto chamo sociedade e falta de abertura ao outro. Tão simples e tão complexo ao mesmo tempo.

domingo, 24 de janeiro de 2016

chegou cedo, pela fresca

A morte apanha-me sempre desprevenida. Hoje bateu à porta da minha vizinha da frente,  não faço ideia quando nem como chegou, se vestiu a rigor ou com vestes ligeiras, mas a verdade é que bem cedo quando saí de casa, mal o sol tinha nascido, ninguém se tinha apercebido que ela por ali passou. Ainda não se sabe se foi chamada ou se apareceu traiçoeira, se foi pronta ou se demorou, se escolheu aquela pessoa por casualidade ou se já lhe tinha percorrido as entranhas, em busca de alimento e sustento para prosseguir. Não consigo, nunca a consegui compreender, e talvez por isso senti um arrepio quando no regresso passei na porta e escutei a equipa médica a declarar o óbito, enquanto a viatura da vmer continuava acesa em porte de salvamento, tudo em vão. Já me deparei com este carro inúmeras vezes, muitas delas em vão. Incomoda-me o dito, incomoda-me quem lá vem dentro com a ordem da persistência, incomoda-me a insistência perante a imponência da morte, já instalada, já alojada, já acolhida, já declarada de forma natural, a única efectivamente real. Não que não respeite a vida e não julgue que a deveremos procurar até ao fim dos recursos, até ao último respirar, até ao derradeiro batimento cardíaco. Não que não acredite na reanimação, na recuperação, na possibilidade de reverter um processo quase culminado, mas a verdade é que não me consigo esquecer das manobras que efectuaram bem na minha frente, a um morto mais do que morto, mortíssimo, quase frio. A dada altura, lembro-me como se fosse hoje, retirei-me. Passei pela porta e encostei-me numa parede a escutar a conversa, os delírios, os telefonemas, as dificuldades, as limitações, e a pensar que nesta vida, em nome da própria, quase nunca sabemos respeitar um fim, não conseguimos facilmente fazer silêncio e deixá-lo estar, custa-nos em demasia. Mesmo quando quem morre, já morreu.

A minha vizinha era lenta e bonita, viúva há uns dez anos. Tinha dores nos ossos e costumava partilhá-las comigo. Desejo-lhe, sem que para nada o meu desejo possa ter interferido, que tenha recebido uma visita tranquila. Que tenham tomado um chá de camomila para sossegar, que tenham falado sobre a vida, que tenham discutido o local para onde a levou. Gostava ainda que ela tivesse esboçado um sorriso, encontrei-a muitas vezes em ânsia e em dor. O sorriso dela era sereno, mas muito difícil, estava cansada. Ainda assim quase juraria que sorriu quando a viu chegar, devia esperá-la. A mim, como sempre, apanhou-me desprevenida.

sábado, 23 de janeiro de 2016

defesas

Escondo-me do tempo tantas vezes quantas as necessárias para que o meu corpo adormeça sossegado. Esqueço-me de cada minuto que doeu, de cada hora vazia, de cada silêncio que se alojou no lugar das palavras que eu queria ver nascer, e que se direccionavam sempre para o lugar oposto ao do meu corpo. Sou uma perita em cravejar sem se ver na madeira, os pregos enferrujados da minha história. Disfarço-os com um verniz polido e delicado, esforço-me por fazer brilhar a crosta, finjo que nada nem ninguém me pode atingir. Sei, claro que sei, que todo o constructo é fictício. Sei de cor os meandros perfeitos das nossas defesas, conheço-lhe as manhas, as capacidades, as possibilidades e as limitações, as imponências e as evasões. Sei que nos protegem e nos permitem existir, na exacta medida em que nos falham e nos colocam frente a frente com o agressor. Aí, claro, é matar ou morrer no confronto com a realidade. Escolho sempre o lado certo e fundo-me na história, se ainda doer muito construo outra, quem sabe mais requintada, muito mais refinada, extraordinariamente mais eficaz, sempre irremediavelmente falível. Quando me dizem depois que as ditas artes, guardadoras da sanidade, são um erro, estremeço. Um erro é não as encarar de frente, não as medalhar, não as elevar ao mais alto nível da nossa existência. As defesas são a nossa vida, sem elas estancaríamos no primeiro buraco da estrada. Precisamos apenas de as compreender e limar, em jeito de adaptabilidade, e daí em diante é alimentá-las, afagá-las, tentar que não se auto exterminem em pura exaustão. Aí sim, o fim. 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

