O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
quarta-feira, 30 de outubro de 2013
matemática pura
Vera insurge-se irritadíssima pela sua ignorância. Quando foi ela levaram-lhe uma boa metade do aparelho, ficou limitada nas suas capacidades reprodutivas, entregue à sorte e ao calha, pode ser que aconteça, quem sabe um dia, não sonhe muito com esse assunto, pode ser que Deus queira. Pois bem, e se Deus não quiser? E se pretender que os resquícios que guarda lhe engelhem e ressicam dentro do ventre, mirrem, desapareçam, morram devagarinho deixando-a entregue à infertilidade que tanto a assusta? Haveria de ser já, disse-lhe o médico, meia dúzia de meses, um restabelecimento suficiente, um não dar descanso ao que sobrou com vida e que por certo será suficiente para colocar uns óvulos férteis no útero, à espera de fecundação. Haja colaboração de quem de direito, haja e da boa, já agora. Entretanto escuta um novo processo, uma mesma doença altissonante, um outro procedimento, nada de barrigas abertas, uns furinhos, umas horas, sabe lá a outra o que a vida é. Há pessoas que parecem não perceber que as próprias dores são sempre maiores. São dores lancinantes do corpo ou da alma, capazes de aturdir forças e de matar coragens, de espetar facas em ânimos e de despertar estados débeis devidamente justificados, arrumados num diagnóstico insólito, nunca no mundo se viu igual. No corpo dos outros nunca nada é nada. No corpo dos outros crescem pequenos males de curas e consequências pouco graves, meras disfunções inconsequentes, poucos prejuízos, e, se ou houver, rapidamente ultrapassáveis. Ao telefone reforça tudo aquilo enquanto a convalescente, paciente, escuta. No final Vera insiste e remata que não percebe porque não foi avisada. A interlocutora por seu lado ousa não perceber o porquê da indignação, e reserva-se ao direito de nem devolver feed-back. É profundamente discreta por natureza, mas e se não fosse? Nada vezes nada é nada, contar o quê?
segunda-feira, 28 de outubro de 2013
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
requerimento
Carlos é um homem pequeno. A genética ficou-lhe com uns bons dois palmos, desenhou-lhe uma cara pincelada excessivamente feminina, deu-lhe uns braços tímidos e um ar acanhado, um trinta e oito de pé, mais coisa menos coisa. Passeia-se pelo hospital com o seu carrinho da correspondência, encontro-o no piso três, sai do elevador, dirige-se ao secretariado, encosta a viatura, lambe os dedos diminutos, escolhe a correspondência endereçada, bate na porta com dois toc tocs ritmados, não ouve resposta e entra, poisando no balcão os envelopes gigantes carregadinhos de radiografias, ecografias, tomografias e outros meios auxiliares de diagnóstico. Não consigo deixar de o imaginar nos outros pisos, todo o dia acima e abaixo num ritual repetitivo, a chamada do elevador, a selecção do piso, a saída, o secretariado, o estacionamento, a humidificação dos dedos, a separação, os toc tocs, a entrada, o regresso. De repente, e no meio dos pensamentos, estranhei um esgar que emitiu, acabei por perceber que estava indignado perante uma senhora que surge na sua frente, dona Lurdes, fiquei a saber. Um horário trocado, um requerimento que deveria ter sido feito e não foi, uma equipa que deveria funcionar e não funciona, um centro hospitalar que deveria ser gerido por homens e é gerido por miúdos, daqueles que ele tem lá em casa. Esbraceja e gesticula efusivamente para dona Lurdes que o escuta, na hora da bica, carteira na mão, máquina em frente, acenos de cabeça, concorda com tudo. A ele até lhe dava jeito, a miúda entra às oito, às oito e meia estava ali, tinha uma hora de almoço, saia mais cedo, só tinha a ganhar, mas ninguém fez o requerimento, o centro hospitalar que deveria ser gerido por homens é gerido por miúdos, daqueles que ele tem lá em casa, repetia. Sim sim, sr Carlos, acena ela, moeda na mão, na hora da bica, em frente à máquina do café. Iniciei internamente o circuito de volta, mas o sr Carlos prosseguia afincada e lentamente com o discurso da indignação, a