quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Quase indignada

Tenho-me mantido meio em silêncio quanto às diversas medidas do governo. Aperto os cintos que tenho a apertar, encolho o estômago e emagreço o corpo (cof, cof), aqueço-me com um cobertor e esqueço o radiador, não seco roupa na máquina e se o faço, aproveito a noite e a tarifa bi horária, quase quase extinta. Não vou trabalhar a pé só porque ainda não consigo correr trinta quilómetros por dia e lavo-me com água quente, por enquanto, que os senhores do gás são uns simpáticos que resolveram bloquear-me o contador numa leitura sempre igual, ou seja, tenho-o de borla. Entrei de cabeça na crise e na austeridade, nos cortes e nas contenções, tal e qual como se fosse um projecto muito meu o deste País que se afunda devagarinho, deixo trabalhar na recuperação quem supostamente sabe o que faz, acolho as medidas impostas e pago com o meu trabalho, o meu suor, a minha dedicação, e nunca me encosto para ver o barco a passar em frente aos meus olhos. Não tenho reclamado, encaro como necessidade, e mesmo que não encare, ajo como se fosse, e até, confesso, me irrito com frequência com os excessivamente indignados que se revoltam contra o governo, contra a Alemanha, contra o sol e contra a chuva e ainda contra as meias que calçam todas as manhãs. Mas depois há dias em que eu mesma me canso desta minha acomodação, e em que me apetece perguntar a quem manda, mas que raio é isto? Quando oiço cortes na educação estremeço, tal como estremeço quando oiço cortes na saúde, por serem pilares demasiado importantes e já consideravelmente fragilizados. E parece-me isto tão básico, que não entendo como é que se consegue considerar a hipótese de se vir a taxar o ensino secundário. Provavelmente, e antecipando vozes que por certo se levantarão perante a onda de indignações, virá breve a público a informação de que a existir, se tratará de uma propina pequena, quase insignificante, uma migalhita de nada que só surtirá algum efeito por ser abrangente e por sair do bolso de toda a gente. Poderão até existir situações de bolseiros, aqueles sortudos que por serem ainda mais pobres não vão pagar, ou vão pagar menos, para conseguirem concluir o obrigatório sem definharem pelo caminho. O que parece que ninguém pensa é que retirar mais migalhas a pães já secos poderá não ser boa política, e ainda que se o País está tísico e empobrecido deveríamos pelo menos continuar a educá-lo, iluminando as mentes e abrindo as portas ao mundo. Para que daqui a uns anos possamos continuar a emigrar, tal e qual nos indicaram algures, sem ser só para irmos fazer o que ninguém quer, mas também para sermos cientistas, biólogos, paleontólogos, e por ai fora.

( Retirem deste texto os excessos. Por vezes também me acontece, é o que é. Aproveitem-lhe a ideia base e esqueçam o resto.) 

...


( Roubado do Facebook. Lembra-me umas bolas de chocolate que me enfeitavam em tempos a árvore de natal. Constituíam a minha única ânsia para que a quadra findasse. Só aí, eu podia comê-las.)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Fandango

Existem pessoas que julgam que o mundo cai a seus pés mal elas passam na estrada, as portas abrem, os carros param, os tapetes estendem-se e ficam vermelhos de repente, mesmo que sejam pretos, azuis ou às bolinhas. Não quero saber disso, estou-me nas tintas para os supremos da existência, os que atingem aquele lugar de topo onde o vento parece ser forte e levar com ele todas as ideias, todas as capacidades, tudo o que é sensato, e apenas deixa a opacidade de uma caixa rodeada de ossos e sem mais nada, onde só prolifera rataria e nichos de supremacia. Por mim podem até deixar-se estar nos píncaros da existência, inatingíveis, magnânimos, capazes de ser donos deste mundo e do outro, de governar a aldeia, a cidade ou o país, de ficarem plantados no campanário da igreja a ouvir o sino tocar nas orelhas e a sentir as rajadas a sacudir-lhe os interstícios da alma. Só não consigo muito bem perdoar, a eles e aos outros, o excessivo mando que por vezes emanam. Faz-me lembrar Fernanda, uma criatura matriarca com quem tive o desprazer de trabalhar um dia. Não havia gente que não vergasse na sua passagem, que não lhe venerasse os ditos, que não absorvesse o que dizia como se daquela boca nascessem apenas e só doutrinas absolutas, suficientes para que o mundo girasse a seus pés. Até na dança do rancho, num grupo que quase lhe pertencia. O fandango, por exemplo, das minhas favoritas e uma das que toda a gente admirava, era o primeiro a desaparecer do rol mal os azeites da senhora desciam em si. Irritava-a os passos certos e ritmados dos moços que saltavam no palco a estremecer as tábuas do chão, ficava vermelha de cólera contida nas carnes gordas e flácidas, eriçavam-lhe os cabelos amarelos e encrespados que lhe guardavam a cara redonda e gigantesca que nunca sorria. Hoje, não há fandango, gritava, e todos obedeciam. 
Um dia apareceu-me a arfar pela casa adentro rodeada de vestes pretas do Minho, carregadinha de oiro até ao pescoço. O seu Zé estava a passar mal, não suportou as reviravoltas da dança, não aguentou o vira da nossa terra e não teve braços para acolher Fernanda, a grande, e para a fazer girar até ao infinito da dança, que terminou logo ali. A tensão tinha disparado pelo corpo acima, a língua tinha-se enrolado para dentro, os olhos tinham-se revirado e só o pronto auxílio de muito povo permitiu ao Zé continuar na terra dos vivos, a abraçar Fernanda. Por momentos ainda julguei que a aflição e o préstimo das gentes lhe amansasse o corpo. Lhe comesse alguma bravura do ser, nem que fosse coisa pouca, e a fizesse olhar pessoas como pessoas e  não como uns quaisquer palermas que giram trôpegos à volta de si, a bailar ao toque de músicas cantadas numa única voz, sem reco-recos, sem pandeiretas, sem bandolins. Palermice da minha parte, pura ingenuidade, que já deveria na época saber que quem é muito grande dificilmente sente para além dos minutos da aflição e da gratidão, meros instantes rapidamente esvaídos na grandeza do que se julga ser. 
Ouvi dizer que o rancho ainda dança e que o fandango ainda cessa. Eu por cá, continuo a gostar de o ouvir. E de o ver, dançado a preceito e por quem o saiba fazer, com os pés retrocidos e cadenciados, toc, retoc, toc toc. Ora vejam só:



Chuva

A chuva insiste em baptizar-me horas que escorrem sem demora junto com ela, nas estradas invadidas de folhas de outono. Juntas fogem depressa, escoam-se nos ralos limpos da rua que sorvem famintos o líquido forte. Abranjo plenamente o desejo da natureza, compreendo-lhe a ânsia desaforada em levar para dentro de si grandes momentos, perdoou-lhe até a ousadia em preservar para ela os que eu guardaria ao infinito de mim. Mas a poder, roubar-lhos-ia, confesso. Derramar-me-ia concomitantemente, respiraria o cheiro, sorveria os sentires até aos limites do meu corpo e fundir-me-ia clandestina, nas gotas da chuva e do tempo que nos leva. Devagarinho, e só até mais logo.

( Gosto da chuva. Não penso muito sobre o tempo e suas vicissitudes. Ainda assim continua-me um conceito estranho. Um vazio onde nos movemos balançados, ora para um lado, ora para o outro.) 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Pastel de nata

Pela manhã discutia-se na pastelaria o preço e a qualidade do papel higiénico. O do Continente é o mais barato, mas não é de boa qualidade. O do Lidl, das florinhas azuis, é mais caro mas é muito resistente. Também sei destas coisas, atenção, só que nunca me apetece trazê-las para a mesa do café da manhã. Um pastel de nata, por exemplo, é sempre melhor companhia do que o conjunto das donas de casa que insistentemente me querem à mesa, a fim de partilharem comigo a loucura dos preços baixos. Nunca entendem que eu me sente na mesa ao lado, sozinha e tão sossegada. 

(Mas por vezes assumem-se como uma sumidade em orientação específica momentânea. Há dias em que dá um jeitão encontrar logo pela manhã um conjunto de distintas senhoras que sabem exactamente onde eu posso encontrar o bacalhau mais graúdo, a carne mais tenra, o skip confort dois em um ou o Bolo Rei com mais frutas cristalizadas, tudo ao melhor preço do mercado. Nesses dias disfarço o meu desapego e costumo sentar-me. No fundo somos todas felizes assim, muito mais do que seríamos se eu diariamente forçasse o meu corpo ao martírio. Por esta hora teria por certo ultrapassado a razoabilidade da minha existência e já as cuspiria pelos olhos, todas, em escadinha. Já nunca me sentaria na beira delas, já não faria companhia circunstancial em proveito meu, já não saberia onde me deslocar aquando de alguma necessidade específica. Já teríamos fugido umas das outras, por causas distintas, definitivamente. Devo ainda enaltecer aqui o papel preponderante do pastel de nata. Ele merece.)

domingo, 25 de novembro de 2012

Julieta


Não percebi o porquê da bicha deitar a língua ao fotógrafo que a guardou dentro da máquina. Uma delambida, grande vaidosa. Ainda menina, note-se. Só isso justifica o facto de não se deixar ornamentar com uma coleirinha vermelha de guizo a condizer, que a teria deixado um charme que só visto. Uma maçada, coisas de gente crescida.

(Não sei se lhe deva relevar esta e outras ingratidões ao fotógrafo. Ele, por sua vez, parece-me que já lhas perdoou.)