o melhor do meu mundo

É claro que as minhas pessoas são as melhores do meu mundo. É claro que o meu filho, desde que saiu do meu corpo e se deitou sobre o meu peito foi o mais belo dos bebés, a mais terna criança, o melhor adolescente de todos. Não faço questão de o elogiar ao desbarato, os meus olhos são olhos de mãe que encontram a perfeição no amor que lhe sinto, na mesma exacta medida em que todas as outras mães do mundo olham para as suas crias. Não constitui esta avaliação a mais pura das verdades, a única real verdade é o meu amor, mais do que suficiente para lhe amar o cheiro, os olhos, os medos, os defeitos, a inteligência, a emotividade. Na mesma forma com que o amaria se em todos estes pontos estivesse o oposto. Acredito que no amor romântico possa existir um efeito semelhante, sem que a verdade se perca. Não que o outro seja sempre o melhor dos melhores, mas se o não for, se ao lado existir sempre melhor semântica, pose ou elegância, o reflexo será sempre negativo. Não é a verdade que se instala, muito embora até possa ser. É a certeza de que a perfeição não existe, coisa que não se compatibiliza mesmo nada com a confiança, a certeza e a grandeza do único amor. E não me falem, por favor não me falem de lógicas, realidades e capacidades de compreensão e encaixe. Não há mulher nem homem que não precise de ser o melhor em tudo, mesmo que saiba, obviamente, que não será nunca. A mente é complexa, mas desmontada é mais simples do que uma roda dentada. Basta só girar para o lado certo, que muitas vezes, tantas vezes, não sabemos exactamente qual é.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Dar de mim

O exercício do que faço, pertence-me. É a mim que tenho de ir buscar as ferramentas para ajudar o outro, é do meu interior que nasce a empatia, a sintonia, a busca incessante da contingência, o respeito pelo outro e a dedicação. Não consigo sentir critério pelo local de acção, e desde que haja um sítio discreto e duas cadeiras, posso trabalhar num palácio, numa escola, numa rua, num bairro, no meio da felicidade ou no centro de uma guerra. Creio ser isto que acontece com todas as pessoas que amam o que fazem, há o mínimo indispensável e o resto somos nós. Não acredito muito em quem necessita de mais. Quem necessita de mais não tem que chegue, e por isso precisa primeiro de dar a si próprio. 

domingo, 17 de janeiro de 2016

não há vida sem relação

Não me convencem, nunca me convenceram da ideia de que no nascimento e na morte estamos em igualdade de circunstâncias na nossa própria solidão, comportando a vida na teoria. Ainda há pouco tempo a discussão se instalou com emotividade, eloquência e vaidade, e da boca dela saia a certeza apregoada e acreditada em fé da semelhança destas considerações solitárias. Daquela forma, escrita em romantismo, dita em poesia, escutada em ânsias de beleza até me parecia soar bem, é uma sequência ordenada de factos filosóficos perfeitos, são a absoluta fórmula de extremos matemáticos, o principio e o fim, um acto de expulsão e um acto de extinção. Mas a verdade é que na vida real encaro tudo de outra forma, eu, que já vi nascer e morrer aqui debaixo dos meus olhos, que já agarrei um recém nascido no segundo do choro, mas que também já beijei gente na hora assustada do fim. Eu, que já tentei espantar a morte quando a mesma me atraiçoou pelas costas, no exacto momento em que fechei a porta do hospital. É claro, não ousei discordar perante a unanimidade do elogio à beleza do discurso. Não me apeteceu contrariar, por vezes a marcha oposta é qualquer coisa sobre a qual não me apraz insistir, cansa-me, desgasta-me, podem até julgar ser algum acto presunçoso, o que na realidade é oposto, pois presunção será porventura este alheamento de conformidade, sem a mais pálida convicção. Na extrema do nascimento há o mundo e há a vida, cada vez sinto mais isso. Há as pessoas e os sorrisos, a felicidade e a dedicação presentes ao longo de grande parte da nossa existência, sem tudo isto não haveria crescimento. Na extrema da morte há o vazio e a desilusão. Não, não são iguais. O que as primeiras ganham em união, a última sim, vence em solidão. De quem morre e muitas vezes de quem fica, por tempo indeterminado.