meio do qual começou a abanicar o corpo e a impulsionar-se para a frente, dedo em riste, ar quase demolidor, pés pequenos de um lado para o outro, braços tímidos agitados. Confesso que ali a meio comecei a ficar assustada com a sanidade do sr Carlos, que repete o seu dia ao pormenor do detalhe. Mudam os nomes, mudam os pisos, mudam as doenças e mudam os pacotes, muda quem morre e muda quem nasce, mas o resto é sempre igual. Fez-se de tal forma à repetição da existência que a estendeu ao seu quotidiano, não consegue validar ideias sem a exaustão do raciocínio, morosamente. Não aprecio pessoas repetitivas que reclamam o rigor do segundo. Podem ter razão, aceito que a tenham toda, mas perdem-na, enterram-na, dão cabo dela quando a expõem assim demoradamente, no meio de um corredor onde passa gente que ouve durante longos minutos, os poucos que não se podem perder. Não quero os meus exames no carrinho do sr Carlos. Não quero ser mais uma na efusividade da sua existência, transportada fora de horas que não foram requeridas num carrinho de ferro conduzido a contragosto, por um homem pequeno e repetitivo. Amanhã, bem cedo, vou ao hospital meter o meu requerimento.
quarta-feira, 23 de outubro de 2013
...
(Andam aí outra vez, mas nenhuma das novas chega aos calcanhares de Adeus Tristeza. Tenho para mim que é da melodia, a lembrar-me a entrada num casório qualquer. Gosto de casamentos, e isto independentemente da amizade que me una aos noivos. Não tem rigorosamente nada a ver com o amor e a cerimónia, isso é com cada um. É porque é das poucas alturas da minha vida em que posso usar chapéu, pintar os lábios de vermelho e embrulhar-me num lenço de seda, sem parecer excessiva. E isso, já é cá comigo.)
terça-feira, 22 de outubro de 2013
segunda-feira, 21 de outubro de 2013
facilidades
Oiço demasiadas vezes pessoas que vociferam coisas, contra os meninos que não querem aprender (todos os meninos querem aprender, assim a vida não os leve para outros caminhos). Lembro-me com frequência do Samuel. O Samuel não queria aprender, o Samuel queria o prazer fácil que o sossegasse depressa, não estava para ter trabalho (a vida já lhe dava tanto). Queria a consola que tentava roubar ao colega que não emprestava, queria apanhar o sol enquanto se deitava na relva a apreciar Joana, a miúda mais gira do colégio. - Era até ao osso, ouvia-o dizer, enquanto a pobre se esgueirava por entre as outras meninas, tímida, encolhida, envergonhada. O professor Tó não tinha paciência para saídas destas, faltas de respeito ( o que é isso, respeito? ), a menina merecia-o. - Vai cavar, malandro, e ele fingia que ia.
A Dona Zé da cozinha era outra das visadas. Salgava o que não devia, cozia demais o que tinha de ficar meio cru, deixava o pitéu sempre aquém da expectativa ( que vida, caramba, deveria ser feita à medida e não é!). Na parte da tarde, ao calor, era preciso estar sentado na aula teórica. Liliana, a professora de Inglês, tinha as costas quentes do marido, um educador brutamontes que assustava meninos desobedientes. Bastava-lhe isso para se pavonear por entre as mesas de cabeça erguida e ameaça na ponta da língua, para quê perder tempo com outras estratégias educativas (será que as há, quando ninguém quer aprender?). Cristina tinha a boca ao lado por um acidente vascular cerebral precoce. A fala ficou-lhe apanhada, a aparência estranhamente engelhada, perdia a paciência com a mosca que lhe poisava na orelha, quanto mais com as investidas de Samuel, cruel como poucas pessoas conseguem ser ( a vida, será que é?). António era o motorista que vivia a vinho tinto carrascão. Cheirava-se à distância de dez pessoas, para além da cor que se percebia a uns bons cem metros. Transportava a canalha para a outra escola quando era preciso, - não valem nada, dizia à boca cheia, -ninguém lhes dá educação, um dia a sociedade ainda se há-de fartar disto ( nunca se fartará do vinho, néctar dos deuses e às vezes dos diabos. Ninguém lhes dá educação, ninguém lhes dá coisa nenhuma, qual é a parte da frase, proferida por vós, que não percebem?).
