quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

os mundos não são todos iguais

É por exemplo quando o meu filho me diz que eu sou a melhor do mundo que eu me assusto. Não está em questão o que eu sou, está em questão que eu sou para o mundo dele, e que é em mim que ele confia para além da razoabilidade, uma vez que ainda não sabe o suficiente para consciencializar que a finitude está de mão dada com a vida. Não perco tempo a explicar-lhe, claro, ele sabe exactamente o que precisa de saber nas circunstâncias que possui: eu estou sempre ali, enquanto o nosso mundo deixar. O nosso mundo, que os mundos não são todos iguais. E no seguimento acabo a perder tempo a pensar na maternidade do meu, não necessariamente nas questões práticas e físicas da questão, idênticas nos mundos de toda a gente. Não me assusta minimamente dar o meu ventre a um ser que cresce cá dentro durante nove meses certinhos, que me pontapeia, me deforma, me desconforta e me faz fome, enquanto o redor me abraça num cerco que eu nem me apetece, as hormonas são de facto qualquer coisa. Não me assusta deixá-lo sair-me do corpo sem qualquer tipo de auxilio químico, aguento perfeitamente umas horas de dores lancinastes, de mãos penetrantes, de carnes que rasgam em episiotomia ou em esticão, de agulhas que me colocam no lugar, um ponto de cada vez, é sempre preciso voltar à origem e nós estamos perfeitamente capacitadas para sobreviver ao processo. E no seguimento ao corpo arrumamos o resto, que também sabemos. Não me assustam as noites em claro desde o inicio até ao fim, o biberão de três em três horas, as fraldas, as chuchas, as cólicas e os dentes que rompem entre choros aflitos que aquieto no colo, enquanto segredo músicas de embalar no ouvido, pequeno mas curioso. Não me assusta sequer o crescimento, o desapego, a minha aflição na hora da cresce, muito maior ainda do que a dele, a qual eu arrumo no peito guardada em mim e só comigo, porque ele precisa de viver. Para além de mim, que também preciso. O que me assusta é por exemplo estes acordares ao meu mundo, nos quais fico trémula, insegura, irrequieta, ao mesmo tempo sem reacção. Não tenho futuros certos para lhe dar, mas flacidez de caminhos, angústias de vazios, incertezas como únicas certezas. Bem sei que a faculdade da resiliência é uma realidade humana enquanto a mesma respira, e que a dureza não mata per si. Mas cruzes, ser mãe também é medo, que começa com o clareio do dia e da concepção, mais cedo até. Vejo isso de manhã, por exemplo, antes de o acordar e de o ouvir a falar de amor, com palavras dele, comparando-me ao mundo. Enquanto dorme, quieto, com ar de anjo e cheiro de filho.

(Nunca conheci sentimentos maiores sem a brutalidade do oposto.)

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

era a solução para a folha, já agora...