sábado, 16 de janeiro de 2016

copy paste

Todas as semanas tentam escrever um postal pessoal e intransmissível, sempre novo e feito à mão, as novas tecnologias não assombraram todos os espíritos irremediavelmente. Ali, naquele momentos, vive-se de meia dúzia de palavras cuidadas, de uma direcção, de uma dedicação, uma perfeita dádiva. Olho meio espantada, não estou habituada a isto, e relembro de imediato a caixa verde que a minha mãe guardava no armário da sala, carregada de fotos escritas com recados de amor que cruzaram África, há muitos anos atrás. Nelas construiu-se um amor em tempos de guerra, e devido a ele estou cá eu, a minha irmã, os nossos filhos. Não consigo deixar de olhar este jovem com admiração. Não ouso catalogar a acção de lamechas, tal e qual faz quem sabe da troca, por outro lado, apetece-me enaltecê-la efusivamente, erguer-me e bater palmas, obrigá-lo a subir para a cadeira enquanto lhe coloco uma medalha ao pescoço, de oiro valioso impresso a merecidos elogios. Acontece-me especialmente quando logo depois percorro adultos que se satisfazem unicamente com a tabela pré-definida de um beijo, sem expressão, quase sempre igual, um copy paste diário, em intento e sentimento. É de cedo que deveríamos tratar de inventar o amor, todos os dias, e não há nada mais saudável que um "previsto inesperado". Está à espera da volta do correio, diz-me com um sorriso. O que ela me diz na escola é um mundo à parte, é aqui, neste segredo cúmplice, que moramos os dois. Dei-lhe dois beijos na despedida e um até breve. Apeteceu-me fazer-lhe uma festa na testa, mas pareceu-me excessivamente maternal. Por dentro, desejei-lhe que nunca perdesse a simplicidade.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

pedir perdão

Há uma globalização da desculpa que me assusta quase tanto quanto a da tecnologia. Os terapeutas assumem o perdão com a cura para todos os males, a igreja obriga ao acto de contricção como forma de espantar pecados, a sociedade vive inundada pelo reconhecimento da falha como o único caminho possível para o avanço dos adultos perdidos, o crescimento das criancinhas que mudarão o mundo, a salvação dos moribundos nas portas da morte. Não lhe retiro predicados, também eu lhe reconheço as propriedades terapêuticas, os poderes curativos, a força com que se entranham no corpo, em caso de realidade. Mas a verdade, a única verdade, é que pedir desculpa a sério é uma nobre arte, para a qual não basta querer. Não chega a simples emissão de uma palavra vã, o mero reconhecimento externo desprovido de significado, a destilaria piedosa e apaziguadora de consciências. Para pedir desculpa ao outro é preciso entrar no próprio de torrente e cheirar os desperdícios do corpo onde se mora, é necessário despojar a alma de vaidade e renascer em humildade, é fulcral que se reconheça a natureza da humanidade e se esqueça a utopia da perfeição. Só nos territórios terrenos poderemos chafurdar na lama que criamos, e ver nascer. O resto é ambição.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