Um dia chamei a mãe que olhou para mim sem nunca olhar para o filho. Uma figura inteiriça, farta de carnes e de presunção, com um umbigo maior do que o globo terrestre. O filho tinha vindo em má hora, quis a ignorância que não o tivesse percebido a tempo, só quando saltou dentro da barriga aos pontapés. Foi tarde demais, teve de nascer. Tinha uma história negra e pouco ou nada para dar, um trabalho numa empresa de limpezas e sabe-se lá mais onde, outros filhos, tantos encargos, mais uns vícios.
( A vida é também ela um ciclo vicioso. A grandiosidade de poucos é arriscar quebrá-lo, a sensatez de outros é tentar entendê-lo e harmonizá-lo, a pequenez de alguns é só desdenhá-lo. É provável esta última, percebo. Bem vistas as coisas, quem é que não aprecia uma boa facilidade? )
sábado, 19 de outubro de 2013
perdições
O mundo é um lugar harmonioso. Baralha-se quando as pessoas julgam que podem ser o que não são. Daí em diante, algures num passado longínquo, quiçá desde que o Homem é Homem, vivemos numa selva ligeiramente racional.
( Do género, um dia ainda te como sem que tu queiras: pode, pode nem nunca acontecer, mas a vontade latente imiscui-se no ar que respiramos, transparece pelos ventos do suão, aloja-se nos fundos dos dias e das noites, cripta-se pelas madrugadas do Outono. A sorte é quando faltam as forças e morre ressequida onde nasceu, local de onde nunca deveria ter saído. E não, não acho que tudo seja permitido, do corpo para fora. Do corpo para fora devemos respeito ao mundo. Do corpo para dentro serão outras questões, intimas, pessoais, eventualmente e se conseguirmos, totalmente libertas das normas da socialização. Um ver se te avias, uma festa, uma ausência de limites, uma perdição.)
sexta-feira, 18 de outubro de 2013
clandestinidade institucional, pequena miragem de vida.
Saio pelo portão da frente e viro à esquerda, não posso pagar, ali ao lado há uma outra solução mais baratinha, também ela satisfatória. Não há médico, mas vai-se ao hospital, uma injecção dá a patroa, percebe do oficio, a comida é preparada na cozinha pela auxiliar que até sabe qualquer coisa de culinária, pica tudo na picadora, mistura na sopinha, fruta nem sempre mas quase, pão a todas as refeições. Leva seiscentos ou assim, ouvi dizer, não se passa fome nem solidão, há uma televisão para todos que anima o espírito nos dias em que ele ainda vive desperto, nos outros espreita-se só a fresta da janela que dá para a estrada, não há quintal. Em opção posso sempre ficar em casa sozinho, distraído pela doença neurológica que desencaminha muitos euros em comprimidos, leva memórias e competências, atenções e capacidades de comer a horas e de ter cuidadinho com os bicos do fogão. Depois vem o Natal, e o que eu gosto do Natal. No Natal as pessoas preocupa-se muito com os velhinhos que passam os outros onze meses sozinhos, trazem farófias e fatias doiradinhas e polvilhadas a canela e açúcar, o café escuro acompanha. Nessas alturas tudo parece funcionar em permanência, a solidariedade brota nas pessoas, nas famílias, nos políticos e na vizinhança que não quer perder a oportunidade da boa acção que acolhe a necessidade de braços abertos, há alturas em que o mundo se sustenta a ele próprio. Ah, maravilha das maravilhas. Mas depois vem o ano novo e a vida velha. O costume, o pão que está seco, a sopa que azedou, o dinheiro que não cobre as dores que desatinam nas pernas e nas costas, malvadas, em tempos varriam o mundo. Volto a pensar e preciso de um sítio que eu possa e que exista para mim. Os que existem para mim são os que que eu consigo pagar, que aos outros não chego, por pobreza ou falta de poder, logo não constituem solução. A clandestinidade para mim não é um problema, é uma resolução.