Mães que matam filhos, já as tive bem ao perto, mas o que eu tenho mais perto, isso todos os dias, com a distância de um passo, de um jornal ou de uma televisão, é gente que sabe muito. E gente que sabe muito são pessoas que sabem coisas, imensas coisas, consideráveis coisas, sabedoria essa que pode não ser tão ameaçadora como sérias descompensações mentais, mas que não deixa de constituir um perigo para a humanidade. Bem sei que a liberdade de expressão pode vir a ser chamada, cada um disserta sobre o que bem entende, quer perceba quer esteja a léguas de distância, fica sempre bem uma palavrinha opinativa ainda que do assunto apenas se tenha lido umas gordas num diário ou escutado umas frases fugidiças no jornal da noite, enquanto o jantar estruge no fogão e faz uma barulheira do caraças, ao mesmo tempo que os putos jogam à bola na parede da cozinha. E quem diz aqui, diz noutros sítios, são imensos. Somos dotados de capacidades, fica-nos sempre qualquer coisa alojada no ouvido que faz com que a partir daquela altura sejamos capazes de emitir juízos e pareceres que encaixamos no âmbito de verdades absolutas, quanto mais não seja porque são nossas e nós estamos na maioria das vezes certos. Portanto e pegando no assunto em questão, já ouvi e já li de tudo quanto se pode ouvir e ler. Já ouvi teorias de doença diversificadas, de lentidão de justiça, de sorte e de azar, de mãe muito triste e de mãe excessivamente feliz, de abordagens certas e abordagens erradas, depende. Não se estão certas ou erradas, não, mas de quem ouve e de quem fala. E é giro isto. Temos um País letrado em doenças mentais, leis e formas de actuação, entre outras diversificadas ciências que se aprendem nas esquinas da vida com um orgulho maior, género o ditado antigo, de médicos e de loucos todos temos um pouco. Acrescento, claro, posso acrescentar que também tenho opinião. Ora cá vai: de juízes, de advogados, de psiquiatras, de assistentes sociais e  por aí fora, existem muitas. E sendo assim podemos então assumir que toda a gente sabe exactamente o que deveria ter sido feito para evitar a tragédia e para que mãe e filhos estivessem vivos, saudáveis e felizes na medida certa. Ficará certamente esquecida a imprevisibilidade, a ausência de nivelamentos e previsões milimétricas, ainda o facto de não possuírmos estratégias cem por cento eficazes, entre outras. Mas já agora e aproveitando os recursos, posso dizer-vos que daqui em diante gostaria muito que todas essas pessoas que sabem que se fartam e que pelos vistos não apresentam as limitações atrás enumeradas, unissem esforços, curassem gente e evitassem que dramas destes se repetissem. É que nem se justifica, com tanta sabedoria envolvente.
E já agora, bem sei que é outro âmbito, mas solução para a crise se faz favor. E para as folhas de ordenado deste mês, para todos os funcionários que não pertençam à CGD e à TAP. Ainda outras coisas virão a pedido, claro, mas por prioridades, tenhamos calma. O povo saber, sabe, mas uma coisa de cada vez.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

...

Ora tomem lá que é para aprenderem. Seus pecadores. Leiam outras coisinhas que não permitam pensar grandemente, além limites tabelados de alma e de corpo. O resto? O resto censura-se, que mentes pecadoras é pecado. Jesus, Maria José...

morte certa

A chuva da noite não me mazela o corpo, habituo-me a ela tal como se me tomasse ao de leve e me guardasse até no cimo do monte, de onde se alcança o rio com as luzes que cintilam na noite que não dorme, que por cá também as há. Falaste-me numa canja de mocho a dada altura e fiquei repugnada, não me interessa nada que cure os males respiratórios que sinto quando me dou às tuas mãos mais a sério, quando abandono a distância da vontade e a substituo pela existência do facto sentido, muito além do pensamento. As mezinhas caseiras nunca foram merecedoras da minha atenção, nunca fui dada a ditos milenares que banham peles em leite de cabra e que rodeiam olhos com pepinos, parece-me tudo uma versão arcaica do não menos arcaico calicida indiano, que come os pés das velhas e lhe conserva os calos. Deixa-te disso, apetece-me dizer-te, não me atafulhes o corpo de sabedorias que não interessam nem ao menino jesus, dota-me só das sapiências verdadeiramente importantes, aquelas que me balbucias normalmente baixo na redondeza dos meus ouvidos, como se o resto de mim não as pudesse ouvir. Murmura-me palavras que me façam sorrir, anda, num mundo pouco afável que conhecemos sem medos, o que potencia uma verdadeira assombração de ideias digeridas e consubstanciadas, ora por dentro, ora por fora, eventualmente a única forma possível de saber. A sério, desliza, vá. Resvala, escorrega que eu agarro-te, faz-me rir até perder o fôlego que controlo milimetricamente, assim possa, assim deixes. Ri comigo, claro, tens de rir comigo, enquanto me agarras nas mãos e me levas, que eu vou. Depois, depois ou antes, durante até, é tragar as malditas intemperanças e decapitá-las com uma lâmina cirúrgica que se arremessa em urgência no sítio exacto, sem hipótese de evasivas, sequer ensaios ou subterfúgios. Uma morte certa, remédio santo.       

domingo, 27 de janeiro de 2013

no meu tempo, não era assim...