Alberto

Morreu o Sr. Alberto. A meio de um noite de Sábado para Domingo, mais precisamente às quatro da matina, a lanterna que percorre os quartos e aponta para as cabeças que respiram devagar e cansadas estremeceu e denunciou que ali já não havia vida. Para nada serviam insistências inconvenientes, não valia a pena abanicar-se o corpo até à exaustão do cansaço, um velho hábito despropositado que se tem com insistência na vã esperança de que o coração volte a cumprir o seu propósito, neste caso sempre certo, de há cento e dois anos a esta parte. Não respira, diziam-me. Tem a certeza?, pergunto ao longe, já colocou a mão em frente ao nariz? Tenho dizem-me. Então deixe, morreu.
Alberto era um velho que casou três vezes e enviuvou outras tantas. Já não dizia grande coisa, apenas comia e acenava com a cabeça para um lado e para o outro enquanto a escrófula lhe pendia para a frente, cada vez mais saliente. Sempre tive o hábito de lhe afagar o cabelo, dar-lhe os bons dias, fazer-lhe uma festa, muito embora eu soubesse que nunca obteria resposta, mas devo confessar que aquela protuberância no queixo me importunava. Isso e uma acentuada inclinação do seu corpo para o lado esquerdo. Há muito que não conseguia estar direito. Colocaram-se almofadas, cintos de imobilização, mudaram-se assentos, enfim, utilizaram-se as artimanhas ao alcance para o conseguir erguer, mas sempre em vão. A cada dia que passava a sua inclinação acentuava consideravelmente ao ponto da escrófula lhe acompanhar a tendência, dependurada para o lado cadente do corpo. Estava realmente velho.
Vêm lá os corvachos, diziam-me há dias, há morte para breve. Não liguei ao assunto, assumo. Faço sempre orelhas moucas para as crenças populares, insiro-as todas no saco da nescidade, armo-me da lógica que me governa e sigo em frente ciente de que neste mundo não há bicharada, fé ou habilidade que me supere o rigor da existência. Mas às vezes questiono-me a mim mesma. Penso para cá com os meus botões se não seria melhor dar ouvidos às bocas que crêem nestas verdades, nascidas dos anos que correm sem nexo e sem explicação, mas tão certas ou quase como aquelas que conseguimos escrever nas quadriculas absolutas dos cadernos da escola. Ou no mínimo assim são proclamadas. E por vezes, tantas vezes, cumpridas.
(Morreu a dormir. Do melhor que há, segundo oiço dizer frequentemente, de bocas que nunca morreram.)

sábado, 24 de novembro de 2012

...

( as imagens chocantes apelam mais. será? esperemos que sim...)

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Gertrudes

Não gosto de palavras recolhidas à força pela brutidade da minha boca. Ficam presas algures entre a língua e o estômago e provocam-me um refluxo gástrico considerável que me desconforta desde a planta dos pés até ao pico do cérebro. Quando tal coisa me acontece, quando uma parte de mim ordena ao resto que se cale, lembro-me sempre de Gertrudes, a sábia. Gertrudes era uma velha que vestia preto não por devoção, mas por deferência. Tinha o estranho hábito de clamar a céu aberto, sempre que se proporcionava, um cala-te boca que se ouvia até à aldeia vizinha, caso o vento estivesse de feição. Determinara em tempos e sob diversos propósitos, que haviam palavras que não eram para ser ditas, situações que deveriam ser abafadas, verdades que tinham de ser mortas ainda antes de o serem. Sabia muito a malvada velha, mas era um ser fechado que chispava dizeres só com olhos. Percorria a aldeia desde o salão das festas até ao cemitério, munida de um carrinho de mão onde transportava todos os utensílios que precisasse para a serventia do dia, ao mesmo tempo que ia engolindo muito do que tinha a dizer, um bocadinho de cada vez, empurrado com jeito por um respirar mais profundo que arrumava palavras em míseras reentrâncias, ainda livres. Cruzei-me com ela vezes sem conta e assustava-me sempre com o seu ar de exagerado inchaço. Tinha bochechas gordas, ventre opado, uma garganta demasiado saliente e umas pernas balofas prestes a rebentar, tal e qual um chouriço tosco alentejano. Um dia, morreu. Ninguém sabe ao certo porquê, ia a meio de uma caminhada entre um sitio e outro quando deu um grito estridente e caiu para o lado, levando com ela para todo o sempre toneladas de palavras presas ao corpo. Do lado de cá, e por entre as centenas de pessoas que a velaram, ficaram orelhas secas do pouco que ouviram. Do lado de lá, uma alma entupida de frases retardadas responsáveis por um eterno amargo de boca, uma acidez alojada nos buracos das gengivas descarnadas e nos dentes apoderecidos, uma língua retorcida de contrariada que Gertrudes eventualmente ainda guarda, tísica, nos restos de si. De vez em quando, e à medida que se funde de uma vez com a terra, deixa soltar meia dúzia delas, desta feita ao Deus dará. Sei disso porque há dias, em que juro, me passam perto. Sinto-lhes o peso e o cheiro bafiento, húmido e forte, agudizado pelo tempo e pelo caixão que as prendeu até ao dia da soltura. E pela podridão de Gertrudes, a sábia. Finalmente, quase quase vazia. 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Raízes



(A paixão é aquela coisa que nos resvala do corpo aturdida em adrenalinas transeuntes, que se afoga em instantes fugazes capazes de nos matarem à velocidade de um pelouro. O amor? Ora, o amor mora-nos dentro do peito, residente, de raízes varonis que nos cercam de vida, na existência do sempre. E então, escolhemos ficar.)

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

(...)


Os dias servem-me o nobre propósito de te encontrar numa estrada que cruza a árvore dos figos com o rio que nasce gelado, nas montanhas íngremes da serra verde. Por ora as fendas parecem largar cá para fora o ímpeto intimo da terra, jorros de líquido ensandecido que se recolhe por fim em sossego, no leito estreito e tortuoso que corre por entre os vales das terras esquecidas, as pontes de pedra tosca, as casas vivas só no antigamente. Não sei muito bem se as prefiro no Inverno ou se no verão. No verão encontram-se consteladas de flores, de vacas que comem pasto, de memórias de bicicletas de pedais e cestos de merendas com doces e pão. No Inverno tudo fica diferente, ainda que num mesmo lugar. As flores dão lugar ao infinito da água embaciada, no restaurante da encosta escorrem fios húmidos com cheiro a molhado, as pontes morrem sob a fúria que explode ao lado. Os caminhos? Esses hibernam e guardam-se do tempo, até que alguém destemido os descubra e os acorde outra vez.