promessas

Descobri entretanto que ainda se apalavram casamentos. Que ainda existem famílias que escolhem maridos e esposas, longe de etnias e outras supostas "epidemias". Nelas não manda apenas a cultura ou a promessa, manda principalmente a carteira, o nome, a posição social, uma série de regras que os forçados nubentes deverão considerar em respeito e conveniência. Ela tem dezassete, e não sabe como poderá afastar-se dele. Namoram há três longos anos, suficientes para que se partilhe a mesa da família, a família, os passeios da família e a cama dela, na casa da família. O pior é que a ela já não faz sentido, desconforto acentuado quando ele, na fúria do ciúme e da posse, lhe bateu dentro do carro, à porta da escola. Bateu-lhe, puxou-lhe os cabelos, mordeu-a com força na cara, ficou a dentada marcada. Ela ficou em pânico e contou à mãe. A mãe, acérrima defensora do futuro genro, mais mãe dele do que sogra, muito mais mãe dele do que dela, defendeu-o com unhas, dentes, palavras e gestos, parecem iguais, como se fossem feitos da mesma massa de sangue, mãe a genro. A culpa era dela, não dele, e a marca foi atenuada e não evidenciada. O namoro prosseguiu em vez de morrer na hora, ela aceitou, não tem forças para coisa nenhuma. Ele é e será sempre o menino bom de boas famílias, diz a mãe. Tem nome, é o namorado da filha dela, o genro perfeito, o pai dos netos. Esta filha está verdadeiramente assustada, porque para ela, ele não é nada daquilo. Conta-me tudo na surdina das paredes, pede-me que não deixe transparecer a vontade dela de mandá-lo embora, precisa que a mãe acredite que ela gosta dele porque não lhe é permitida outra realidade, e sendo assim o que lhe resta é enfiar-se na cama para poder falar às escondidas com o seu novo amor, nas noites vagas do namorado actual. Não fosse o dramatismo da história, e o livro poderia nascer perfeito. Não fosse haver vida e (in)felicidade envolvidas, e poderíamos ler o romance debaixo de uma árvore, numa simpática cadeirinha de leitura, com sorte ao sol. Não fosse real e seria uma bela de uma ficção, capaz de adaptação para obra cinematográfica. Não fosse a ganância e a grandeza, a manipulação e a prepotência, e seria tudo muito mais simples e verdadeiro. Não fosse eu quem sou, e teria dito àquela mãe que está terrivelmente enganada, poderia até dizer-lhe que quem merecia ter levado um puxão de cabelos era ela, por pressionar a filha a este cenário dantesco. Eventualmente, e se não fosse eu quem sou, poderia ser eu a puxá-los, com alguma força e sem hipóteses de redenção. Mas eu sou quem sou, é um facto, e resta-me ganhar a confiança para manipular a acção, e atingir lentamente os objectivos daquela jovem abandonada. Não sou boa, nunca fui boa para trabalhos de paciência que me afrontem directamente a razão. E por enquanto, não consigo concluir mais nada que preste.