Há mulheres, e perdoem-me a atribuição de género, que se tornam muito velhas em escassos anos, uns míseros quinze ou vinte, os suficientes para se entregarem à esquisitice que se lhes aloja no corpo, que eventualmente revoltado, despreza o delírio bom. Esqueceram as saias curtas no limiar da decência ou para além dela, os cigarros escondidos na retaguarda da escola, os beijos espalmados entre uns lábios e uma parede traseira de um bloco gigantesco, excessivamente grafitado. Dizem elas que a juventude de hoje se perdeu, coisa que de facto não vejo, verei mal? Se há coisa que bem me lembro é de uma escola onde se ouvia Nirvana numa relva onde a Inês se estendia de costas para que o André se deitasse em cima dela, enquanto à volta o restante mundo dançava. Também recordo claramente o dia em que o Paulo deu um beijo de língua à Margarida em troca de dez escudos, e daquele em que a turma se perdeu no entusiasmo das tascas e chegou à escola a meio da tarde, directamente para a aula de português, o que permitiu ao Ricardo ver três belas professoras a recitarem Os Lusíadas. Foi pena não ter aguentado a miragem até ao fim da hora e ter havido necessidade de um retiro forçado que o privou de tal ilusão, acho que até hoje nunca se perdoou por isso. Tenho presente a Sónia, a mais namoradeira de todas as namoradeiras, que começou ainda no quinto ano enquanto as restantes saltavam ao elástico, muito embora já deitassem um olho às mãos do Nelson que a percorriam demoradamente por baixo de um casaco de penas, frenéticas, desassossegadas, intrigantes. Haviam ainda festas pouco ingénuas, com recantos escondidos por cortinas opacas, cervejas de garrafa ou outras bebidas só para quem podia e colunas de som em cima das quais se dançava Peter Gabriel e REM. Lembro-me disto de tal forma, que se há coisa que me intriga é a indignação exacerbada de quem se esqueceu que há uns anos, os suficientes para estarem longe, mas não tantos para serem efectivamente eficazes na omissão da ideia, a adolescência já constituía um posto onde o corpo experimentava coisas que não devia, incorria em ameaças perigosas e testava limites, próprios e alheios. A juventude e perdoem-me a fé se a julgam exagerada, não está perdida, está só jovem. Como sempre.

(Não a sentenciarem no salão de cabeleireira aos Sábados de manhã, era de facto um favor que me faziam. Eu já não sou apreciadora da excessiva delonga, o decurso do processo é-me sinceramente penoso, não gosto de secadores, de pinças e de ceras, de tintas vermelhas nem de toucados armados em riste. O recheio de mulheres esquecidas e sentidas com o tempo, antes do tempo, é-me de todo dispensável. Há coisas, senhoras, que a sentir, é baixinho.)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

...

Leiam-me com olhos de crítica, com olhos de sono, com olhos de inveja ou com olhos de morte. Podem soletrar-me as palavras uma a uma, linha por linha, na ordem exacta ou em sentido inverso. Ousem ainda saltar algumas quando me estendo, ou sorvê-las devagarinho se me encolho, por falta de tempo ou paciência. Podem vergar-me os textos, entupi-los de suaves açucares ou das mais substanciosas peçonhas, espremê-los e retirarem deles o que bem entenderem, estão cá para isso, e que sirvam o propósito. Mas estejam cientes, sempre, de que muito embora os sorvam arrumados a vós, tudo o que se passa pode estar precisamente ao lado. Não constitui mentira, não. É somente uma questão de privacidade, por vezes beleza de texto. Encerro a presunção de achar que me exprimo muito melhor na desgraça, vejam só. O amor sofrido, por exemplo, não há nada mais belo do que um amor sofrido. O amor extasiado pode entorpecer-me os textos de poesia ridícula, não gosto disso. E quem fala de amor, fala disto ou daquilo.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

hiperactividade

A questão da hiperactividade das crianças vai mais longe do que é dito aqui. O texto apresenta um juízo em nada delituoso quanto a um assunto levianamente tratado por tudo e por todos, que vai, quanto a mim, muito além da má educação assumida como forte detentora da culpa. A nossa sociedade é marcada por pílulas e gotas milagrosas que acabam com inquietudes, insónias, tristezas e frustrações, incapacidades e ruminações. Acordamos de manhã a engolir fármacos em vez de leite, empurrados para dentro do estômago com a certeza de que a partir daquele exacto momento funcionamos convenientemente até ser noite, altura em que o milagre do sono chega em forma de comprimido, dez minutos antes do sossego. De facto abusa-se, com condescendência médica. Usam-se os remédios e esquecem-se as causas que vão ficando arrumadas algures entre a televisão e o computador, a disponibilidade parental e a própria capacidade, as competências e as exigências, além potencialidade. 