sábado, 17 de novembro de 2012

das horas

Por vezes amanhece tarde, como se tal fosse possível. As manhãs nascem sempre a seguir às noites, exactamente onde devem nascer, a não ser quando alguma hora se estende ao infinito e se transforma em tempos esquecidos que não andam, em vidas presas que não saem, em suspiros arrancados a ferros por movimentos cansados. Cansa quando nos amanhece tarde e o nosso corpo ressente a demora, arfa de desejos cingidos aos dias que correm em compasso, agora um, depois o outro, numa melodia tocada em desespero por um instrumento qualquer. Afinal é possível a dissonância. As manhãs da hora certa só nascem todos os dias com o clarear da aurora, nascem no calendário que temos pendurado na porta do frigorífico da cozinha que olhamos de relance entre o iogurte magro e o haagen dazs, ou nos iPhones que tocam aos ouvidos para lembrar que é agora, um despertar que nos acorda quase sempre sem querermos. Mas o nosso corpo tem horas sentidas. Vive de outras manhãs e de outras noites, completamente perdido entre o tempo que quer e o tempo que tem, um contrabalanço que o obriga a adiar para a noite o que não pode ser cedo. A pedir um desejo, a deixar que em mim entrasse a utopia, e poderia muito bem considerar a questão. No cardápio escolheria um meio dia fresco, uma sesta dormida depois de um almoço farto, um sol só morno mas sem fim à vista numa chaise longue perfeita onde caberia o que eu quero. Eventualmente, mais logo, far-se-ia noite. Sakamoto no piano, sempre. E um Dom Pérignon a acompanhar. 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

90



" as palavras proferidas pelo coração não tem língua que as articule, retêm-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se podem ler"
José Saramago

Podia ter chegado aos noventa, hoje, não foi o caso. Deixou-nos um legado precioso transposto em letras, do mais rico que há. Aquela ali é uma, não só porque sim. Mas há mais. Muitas mais.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

(...)

Há muitos dias em que me canso. Canso-me das palavras brandas, dos olhares vazios, dos intentos impressos em dizeres que se apagam antes do próximo respirar, da espera dos afagos que se prendem a quilómetros de distância, ainda que nos meandros se esfalfem, bofes de fora, pernas corridas, para que cheguem rápido à beira de mim. Há dias em que me farto dos velhos que morrem devagar em cadeiras de costas direitas, que vivem os dias e as horas ao rigor do segundo, que esquecem que o tempo é aquela grandeza completamente indexada ao sentir, ou seja, para eles é muito, para mim é coisa nenhuma. Ou vice versa, depende. Há dias em que me canso das razões absolutas que nascem de gente igual a mim que não tenho nenhuma, mas que lhes sobem garganta acima com veemência, para destilar a sete ventos, como se o homem já tivesse descoberto tudo o que há para descobrir. Há dias em que me farto de mim e das minhas fraquezas, pequenas brotoejas que me comem por dentro com uma voracidade de leão, e que pungem um liquido fétido que eu deixo escorrer pela pele, pelos olhos, pela boca, sem que ninguém prove, ninguém sinta, ninguém cheire. Há dias em que não queria o mundo tal e qual ele é, com vontades guardadas por celas perfeitas impostas pela vida, coisa que não se vê mas que pode mais do que tudo o resto que possamos conhecer, que manda e desmanda nos corpos que caminham em filas seguidinhas rumo ao sítio que desconhecem mas que querem muito, por vezes esquecidos de que basta ela não querer. Por vezes canso-me, só isso. E canso-me ainda mais quando a impotência me arruma com os pés para o chão, quando oiço os discursos da calma e da sensatez, pequenos nadas, míseras palavras mortas e apagadas pela minha vontade, acesa, fugaz, peremptória, mas ao mesmo tempo tão miserável.

( mas depois há outros. quando as horas inquietas me aproximam do abraço esperado que nunca mais vinha, quando nuns olhos apagados encontro esgares de luzes arrancadas de coisas tão pequenas como nada, quando o meu filho me sorri e me conta as histórias do dia. e parece-me tudo tão fácil que até arrepia.)  

in/compatibilidades

A minha gata deveria ser uma gata elegante como todos os gatos, deveria passear-se pelos recantos da casa sem alagar as flores e as estatuetas que me enfeitam a zona de conforto, deveria cruzar a minha mesinha de cabeceira de norte a sul sem derrubar os livros que repousam em noites esquecidas, sem qualquer tipo de préstimo. Não me lembro da última noite em que abri bem os olhos para sorver os contos inacabados de Javier Marias, uma delicia de capa verde enfeitada com uma senhora de espartilho e um toucado na cabeça, uma das mais belas indumentárias femininas de todo o sempre, e recheada de letras que se juntam com o propósito de nos transportar a mente muito além do que se diz e do que se conta, ou seja, nos acordar no exacto local onde queremos despertar do natural estado de vigília para chegar a um outro, guiados a jeito por letras que se acabam, criteriosamente, antes do tempo. Lembro-me por exemplo da minha outra gata, branca e de olhos azuis, que conseguia a arte felina de se passear no meio de tudo sem que nada a pressentisse, uma elegância feminina que só visto, um passear subtil e ao mesmo tempo imponente, irrepreensível. A esta, julgo-a eventualmente desadaptada. Uma estranha forma de vida que encarnou num corpo pequeno e muito bonito, que esbarra com força nas portas, nas paredes, nas mesas, nas pernas do meu filho, em mim. 
Falo por ora num homem. Um homem que é homem há trinta e alguns anos, do qual sempre esperaram qualquer coisa que ele quase conseguiu ser. Não era o que ele queria, ele queria ser o que é neste preciso momento, altura em que deixou de ser sentido como útil, para passar a ser visto como um incómodo. Não que ele não tenha utilidade, que se note, mas tem uma utilidade desnecessária para ela, ainda que indispensável para ele. Incompatibilidades diversas, se é que me explico, se é que me entendem. Mas por que raio é que as outras hão-de ter um homem com um H muito grande, que bebe cervejas e vê televisão no sofá com um comando na mão e um cigarro na outra, e o dela há-de agarrar o ferro de engomar quando ela de repente se ausenta, por minutos, por instantes, por escassos segundos, bocados de nada que quase lhe roubam do corpo a única condição que concebe para si?