domingo, 10 de janeiro de 2016

chapéus de chuva, canetas e blocos

Sou apologista de que existem coisas no mundo que não deveriam ter posse certa. Não poderiam pertencer a ninguém, seria mais útil que fossem da utilidade do povo, cada pessoa deveria poder agarrar, utilizar e deixar em parte incerta,  porque de tanto abandono haveria sempre alguma à mão. Falo de utilidades, jamais me prendo a elas, como chapéus de chuva e canetas, eternas preciosidades que nunca estão quando deveriam estar, sobreviventes apenas na inutilidade. No local onde eu estou, se chover, nunca existe um guarda chuva, mas posso bem insistir em dar com um no meu carro, quem sabe até com dois, desde que haja muito sol. Canetas (e respectivos blocos, obviamente), nunca encontro. A não ser quando nada existe para dizer, anotar ou escrever, pois nessa hora são bem capazes de se intrometer, em completa revelia, por entre as minhas mãos ou no alcance da minha vista, quase a pedir de joelhos a maior divagação. Na minha idealização cada um pegaria e largaria, sem donos, sem medos, sem locais de devolução. Parece-me claro que na casualidade do uso de folhas dos blocos perdidos nos bancos dos passeios, nas mesas de cafés, nos assentos dos autocarros ou nas relvas dos jardins, as mesmas ficariam sob a posse do próprio, passariam a ter valor, possuíam ideias e interioridade. Daí em diante só seria permitido abandonar o que não é nosso, porque o resto já nos pertenceria em completa autoridade, registo e propriedade. Apreciaria também proibir todas as pessoas de lerem o que não lhes pertence, não lhes é dado a conhecer ou a elas não é destinado. Não fosse alguém, distraído ou confiante, esquecer uma folha mais recatada e descobrir o seu eu nas bocas das gentes menos honradas, meramente curiosas, nada apropriadas. Uma interioridade violada pode ser pior do que uma catástrofe natural, daquelas que poderiam ser acolhidas por um  guarda chuva mundano, depositado à espera de umas nuvens, num chapeleiro qualquer. Este uso sem dono de pequenas utilidades fomentaria a união e o respeito, na mesma medida em que a expressão e a posterior guarda do que é mesmo precioso e nosso, valorizaria a individualidade e o conhecimento próprio. E não se assustem os que apreciam uns pingos de chuva, era deixar o chapéu ao próximo. Haveria sempre uma tempestade maior, um cabelo mais delicado, um traje mais requintado que poderia mesmo precisar. 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

avanço

À medida que o tempo passa descubro em mim um ror de defeitos. Quase parece que o crescimento nada me ensina, que a vida nada me traz, que o saber da experiência é uma inútil grandeza que exerce as suas funções em terreno fértil, que não é claramente o meu. Quanto mais cresço mais decifro incongruências, mais detecto ignorâncias, mais me encontro frente a frente com perguntas sem resposta, labirintos eternos, descobertas que emergem por entre os trilhos do cansaço, das crenças, do amor. Teimo sempre em parar para ver. Faço questão da pesquisa e da análise minuciosa que até parece funcionar de mim para fora, mas que claramente não assenta assim tão bem do meu corpo para dentro. Não sei ao certo se esta "desevolução" faz parte do avanço, mas a verdade é que me sinto cada vez mais longe da perfeição intelectual, da consciência da vida tal e qual ela é, da certeza absoluta que nos guia na adolescência, da verdade certa e sabida que nos acompanha tão perto, no inicio da adultez. Hoje encontro em mim um caminho quase vazio de saberes e um crescente de dúvidas, com um ou outro salpico de coragem, uma pura enciclopédia muito pouco cientifica. Viver é esta incongruência, parece-me, uma pura transformação para o principio da ignorância, um elogio à crença de que cada vez fico mais longe. Se não em realidade, claramente em convicção. 

domingo, 3 de janeiro de 2016

mal


( Fotografia do Pensador , Auguste Rodin, de Paulo Abreu e Lima)

