sexta-feira, 25 de outubro de 2013

requerimento

Carlos é um homem pequeno. A genética ficou-lhe com uns bons dois palmos, desenhou-lhe uma cara pincelada excessivamente feminina, deu-lhe uns braços tímidos e um ar acanhado, um trinta e oito de pé, mais coisa menos coisa. Passeia-se pelo hospital com o seu carrinho da correspondência, encontro-o no piso três, sai do elevador, dirige-se ao secretariado, encosta a viatura, lambe os dedos diminutos, escolhe a correspondência endereçada, bate na porta com dois toc tocs ritmados, não ouve resposta e entra, poisando no balcão os envelopes gigantes carregadinhos de radiografias, ecografias, tomografias e outros meios auxiliares de diagnóstico. Não consigo deixar de o imaginar nos outros pisos, todo o dia acima e abaixo num ritual repetitivo, a chamada do elevador, a selecção do piso, a saída, o secretariado, o estacionamento, a humidificação dos dedos, a separação, os toc tocs, a entrada, o regresso. De repente, e no meio dos pensamentos, estranhei um esgar que emitiu, acabei por perceber que estava indignado perante uma senhora que surge na sua frente, dona Lurdes, fiquei a saber. Um horário trocado, um requerimento que deveria ter sido feito e não foi, uma equipa que deveria funcionar e não funciona, um centro hospitalar que deveria ser gerido por homens e é gerido por miúdos, daqueles que ele tem lá em casa. Esbraceja e gesticula efusivamente para dona Lurdes que o escuta, na hora da bica, carteira na mão, máquina em frente, acenos de cabeça, concorda com tudo. A ele até lhe dava jeito, a miúda entra às oito, às oito e meia estava ali, tinha uma hora de almoço, saia mais cedo, só tinha a ganhar, mas ninguém fez o requerimento, o centro hospitalar que deveria ser gerido por homens é gerido por miúdos, daqueles que ele tem lá em casa, repetia. Sim sim, sr Carlos, acena ela, moeda na mão, na hora da bica, em frente à máquina do café. Iniciei internamente o circuito de volta, mas o sr Carlos prosseguia afincada e lentamente com o discurso da indignação, a meio do qual começou a abanicar o corpo e a impulsionar-se para a frente, dedo em riste, ar quase demolidor, pés pequenos de um lado para o outro, braços tímidos agitados. Confesso que ali a meio comecei a ficar assustada com a sanidade do sr Carlos, que repete o seu dia ao pormenor do detalhe. Mudam os nomes, mudam os pisos, mudam as doenças e mudam os pacotes, muda quem morre e muda quem nasce, mas o resto é sempre igual. Fez-se de tal forma à repetição da existência que a estendeu ao seu quotidiano, não consegue validar ideias sem a exaustão do raciocínio, morosamente. Não aprecio pessoas repetitivas que reclamam o rigor do segundo. Podem ter razão, aceito que a tenham toda, mas perdem-na, enterram-na, dão cabo dela quando a expõem assim demoradamente, no meio de um corredor onde passa gente que ouve durante longos minutos, os poucos que não se podem perder. Não quero os meus exames no carrinho do sr Carlos. Não quero ser mais uma na efusividade da sua existência, transportada fora de horas que não foram requeridas num carrinho de ferro conduzido a contragosto, por um homem pequeno e repetitivo. Amanhã, bem cedo, vou ao hospital meter o meu requerimento.  

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