( Uma gata deve ser elegante, um homem deve ser um homem, uma galinha deve ser uma galinha e se cacarejar, melhor ainda. Agora mais longe. Um pássaro deve cantar para os nossos ouvidos mas não em exagero, um cão deve encher-nos de lambidelas aconchegantes quando nos apetece, e as outras pessoas devem dar-nos o que precisamos, mas só mesmo quando precisamos. E basicamente é isto.)   

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

(...)

Nem sempre o que somos nos passa pela pele. Do lado de fora temos o nosso mundo que se vê, somos braços e pernas, cabelos e pés, mãos e narizes, umbigos e bocas. Conhecemos a preceito o que temos de bom e o que temos de menos bom, disfarçamos as imperfeições, enaltecemos as outras, arrumamo-nos  num conforto construído com base na lógica, na coerência, no que sabemos que se vê, e lidamos com esta entrega desde que nascemos até que morremos. O resto, o resto sente-se, o que deve por si só ser motivo suficiente para acreditar. E nós acreditamos. Quem de nós não acredita nos medos que sente perante os dias, as pessoas, as dúvidas ou a morte, ou no crescer do ânimo na paixão e no desejo? Acreditamos, são pertenças de direito, são bocados do self que nos reside do corpo para dento e que nos corre no sangue, não temos como negá-lo. Deixar transpô-lo, a nu, cá para fora, pode porém ser um desafio. Não perante o outro, mas perante nós. Não é o que outro possa saber que nos prende cá dentro. O que nos prende cá dentro é o que poderemos sentir na sequência, despidos de pele.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Rua

Já encontrei sobre ela inúmeras fotografias a preto e branco onde se podem ver bicicletas a pedal, pessoas, uma fonte que deita água em repuxo no centro da praça. Muitas portas abertas com vitrinas imensas recheadas de casacos de fato e calças vincadas, chapéus de aba, tecidos e vestidos de chita floridos. Por vezes em fotografias encontro vida. Encerram histórias, movimentos guardados num clic impresso em papel brilhante que cuida para todo o sempre instantes únicos, como se perpetuasse ao infinito o rigor dos segundos, a criança que sorri, o velho que pedala, a senhora que olha e cobiça a montra bonita. Hoje passei cedo. Na rua a vida aparece como que esmorecida, apagada debaixo das memórias de uma cidade que já foi bem mais ocupada. Na loja dos três balcões, local que frequento com alguma assiduidade, encontro o senhor de sempre, misturado no espaço que já é seu por direito, munido do metro que mede os tecidos empilhados em filas garridas por detrás do mostrador. Continuam a existir inúmeras caixinhas de cartão com botões coloridos, pequenos e grandes, de plástico ou forrados a tecido, com ou sem buraquinhos. Uma delicia. Continuam a existir os carrinhos de linhas de costura, de renda ou de bordar, agulhas e alfinetes, lenços de bolso com iniciais bordadas, entremeios e fitas estrafor, para além de uma considerável panóplia de artigos de vestuário feminino e masculino, de criança e de recém nascido. Normalmente compro sempre a mesma coisa. Um metro de um, outro metro de outro, eventualmente ainda mais um. Dois dedos de conversa, o comércio fraqueja, a rua fica, devagarinho, vazia. Agradeço a simpatia, saio, e no portal de pedra quase esbarro no louco. Falava muito alto, gesticulava efusivamente com os braços, sacudia a longa cabeleira encardida para trás das orelhas e sorria muito, provavelmente feliz. 
A rua estava quase deserta. Lojas fecharam, dói-me francamente o coração. A loucura, essa, não sei se ainda me incomoda ou se já não. 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Interregno de segurança

( Luís Onofre - o que é nacional, é bom...)