...

Pergunta-me em voz colocada a minha opinião sobre o assunto que lhe come a vida esquecida pelo mundo, que escolheu correr na margem de si. Perdeu-se por certo em outros locais, noutros seres elegantes e perfeitos que o acolhem na beleza da carne fresca, que deixou há muito numa cama vazia de braços nenhuns. Dos olhos escorrem-lhe águas que engole na esperança que lhe desapareçam no corpo, o único sitio onde devem morrer. Incito a que me diga palavras sem critério. Vindas em puxo dos sulcos da memória, que ela acaba a deixar descair para a boca num balbuciar instintivo nascido no inconsciente sem trajecto cuidado, desaguadas em frases prontas que acomoda ao corpo todo, de cima para baixo, num agitar ansioso que teima segurar em extrema necessidade de controlo, típica do obsessivo. Instigo e perde-se na minha insistência, emaranha-se no descontrole emocional que lhe imponho e inicia uma descompensação intensa e perigosa, se a não consigo conter. No turbilhão do escape bravio afago-lhe as palavras desgovernadas, cerco-lhe as disruptivas da alma e embebo-as de arranjos sem que perceba às primeiras que é dela que nascem brilhantes deduções. Acaba num desassossego atribulado de vaivéns desordenados, de verdades tolhidas a sentires recalcados, ressuscitados de uma vez só em golfadas atulhadas de dores, cárceres há anos suficientes para lhe terem calcificado nas veias rijas que a trespassam por dentro, toda, vida a fora, sem destino nenhum. No fim de tudo ousa sorrir-me e dizer-me, vindo do nada, que nas horas vagas constrói colares artesanais que lhe enfeitam o decote generoso salpicado de sardas aos milhares. Curtos, compridos, com berloques ou medalhões, todos verdadeiras obras de arte para que se sinta bonita. Agito-me outra vez solitária, em entrada forçada num corpo que não o meu, sinto males, amarguras, esperanças, fabulações e enfeito-me com colares de pérolas miudinhas que me dão um ar ostentativo de rainha. Ela, mais calma, sorri à minha frente enquanto me olho no espelho ideado, sem conseguir ver coisa alguma.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

xeque-mate ( continuação)

O Paulo Abreu e Lima resolveu pegar no meu xeque-mate e dar-lhe o desenlace perfeito, aqui. A partir de agora não é meu, é meu e dele. Ide ler, ide.