(E um País que permite e incentiva isto, não é desenvolvido, é uma aberração. Desenvolvimento é adaptação às limitações, e não decretos em escadinha com exigências bonitinhas e dispensáveis que não matam a fome, não curam doenças, nem eliminam a solidão.)
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
mudanças
pela vida. Quis o mundo que as mulheres gerassem, que as mulheres parissem, que as mulheres criassem. Quer ainda que as mulheres agradem, que as mulheres sejam, que as mulheres amem. A sociedade aprimorou-se e hoje exige que sejam belas, mas que mantenham o resto. O resto faz viver o mundo real, mas a realidade não se prende apenas com a concretização do corpo. A construção interna de uma imagem feminina tem direito à beleza, que morre com o passar da vida. E com a continuidade da mesma. Ora bolas, que não encontro um final perfeito. Valham-nos então os felizes, pois.
terça-feira, 15 de outubro de 2013
fotografias de gente feliz
Gostava de vê-los, aquela coisa do casal, duas filhas lindas, um carro jeitoso, uma apartamento comprado há pouco nos prédios ricos da cidade, uma pose feliz. Ela ligeiramente grande, foi a gestação das filhas, havia que correr ao fim do dia enquanto as ditas ficavam na avó, fizesse chuva, fizesse sol. Parece que o esforço não se dava a conhecer a quem espreitava, tinha sempre ar de matrona imponente, e a antipatia não ajudava a compor a delicadeza que se quer numa senhora. Encontrava os dois a subir o prédio, meninas pelas mãos, pressa no passo, entra, beija, deixa, a correria das matinas que se preparam para largar em fugida mal vacilamos os pés tropeços nos saltos ou nos sapatos de graxa, sim sim, ainda se usam. Há tempos que a encontro só a ela, ligeiramente mais leve de corpo, significativamente mais pesada de espírito, impaciência expressa na voz, na boca, no cabelo, na roupa, muito embora com simpatia manifestamente mais desenvolvida, confesso que nem percebia. A avó espera sempre na escada, as netas correm todos os dias para lhe chegar, e parece que já não as incomodo à passagem, valha-nos isso. Não o via há uns meses, poucos, dois ou três, o tempo suficiente para agora o encontrar a sorrir nas Caraíbas (alvissaras às redes sociais), ao lado de uma outra senhora também ela imponente, mas desta feita muito mais sorridente. Andem, poupem-me a explicações, eu sei que os homens se perdem com simpatias, não deve haver nada melhor. Foto explícita, coco na mão, legenda ao lado, não vá o mundo perder a felicidade que expele dos olhos já sem óculos, há soluções muito mais charmosas, todos sabemos. Menos incómodas também, estamos lá para chatices crónicas. Vi-o ontem nesses propósitos, mesmo antes de hoje a vislumbrar novamente, saia travada, saltinho médio, filha ao colo, filha na mão, a pressa de sempre, a avó à espera, o dia que corre quase quase igual. Nem me perco a imputar acusações, tenho lá eu tal competência, muito embora pudesse tentar, sou mulher. Centro-me em poucas questões essenciais, ora vejamos: a maternidade é a melhor e a pior coisa do mundo, da paternidade não falo, não sei o que é; a minha vizinha de baixo, sempre atenta às minhas saídas e às minhas chegadas, está por ora ocupadíssima no amparo às netas e à filha, vai-me deixar para sempre em sossego, tenho para mim; a impertinência, concluo, é um problema que se resolve por si, deveríamos estar conscientes disso, de nada me valeu o cuidado nos saltos, o elogio da paciência, a tentativa de emitir um ar de pessoa que gosta da vizinhança, pelo menos quando comparado com a tranquilidade impelida pela ocupação interna e externa da senhora (o ócio não dá saúde a ninguém); a simpatia pode nascer tarde, quase aos quarenta, dizem que não sabem porquê, mas eu juraria que sei; as Caraíbas, são um óptimo cenário para tirar fotografias de gente feliz.