- Ai filha, não sejas tão maçadora... ( dizia a minha avó quando eu debitava palavras em demasia.)

domingo, 11 de novembro de 2012

Vento

Estava um vento muito frio. Embrulhada calcorreava o passeio de pedra grosseira, raiada a riscas e desenhos azuis escuros que formam o brasão do Município. Houve uma vez, lembra-se perfeitamente, em que encontrou os estudantes universitários a contar as pedrinhas brancas, imensas, a maioria, enquanto no redor um pequeno grupo dançava a dança da chuva até que chovesse debaixo do sol de inverno. Não parariam até que tal acontecesse, ou até que algum veterano ordenasse. Não parariam ainda a contagem até que o número fosse exactamente o verdadeiro, apurado ao calhas por algum iluminado, ou até que algum veterano ordenasse. Não cessariam também as cervejas, nos que olhavam e governavam embrulhados em capas pretas, devidamente acomodados debaixo do toldo verde do café ao lado, até que a vontade as quisesse. Nada pararia. Ela também não. Caminhava apressadamente no tardio da hora, precisava de um jornal onde lesse isto e aquilo, de um café que a trouxesse de volta ao mundo além dos sonhos, precisava ainda de levar com o vento na cara, muito embora não goste dele, sente-se sempre afrontada pela sua impertinência. A chuva, por exemplo, permite-lhe a resguarda debaixo de um chapéu de lacinhos que se enrola numa fitinha quando não apresenta préstimo, e que lhe compõe a indumentária. O sol, e por sua vez, consegue ser estorvado por um chapéu de aba larga, naturalmente de verga, que enfeita a cabeça das mulheres com uma elegância ímpar. Mas o vento, esse endiabrado, insiste em causar-lhe transtornos, em  incomodá-la muito além daquilo que ela consegue compor e controlar. Não obstante, e ainda que presumido, não se verifica suficientemente capaz de lhe limitar os propósitos. Eventualmente uma questão de tira-teimas, um ganhas tu ou ganho eu, um jogo que ao fim e ao cabo não apresenta vencidos nem vencedores. Fico a olhá-la ao longe a fingir que espreito a imensidão do vazio. Vejo-a, cuidadosa, a ajeitar a roupa para mais perto do corpo. Abriga-se dele, do vento, esse endemoniado, não vá o estupor ter a ousadia de lhe roubar o cheiro que guarda da noite, já com um travo de saudade, colado nas entranhas da pele. Nunca lhe perdoaria.

A minha opinião.

Nem sempre me apetece focar assuntos polémicos. Mantenho-me normalmente à distância do que me parece ser razoável em medida de opinião, uma vez que estas são sempre pessoais. Mas existem assuntos que excedem o razoável. Já ouvi o discurso de Isabel Jonet de fio a pavio. Já li blogs, jornais, vi redes sociais, já falei e já ouvi. E parece-me, honestamente, que algum equivoco se instalou na situação. Primeiro, faz-me todo o sentido o que ela disse. Segundo, o que ela proclama em termos de gestão de recursos familiares já eu faço há muito, porque é assim que quero, acho, e tenho de fazer. Terceiro, ainda que ela se tivesse verdadeiramente excedido, o que volto a dizer, não considero, de forma nenhuma merecia ser alvo desta onda de indignações. Ser voluntária no Banco Alimentar, conhecer a realidade da pobreza do País, dar-se a esta causa nobre durante anos a fio é para poucos. Encontrar-se na liderança de uma causa que ajuda a pobreza, é para menos ainda, porque acarta repercussões diversas a vários níveis, por vezes difíceis de gerir. Como esta situação, por exemplo. Situação à qual ela nunca se sujeitaria se estivesse, como a maioria de nós, sentadinha no sofá a beber cházinho e a comer bolachinhas com pepitas de chocolate,  fartos de palavras vazias, enquanto na televisão, nas ruas e no País, outro alguém desse a alma e o corpo ao manifesto.  

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Frio

Que nada é por acaso, já todos sabemos (sabemos?). Esvai-se tal facto da memória, puro esquecimento, desatenção aos pormenores, estratégia? Pois, não sei. Olho por exemplo o andar. Diz-me coisas, tantas coisas. Diz-me coisas o andar do velho cansado e triste, combalido, cambaleante, arrumado numa bengala tosca e retorcida. Diz-me coisas o andar rápido do meu filho, desengonçado, traquina, despachado. Diz-me coisas o andar calmo do meu pai, de mãos invariavelmente coladas atrás das costas, cabeça baixa, passos certos e ritmados. Diz-me coisas o andar da jovem que abana delicadamente as ancas para um lado e para o outro enquanto os olhos miram a sombra, estará bonita? Diz-me coisas o andar da cozinheira ligeiramente tombado para a frente, nuns passos mortos e apagados, quase tão apagados como  os olhos que espreitam por detrás de uns óculos de massa amarela que lhe possibilitam ver os netos a crescer, devagarinho (é tão bom ver crescer devagarinho). Dizia-me coisas o andar da minha bisa, apressado, sempre com um destino qualquer, completamente avesso ao andar do meu avó, que nunca ia para lugar nenhum. Diz-me coisas o andar do jovem que semanalmente vem ter comigo carregado de vida que se quer soltar por todos os poros do corpo, e que ele guarda, sem grande jeito ou consequência, quase preso nas pernas e até nos braços. Diz-me coisas o andar elegante da senhora que toma café comigo todas as manhãs, expressivo e decidido,  mas que por vezes, em dias cinzentos que ninguém vê, se transforma num andar vagaroso, lento e demorado, completamente denunciador de um estado de espírito muito menor do que ela. Nesse dias, percebo perfeitamente, eleva a cabeça para além do razoável e pincela o rosto com pérolas de oiro, chuvisca-se de gotinhas minúsculas do seu melhor perfume e refugia-se assim do mundo, quase encoberta, discreta aos olhos de toda a gente. Deixa porém que lhe escapem, por entre os disfarces criteriosamente escolhidos a dedo, rasgos internos nos passos, nos olhos, nos  risos, nos simples gestos com que arruma os cabelos com o lenço colorido onde se abriga. Do frio. 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

(...)