domingo, 20 de janeiro de 2013

xeque-mate

Ela entra em direcção à mesa onde ele a espera sentado e com o tabuleiro arrumado. As peças estão devidamente distribuídas num branco e negro perfeito, as torres, os cavalos, os bispos, o rei e a rainha. Ela despe o casaco e senta-se sem abrir a boca pintada de vermelho forte. Ele começa sem sinal e anda com um cavalo por cima dos peões que dormem submissos na mesa de pedra. Olham um para o outro sem sinais visíveis de expressão e trocam jogadas de mestres na vida ao sabor de uma ampulheta de areia fina que dá a cada um os minutos suficientes para que pensem na jogada perfeita, que pode nem existir. Ele levanta um braço e ela abre os olhos esperando que ele lhe dirija uma palavra que a situe. Uma barmaid aproxima-se ao sinal e ele pede um Jameson com duas pedras de gelo. O whisky chega pouco tempo depois e é depositado na mesa mesmo ao lado do jogo que continua num chorrilho de mortes matadas e morridas que se apinham de cada lado, tombadas em desalinho. Estão quase no final e ela encontra-se num xeque que lhe dói até à alma e que ele sorve como se lhe lambesse a boca semi aberta onde corre um sangue vivo que se vê. A ampulheta escorre a areia demasiado depressa para que o raciocínio acompanhe os passos da vitória que procura e encosta-se para trás, rendida no forro barberry  com ar de quem vai perder as réstias de forças que a seguram em pé no tabuleiro quase vazio. Ele continua imerso no jogo que joga como quem só joga e não faz mais coisa alguma naquele momento. A bebida serve-lhe apenas para que o corpo se distraia uns segundos esquecidos, não vá a máquina do raciocínio tolher-lhe o corpo todo e levá-lo para longe, para um qualquer sítio onde apenas há rigor de exactidão. Num último gole lambe uma gota que lhe escorre pelo queixo e ela sorri. Mexe um cavalo que ainda lhe resta e apanha-o numa distracção leviana causada pelo descuido que lhe levou a destreza de ideias. Ficam de novo num mano a mano intenso e ritmado, sem tempo contado, rápido como a luz que nascia da lâmpada que baloiçava ao ritmo dos sopros no tecto baixo. Ela pergunta: Chega? Ele responde que não. Continuam num incessante desafio regado a desejo que nascia de ambos em doses exactamente iguais. O cansaço chega no frio da noite que entrou pela madrugada e que deixou a música entregue aos sons alternativos de Pixies, uma das melhores do mundo. Já ninguém joga, agora apenas encontram os olhos um do outro. Ela pergunta com os dela: Chega? Ele com os dele responde que não. Levantam-se os dois e saem pela porta que respira névoa cinzenta que os encobre mal saem para a rua. A lua estava escondida e não deixa antever para onde vão. A escuridão permite apenas que se oiça da boca dele: Chega? Ela responde que não e seguiram ambos, numa direcção escolhida ao sabor de um jogo, de um whisky e de um bâton.    

sábado, 19 de janeiro de 2013

...



Temos a tendência a esperar que os génios se superem e eles, talvez por serem génios, conseguem-no muitas vezes. Aposto que em Django Libertado não há dança como esta, mas haverão outras coisas, claro, que muito embora Tarantino diga que brinca em serviço o resultado é sempre sério. 

Fátima

Chegou-me embrulhada até ao pescoço com um pêlo verde. O casaco de astracã, diz ela que verdadeiro, guardava-lhe o corpo do frio e do vento que se faziam sentir a uma intensidade suficientemente forte para que se tivesse resguardado em casa, não fosse o chá das cinco para o qual tinha sido convidada por Mariazinha, a senhora que o prepara no bule que nunca se lava e que o serve por ordem inversa, ou seja, primeiro a dona da casa e por último a visita, que desfruta desta forma o exímio sabor apenas possível com infusão prolongada. Não está com paciência. Apetecia-lhe o regresso a casa, a libertação dos adornos e um chá insípido  ao sabor da lareira, essa sim de gosto requintado. De dentro da mala tira uma agenda doirada pintada à mão com a inscrição 2013 na capa. Lá dentro arrumam-se todos os dias do ano, com feriados e fins de semana, luas e frases bonitas em cada mês. Um encanto de livro que preferia guardar, não fosse o simples facto de perder a utilidade já no próximo ano, altura em que passará a ser um conjunto de folhas sem qualquer préstimo para além de lhe enfeitar a mala demasiado cheia por pequenos utensílios, que vão desde chaves a estojos de maquilhagem da melhor qualidade, para que pareça gente, diz-me em segredo. Disparate, digo-lhe, a senhora parece sempre gente, ainda por cima elegante. Não percebe, responde-me em sorrisos, sou como um livro destes que já não se usa, com dias fora do sítio e horas trocadas ao sabor da velhice. É também por isto que eu acho que não se deve guardar nada para se usar depois. O que se acautela em excesso pode usar-se fora de horas, perde o encanto, o lugar e até a beleza que se some, desorientada por excessos de zelo, um hábito imprudente que gostamos de cometer na vã esperança de preservar o que corre junto com os dias, numa velocidade impossível de guardar. 