segunda-feira, 14 de outubro de 2013
géneros
Disseste-me ontem que distingo homem de mulher com uma forte veemência, de um lado uns do outro os outros, cada um com a sua tarefa a cumprir, distinta, fragmentada, definida por um critério impresso nas páginas dos tempos, como se esses não tivessem ultrapassados. Não estão, lamento dizer-te mas não estão, se é que importa analisar propósitos e tarefas de género, como se o corpo a sociedade e o espírito não se encarregassem por eles de fecundar caminhos distintos, sem discussão. Não me soa a estranho, não me impugna o encanto, sempre gostei de ser mulher, havendo o homem no lado oposto da barricada. De resto, nunca me perdi em discussões feministas quando as mesmas se constituem extremistas ao ponto de considerarem uma igualdade impossível de acontecer, muito além da razoabilidade dos direitos de dignidade, porque esses não se discutem. Porém parece-me importante referir, que se por um lado encaixo o homem no lugar do homem e a mulher no lugar da mulher, tenho cada um em muito boa conta, são metades, ambos existem em igualdade e em diferença. É por isso que me excluo completamente das que o julgam um mero enfeite doméstico, um acessório ligeiramente incómodo que serve para fazer biberões à noite, levar o lixo à rua e os miúdos à bola, segurar o comando da ZON e ir comprar pão quando chove. Para além das bilhas do gás, claro, que as plumas acho que já nem existem, e se existirem são transportadas às costas de meninas agradáveis, não nos interessam nada, portanto. Também não pertenço à classe das que os consideram uns palermas aturdidos por isto ou por aquilo que agora não interessa especificar, capazes de pensar pouco e de fazer ainda menos, reféns de um corpo que gosta de sossego e de comidinha a horas, na mesa e onde apetecer. Caramba, tu não sabes, se calhar eu nem te digo, mas tenho-vos mesmo em boa conta. Vocês podem ser sensíveis, pois podem, e não ficam com um ar frágil, ficam com um ar humano e nós gostamos, mesmo que seja sempre às escondidas do mundo lá fora. Vocês são inteligentes como nós nunca sabemos ser, uma inteligência segura de si, pouco dada a colapsos nervosos reservados para a outra metade do planeta. Vocês podem ser tolerantes ao limite do razoável, fazer orelhas moucas quando não devem mas também quando devem, quando as hormonas nos engoliram e notam-me muito a olho nu, nos gestos rápidos, nos olhares retorcidos, nos sonos agitados, nos gritos estrídulos. Vocês sabem ainda que um galanteio nos recupera do mundo dos mortos, aquele onde caímos por pouca coisa e de onde julgamos nunca mais sair, é impossível, muito fundo, tão escuro, irreversível. Vocês vivem a vossa vida e a de quem está próximo, passam pela alheia como nós passamos por carros de fórmula 1, e isso chega-vos e não querem mais. Nós não temos isto mas temos outras coisas, umas boas e algumas más. Uma certa complementaridade que há quem goste de frisar como incómoda, sem pensar que a única verdade é que se fossemos seriamente iguais fugiríamos uns dos outros, e o mundo, o pobre, morreria. Por tédio e ausência de multiplicação, ambas terríveis, abomináveis, desprezíveis, completamente evitáveis.
sexta-feira, 11 de outubro de 2013
frustrações
Não olhem o mundo com a ilusão interna da construção à medida, olhem-no com olhos de ver. Não o cheirem afastados ou demasiado próximos, ambos turvam a claridade exacta, tanto quanto é possível tê-la. Espreitem-no todos os dias sem critério de superioridade ou inferioridade, imiscuam-se nele, percorram-no por dentro e por fora, sem medo e com perseverança. Vivam-no, esmigalhem-no, observem-no com a minúcia detalhada da cirurgia que corta e repara, para que fique inteiro outra vez. Desiludam-se, sim, por muito que exerçam a tarefa ao rigor matemático a desilusão estará sempre presente, é assim que se constrói a realidade do lado de fora, que a outra é imaginação, idealização, construção interna crescida à medida da individualidade de quem quer o mundo redondo, com perfeita sintonia entre o mar e a terra, entre o ar e o céu, escorreitos em continentes pequenos e fluidos que percorrem o circuito exacto da sensatez que não há, mas que nós queríamos tanto, mas tanto. Insisto para que o façam de exacta forma comigo, peço que não me imaginem num ser que não habita senão na mente, e que encarem a frustração sequente de algum abuso atrevido, como aquilo que me faz gente. De outra forma, eu não existia.