Pode ser Outono ou Inverno, dia ou noite, aqui ou ali. Há chuva e no meu rádio toca no woman no cry, um clássico, impossível não gostar. Mas podia tocar outra coisa qualquer, há pequenas particularidades que aprecio, sejam elas quais forem, não me ocupam desde que mais exista. Dentro das primazias mas menor, muito menor do que a maior, temos a chuva, já ela importantíssima. Os dias de chuva convidam-me ao sossego e eu gosto dele mesmo nos dias de sol. Estes últimos têm porém o pormenor de me vascolhejarem por dentro, de acordarem partes de mim ainda que outras queiram apenas estar. Não somos completamente consistentes, digo eu. Somos repartidos em corpúsculos autónomos, em fragmentos particulares uns num lado outros no outro, muito embora o que possa valer seja a totalidade. Ou não. Por isso, e só por isso, talvez seja mesmo possível eu delinear olhos no espelho, por exemplo, enquanto o resto de mim não está. Ainda que no reflexo, e revelasse ele tudo o que eu encerro, se avistasse todo um sentimento, muitíssimo além de uns olhos tingidos a negro pelas minhas mãos, trémulas e imprecisas.

Nós

Fico sempre muito satisfeita quando se inicia à minha frente uma discussão feminina, por nada. Porque muitas de nós têm o extraordinário condão de conseguir transformar tudo em problemas. E conseguimos até, pasme-se quem disto não sabe, que aquele nada pareça mesmo um problema verdadeiro. Puxa pá, somos mesmo boas nisto. 

( Sim, sei que a exclusividade da proeza não é nossa. Mas há que levar os louros a quem os merece. E se não é só nossa, é no mínimo muito mais nossa.)

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Rosa

Dentro da minha mala repousam panquecas redondas e pequenas que o meu filho esqueceu. Repousam rebuçados de café sem açúcar e caramelos de pinhão El Caserio, um pecado. Na M80 tocam os Sétima Legião e na minha terra, mas não aqui, é feriado municipal. Quando saí pela manhã não haviam carros na rua e na pastelaria do costume grupos de pessoas em traje descontraído desfrutavam dos ares  matutinos. A Dona Rosa dos jornais estava inerte por detrás da banca, ladeada por Anas, Novas Gentes, Marias e outras que tais, enfeitadas com carinhas de cabelos loiros, muito bonitas. Quase que aposto que a Dona Rosa, e a poder, trocava de lugar com elas. Trocava o posto dos dias, os cumprimentos amáveis e despretensiosos dos senhores do banco, os sorrisos afectuosos das senhoras roliças que compram livrinhos de receitas e de croché, o próprio rosto cansado pelos anos e o corpo já velho, pelo mundo onde a beleza e a facilidade se transformam em felicidade, como que numa relação causal, perfeitamente consequente. Deve de ser tão fácil viver assim. Tenho dias em que também a mim me apetece desfazer-me em delicadezas para a Dona Rosa. Apetece-me pegá-la nos braços, afagar-lhe os cabelos amarelados e baços, encostá-la no meu regaço e dar-lhe confortos simples que eu não sei se ela conhece. Toda a gente deveria conhecer o prazer dos confortos simples. Uma pretensão minha estes excessos de inquietação, é o que é. Não tenho nenhum direito a retirar conclusões abusivas do estado dos outros apenas porque os cumprimento e do rosto não lhes retiro emoção, porque não me emitem vida de dentro do corpo que os acolhe, porque não lhes consigo ler nos olhos coisa nenhuma. Entrei no carro e resolvi comer um caramelo de pinhão El Caserio. O açúcar às vezes faz-me falta e os de café não me traziam nada de novo à boca, logo após a bica da manhã.

(A bica da manhã é um dos minutos do meu dia. Quando tenho tempo transforma-se em hora, ou até, na loucura, em horas. Acontece muito pouco. E parece de facto uma coisa tão simples.) 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Tempo

Não tenho nada contra os meteorologistas, mas é que prevêem todos o imprevisível com base numa reunião de dados que a atmosfera muitas das vezes esfumaça com um sopro de mestre. Mas insisto em consultá-los, em prover-me das imprescindibilidades adequadas para fazer frente ao frio quando é frio, à chuva quando é chuva, ao sol quando é sol, e por aí adiante. Não gosto particularmente do vento. Tenho por hábito amaldiçoar os santos quando os senhores o apregoam para os dias seguintes, de desejar a estes o redondo engano, de considerar ainda mais seriamente a probabilidade que têm da falha declarada, um sentimento profundamente mesquinho da minha pessoa, devo dizer, que qualquer meteorologista que se preze deverá ter um orgulho imenso em conseguir informar com exactidão quem o escuta, ainda que dali se antecipe uma qualquer intempérie séria e danosa, capaz de alagar as árvores que se encontram no jardim em frente à minha casa, ou os caixotes do lixo verdes que todos os dias recolhem os desperdícios do bairro. Houve um dia no Inverno passado em que o meu vizinho de cima, meteorologista de profissão, me trouxe a preciosa informação de que uma tempestade se aproximava. Deveria recolher os estendais, fechar as janelas, vendar as frestas que pudessem permitir ao vento o acesso à parte de dentro das minhas quatro paredes, que só assim impediria estragos maiores que felizmente não aconteceram nem aqui nem em lado nenhum perto, mais ou menos guardado a preceito. Este fim de semana que passou, por exemplo, foi outra dessas situações. Apregoou-se chuva forte, deram-se alertas coloridos, colocou-se a população de diversos distritos em cuidados redobrados, mas o que eu senti foram irresistíveis sopros de sossego, distantes de tempestades, de chuvas torrenciais, de ventos ou de qualquer outra inclemência atmosférica que me pudesse perturbar o corpo ou o espírito.