Todo o profissional sonha com o limite da execução do seu trabalho. Creio que qualquer pessoa que ama o que faz aprecia que a consumação aconteça numa tarefa apoteótica, um CCB para um arquitecto, uma Ponte Vasco da Gama para um Engenheiro, um Ensaio sobre a cegueira para um escritor, um Sunday bloody sunday para uma banda, uma 5ª Sinfonia para um compositor. Daí em diante, e na comum das profissões, todos querem fazer o melhor que sabem num território mais complexo, acredito nisso. Não me parece que haja neurocirurgião que não aprecie uma boa intervenção, das que duram horas e salvam a vida, uma enfermeira que não se gratifique em trazer de volta ao corpo uma pele já morta, um cozinheiro que não engrandeça o ego perante um repasto feito ao desafio, um escultor que não se delicie com uma pedra difícil, de onde nascerá uma obra maior, externa e interna, onde todo ele se (des)faz em forma. Talvez por isso eu ande cansada de problemas menores. Talvez por isso eu pene por acção interna, e me enfade ligeiramente com a comum da desordem de personalidade, familiar, social, de aprendizagem. Não que não goste de intervir nela, mentiria, aprecio-a muito, são a minha profissão activa do dia a dia, nas horas cansadas, no trivial das 24 sobre 24, nos principais dias do ano. Mas a verdade, a real verdade, é que há alturas em que anseio por mais, quando me nasce uma vontade de morte para me direccionar ao limite do ser humano. O preso 64, por exemplo, deixou-me com água na boca e ganas de exploração. Matou a mulher, por portas travessas encontrou outra que o visita intimamente na cadeia, uma vez por mês e durante três horas, o dito porta-se bem. Apesar da benesse, 64 ameaça outras pessoas com o mesmo crime que já cometeu, sente-se grande, imponente, quando na realidade já rastejou pela mais baixa escumalha, já sentiu nas suas mãos o gosto do sangue quente da morte humana, já infligiu dor e horror. Não o percebo, não o consigo perceber, mas gostaria tanto que me faz até alguma aflição. Por muito que me debruce sobre os teóricos que estudam vidas e vidas a fio, por muito que olhe de perto os escritos e tente encaixar na minha análise interna o teor da maldade, faltam-me peças de encaixe, dezenas de dados, milhares de ocorrências, milhões de imprecisões. Precisava, a todo o custo, de edificar uma obra que me explicasse o mal, a mim e eventualmente ao mundo, com um elevado grau de precisão. Chamar-lhe-ia não sei que nome, e seria por certo transmitida por páginas inúmeras de um livro infinito, não acredito que a loucura do mal se explique com uma simples teoria. O mal é demasiado, quem sabe indecifrável. Ou será apenas o limite de todo o Homem? Eis a questão. 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

famílias

Logo a seguir à personalidade, o que mais me fascina são as histórias de famílias. Na dinâmica familiar convergem as individualidades, as dualidades, os amores e os ódios pessoais, os gostos, as ambições, as possibilidades e as limitações, as heranças e os genes. Não há nada mais emocionante em termos de complexidade do que uma árvore genealógica onde habitam gerações, onde se escreveu uma história de apelido comum e de pessoas que se formam, obviamente, muito diferentes, ou, evidentemente, assustadoramente iguais. Escrutinar uma trama destas é usualmente o paraíso dos escritores, o passatempo da vizinhança, a tragédia que se anuncia nas bocas das senhoras que tomam o chá das cinco na melhor pastelaria da cidade, a heresia que se adivinha nas profecias das que rezam dia e noite, nas igrejas dos lugares comuns. Não as censuro. Não as critico, sequer as condeno. Não há nada mais educativo e emocionante do que a descoberta das nossas vidas no senso comum do sangue alheio. A minha avó sempre me avisou: não se fala da vida dos outros. Sempre a compreendi, sempre concordei com ela, sempre admirei a sua capacidade de silêncio e a sua dedicação ao que era íntimo. Perpetuo-lhe a ideologia, é um facto, da minha boca nunca nada se escuta, limito-me a explorar e a olhar. A percorrer nos livros (começou sensivelmente com os Maias, continuou com muitos outros, como Cem anos de solidão), a dissecar na vida, a entrar com os meus olhos sedentos de história, para depois simplesmente as abandonar, quando pouco proveito me dão. É um egoísmo sem precedentes, um oportunismo sem explicação. É uma paixão que a cada dia me prende mais do que o ser por si só. Uma família, uma simples família, um único nome, uma manipulação ou uma ambição, podem mudar uma vontade, podem impulsionar um desejo, podem matar uma ordem ou edificar uma legião. Preciso cada vez mais de as incluir no meu plano de estudos, no meu objectivo terapêutico, na minha consciência clara de acção. Uma família gera, muda, conflui um infinito de possibilidades tal e qual um heredograma, muito posterior à gestação. Uma verdadeira explicação. Um objectivo, saber mais e melhor como olhar esta potência do conhecimento humano.

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