(Às vezes não pensamos nisso, mas a frustração é o que nos torna reais.)
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
infertilidades
Espanta-me a leviandade com que pessoas escrevem livros. Aceito artigos de opinião, ensaios de pequenos textos, blogues, revistas, palavras seguidinhas com um propósito específico de carácter diverso, mas livros são outra questão. Um livro é um conjunto de folhas reunidas onde as palavras se encaixam para um propósito unipessoal, destinado a cada leitor que se deixe desafiar. É um aglomerado de factos, ideias ou histórias com capacidade para sacudir o mundo que nunca mais ficará exactamente igual, perante a novidade. É um conto fantástico e impossível narrado ao pormenor do detalhe, e deixem-me referir-vos aqui as intermitências de Saramago, não há exemplo melhor. É um encaixe encadeado em personagens inventadas mais próprias do que a pele que as escreve, por dentro e para fora. Quando pegamos num livro folheamos e cheiramos as folhas, olhamos a lombada, espreitamos o prefácio e a partir daquele exacto momento sabemos que a história também nos pertence. Em conclusão, um livro oferece imaginários, e oferecer imaginários é uma responsabilidade. A ligeireza com que hoje se vendem histórias só é comparável à maternidade imprudente. Mães que não são mães geram o corpo mas não geram a alma crescente, deixada sozinha ao Deus dará deste mundo. Não sabem o cheiro, não conhecem o choro, perdem a essência e não acodem aos medos. Em ambos os casos deveria reinar uma certa infertilidade.
motivações
No caminho encontro sequelas apagadas do que já foi. Cartazes rasgados pela fúria do tempo ou outra fúria qualquer, enfeites que definham no fresco do outono, promessas feitas e mortas num Domingo, dia de descanso, à medida que as horas passavam e contavam votos que derrotavam ou elegiam a proposta criteriosa de quem prometeu a vida, porque dava jeito. Fez-me lembrar o grande Skinner e a motivação, uma teoria excessivamente descredibilizada, não obstante a verdade que acarta em cada palavrinha descritiva. Será eventualmente a prova mais do que provada do poder do condicionamento em detrimento da cognição e da emoção humana, deveríamos considerar a existência frequente dessa possibilidade. Quando se esperam resultados positivos muda-se a cor ao céu, a forma ao mundo, promete-se dar o que não se tem e matar-se de morte matada a necessidade, o desemprego, a indignidade e a exploração. Quando já não se espera nada volta tudo a ser gente outra vez, vencedores ou derrotados, e o sossego percebe-se nas esquinas dos prédios, nas caras das pessoas, na normalidade da realidade, no que não há nem vai haver.
domingo, 6 de outubro de 2013
sábado, 5 de outubro de 2013
sobrevivências
Há muito que escorrego de mansinho pelos conjuntos de mães. Tropeço neles pelos corredores da escola, no portão da entrada, na pastelaria em frente, nas filas dos supermercados, temo que qualquer dia se tornem virais e me tomem à minha passagem, de emboscada. Falam entre elas das roupinhas que não servem, das tosses que nascem indesejadas a meio da noite, de professoras de matemática que não explicam convenientemente a matéria, de directores de escola que deveriam era estar a aprender relações humanas, de professores de educação física que sujeitam meninos a sacrifícios sobre-humanos, aulas debaixo de chuva, nunca foram pais, vê-se bem, se tivessem sido tudo isto lhes faria doer. Encontram-se normalmente de braços cruzados mas de pose preparada à movimentação efusiva, à demonstração por gestos de todas estas desgraças que atacam as criancinhas da casa, indefesas, uns seres pequeninos para sempre que necessitam de guarda próxima, detalhada e partilhada, discutida em praça pública ao mais ínfimo pormenor do detalhe. Como eu, há umas poucas, certamente apelidadas de demitidas. Percebo-as à distância, olham só para o filho quando o acompanham e dizem bom dia às que ficam sem abrandarem o passo, abrandar o passo pode sempre ser a morte do artista e representar a necessidade de permanência forçada na roda das decisões que urgem ser tomadas na hora, no dia, debaixo da chuva ou do sol, para posterior reconhecimento por quem de direito, a directora de turma, figura também ela ligeiramente hedionda. Num ápice entramos no carro e escapamos dali, e deixamos para trás aquele cenário inacabado de cabeças pintadas de cores distintas, as verdadeiras guardiãs dos filhos, delas, dos outros, dos das terras vizinhas e dos do mundo no geral.