sábado, 3 de novembro de 2012

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Experiências

Todos têm a mania de me dizer que o mundo é redondo. A própria astronomia manda satélites para o espaço, fotografa, prova e comprova que o mundo é uma bola gigantesca suspensa na atmosfera à qual nos mantemos ligados pela força da gravidade. Eu própria já vi inúmeros documentários, já estudei o sistema solar de fio a pavio, já decorei o nome de todos os planetas, uns maiores outros mais pequenos, uns mais quentes outros mais frios, uns longe outros perto, alguns detentores de uns anéis circundantes que me parecem lindíssimos, todos com a particularidade de terem uma forma mais ou menos redonda. Assim, à vista de qualquer um. O meu próprio filho, detentor de um globo azul que habita a secretária do quarto, já me explicou a magia do mundo no qual eu não acredito, já me ensinou que no hemisfério norte ficam uns países e no hemisfério sul ficam outros, já me explicou que na África do Sul ninguém vive de cabeça para baixo, já me disse que a água do Oceano Polar Antárctico não cai para o vazio do nada. No mundo que eu conheço, sem ser de fotografias, livros, bolas redondas enfeitadas com desenhos de Países, no único que eu experimento para além dos limites do razoável, não há um círculo. Há montes e vales, precipícios e cavernas profundas, sítios onde há muita gente e outros onde não há nada nem ninguém, locais privilegiados onde poucos chegam, lugares inexplorados que nem eu própria conheço. A harmonia do círculo é qualquer coisa que eu não reconheço porque não a vivo, não a encontro, não posso acreditá-la nem confirmá-la como possível na natureza, muito embora me digam, de fontes seguras, que o mundo é redondo. Posso até achar que se ele é perfeito, eu, e em consequência, também deveria de ser. Também deveria, e em vez de me apresentar em protuberância, ser detentora de um círculo interno onde tudo se encontrasse devidamente distribuído, onde nada caísse nem resvalasse, onde não houvessem vazios ou cheios, onde uma cadeia alimentar perfeita e natural mantivesse a ordem e o seguimento do meu corpo. É que o meu corpo só acredita naquilo que sente, naquilo que experimenta e naquilo que toca, nos cheiros que já cheirou e nos sabores que já provou. O resto, o resto são exterioridades, sítios impossíveis, coisas que sabemos serem sem experimentarmos, muito embora as possamos validar pelo que se crê universal e pelo que construímos no imaginário, um sítio onde tudo acontece sem o rigor dos sentidos. São sempre frágeis conclusões, ainda que leis cientificas, que apenas sabemos. Os sentidos fazem-nos muita falta. Trazem tudo cá para dentro, e depois sim, somos gente que sabe do que fala.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Santos

Hoje é dia dos santos, gostaria até de me encostar a eles. Poderia entrar numa igreja, que teria de ser a da aldeia, molhar os dedos na água benta da entrada e dirigir-me com respeito, iludida pelo cheiro das velas brancas que alumiam o altar, para me ajoelhar defronte à Santíssima Trindade, a santa que guarda a terra, dizem, e ainda as gentes. No bolso levaria o terço prateado e benzido em Fátima, já amarelado pelo ror dos anos, que se encontra guardado num sítio que eu não sei qual é. Deveria eventualmente dar-lhe uso, o que guardo, guardo sempre com algum propósito, e acho até que um dia aquele terço pode vir a fazer-me falta. Os vitrais coloridos deixariam entrar este sol de Outono que me aqueceria o corpo, no exacto momento em que da minha boca sairiam orações que me levariam directa ao refúgio da Santa. Ela deve-me isso. Em tempos, ainda menina, transportei-a debaixo de chuva em ombros, vestida com uma batina azul celeste emprestada pelo pároco da freguesia, e percorri a aldeia inteirinha sem um ai e sem um ui.  Na passagem da procissão as pessoas deixavam oiro e flores penduradas no manto, oferendas devotas de quem tão bem conhece a guarida dos céus. Houve a meio da caminhada quem me quisesse auxiliar no carrego, houve até quem se oferecesse com uns olhos de conforto para me transportar a carga, mas eu não cedi. Tinha prometido a mim mesma, a mais sonora de todas as promessas, que cumpriria o trajecto todinho, nem que para isso tivesse de amargar as dores infligidas pelo andor redondo que me vergava os ombros e me comia as forças. No final do percurso, consciente que estava do preço da fé, retirei uma a uma as dádivas entregues e confiei-as  todas ao Padre António, que as recebeu glorioso da crença do seu povo. Nesse dia a minha avó ficou com um orgulho muito grande em mim. Ofereceu-me um vestido florido que eu nunca vesti e que guardei longe da vista e do corpo. Cheirava-me a velas, a flores, a oiro e a mantos de santas, e cheirava-me ainda à sua fé, que eu não conhecia, mas que sabia ser a coisa à qual ela se entregava quando precisava de colo. 

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