Não fosse a meia dúzia que encontro e ficaria deprimida, não há como a pertença para nos segurar a permanência. Assim, e no seio da demissão, sobrevivo todos os dias, ao vê-las passar por mim.
( Curiosamente, e aquando da necessidade de intervenção efectiva e verdadeira, raramente oiço alguma, calam-se, apagam-se, encolhem-se num canto estranho e desaparecem, todas em conjunto, à espera. )
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
personagens
Há muito que lhe sigo a história delirante do namoro escondido ao mundo com um dos elementos dos Onedirection, que não sei quem são. Já li linhas e linhas de dizeres projectados e construídos na ideia impossível de concretizar, já a chamei ao mundo e já sonhei com ela, já quase consegui experimentar os sentires que delineia num fanfic de personagens reais, o único local público do mundo onde a sua vontade existe mesmo. É nele que o conhece na saída do metro de Londres, é aí que ele repara nela e se apresenta, a leva pela mão e lhe oferece umas flores enquanto conversam em Italiano, um pormenor que faz a história, mas que não faz a felicidade. Felicidade são os outros, claro, as mãos que tocam, as palavras que se dizem, a fabulações imiscuídas em macarrones doces e coloridos que sabem a chocolate sem que saibam, muito embora possam saber, não sabemos, nunca saberemos sem antes provarmos. Há coisas, admito, que se podem julgar conhecer. Há fantásticos que se ousam ter, vivenciar, provar, sentir a que sabem e a que cheiram, esventrar devagar e deslindar o que sonham, o que pensam, o que comem e o que ambicionam, o que temem e o que renegam, o que querem e o que tocam. Acabo por ficar sempre muito satisfeita quando encontro adolescentes capazes de divagar assim, uma permissão concedida para o mundo dos sonhos acordados, uma experimentação clandestina dos ídolos que se penduram em forma de poster na parede do quarto, que se olham e que se acariciam com os olhos à distância de coisa nenhuma, estão lá dentro, são delas, só eles não sabem disso. Depois tudo passa com a idade. Ou não passa, pois, permitindo a quem conjectura uma continuação de uma personalidade ingénua o suficiente para que viva agarradinha a fanfics naïfs, escritas por cabecinhas desocupadas em papel pardo ou em ecrãs de computador abertos aos olhos do mundo, este lugar onde podemos "quase ser" tudo o que quisermos, sem sermos. Nada contra, claro, são opções. Apenas penosas, suponho, quando a personagem basta por si.
dos luxos
Ainda continuo na dúvida existencial entre o dinheiro e o tempo, na classificação internacional do luxo. Hoje pensei nisso quando trouxe o jornal que não li por falta de tempo, a alguém com horas vagas que não o pode comprar. Abriu a janela, sorveu o ar com cheiro a humidade, encostou-se numa cadeira carunchosa e deixou-se estar, com tempo e sem dinheiro nenhum.
( Isto foi escrito há uns dias mas não foi publicado, por falta de tempo e paciência. Entretanto, e por portas travessas, descubro outro luxo muito mais importante: a lucidez. Levem-me o pouco dinheiro, roubem-me as réstias do tempo, mas deixem-me a lucidez fora disto. Não há nada mais incómodo do que observar a sua inexistência, aqui e ali, em apontamentos extraordinariamente frágeis, alucinados, pequenos de meter dó.)
( Isto foi escrito há uns dias mas não foi publicado, por falta de tempo e paciência. Entretanto, e por portas travessas, descubro outro luxo muito mais importante: a lucidez. Levem-me o pouco dinheiro, roubem-me as réstias do tempo, mas deixem-me a lucidez fora disto. Não há nada mais incómodo do que observar a sua inexistência, aqui e ali, em apontamentos extraordinariamente frágeis, alucinados, pequenos de meter dó.)
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