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Carnaval

Sempre me vesti de nazarena, mas nunca tive sete saias. Faltou-me também o bigode e os pendentes nas orelhas feitos a oiro amarelo torrado, do mais legítimo que se conhece, vendidos à beira da praia em lojinhas de esquina guardadas a maresia fresca e a ondas revoltadas com o mundo, vá lá saber-se o porquê. Galgavam o areal rumo à estrada e lambiam a nossa alçada, as bestas, levavam tudo o que apanhassem à frente e deixavam em ânsia as mulheres aflitas, de homens no mar. Valha-nos Nossa Senhora da Nazaré, gritavam ao vento que engolia vozes mais ou menos com a mesma intensidade com que o mar engolia vidas, mas elas, pedintes e submissas, erguiam mãos em direcção à esperança dos céus e da Santa que ainda hoje mora numa igreja construída na  pontinha do Sítio, que tem um carreiro interno, encosta abaixo até ao mar. Em tempos salvou Dom Fuas Roupinho e o cavalo, dois de uma só vez, que ficaram erguidos in extremis nas duas patas traseiras do animal em vez de se despenharem nas pedras rochosas que lhe comeriam até a miragem do rasto. Porque não haveria então de lhes salvar os homens, os maridos, os filhos e os pais, que morriam de coragem em traineiras que mais pareciam cascas de nozes que dançavam na espuma branca, malfadada, sem pureza alguma? Não era disso que eu me vestia, queria lá eu saber era delas. Agoniava-me o corpo por dentro o alvoroço daquelas mulheres que gritavam alto e que se abanicavam na tragédia que ajunta gente, pareciam bichos ensandecidos estirados na areia. O que eu gostava mesmo era das meias de renda, dos aventais bordados e do chapéu redondo que me segurava o lenço que eu atava no pescoço, um encanto que só visto. Todos os anos era a mesma coisa. Na terça feira gorda bem cedo a minha mãe ornamentava-me o corpo com uma vestimenta que a cada vez tinha um pormenor de acrescento, coisa pouca mas suficiente para que eu ficasse muito feliz. Colocava-me os fios de conchas rosas e brancas ao pescoço e rumávamos à Nazaré, onde eu era confundida com as Nazarenas de verdade. No decorrer da tarde e enquanto marchava o cortejo, sentava-me na calçada e via tudo a passar enquanto comia tremoços e pevides salgadas, que eu descascava com a boca seca do frio e do mar.  
Ouvi dizer que este ano não há tolerâncias para ninguém. A pouco e pouco o povo perde o direito à festa, vamos ficando sérios, macambúzios, metidos dentro de uma realidade formatada a relatórios que nos dizem o que devemos fazer. Já não podemos deleitar o corpo nas vésperas da quaresma, deveremos habituar as carnes a viver no recato e no regrado da contenção, sem recursos a folias de libertação ou ensejos de irracionalidade. Guardemos tudo isto fechado e vamos mantendo a seriedade dentro dos nossos locais de trabalho, se os houver, que parece que é com ela que se refaz um País.

( Isto não trata uma critica à decisão do governo, é somente uma pequena nostalgia do tempo em que eu era criança, comia tremoços, me vestia de Nazarena e me estava a borrifar para as seriedades desta vida, mesmo que à minha volta o mundo se afundasse engolido por monstros medonhos que não me afligiam os pesadelos da noite.)

O meu filho a perguntar-me se eu sabia o que era isto. Ó, se sei...


- Despacha-te garota. 
- Vou já avó, só mais um bocadinho
- Tenho de ir bordar, está o lençol à espera. 
- E eu tenho de andar aqui a cheirar, não percebes? Vai à tua vida, anda, e isto era já eu em pensamento. Logo apareço, antes que se faça noite escura. 

( Não ia, nunca ia. Esperava-me ansiosamente à porta enquanto tagarelava com as outras que guardavam crianças que se emaranhavam em livros usados e lidos por muitos olhos. Ainda hoje gosto de ler livros velhos, não fosse a mania das anotações nos cantos e a ânsia de os folhear sempre que me apetece, não comprava nem um.)

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

...

Dançar como se ninguém visse, é qualquer coisa que exige descontracção e vontade. Proponho que se adopte o sistema quando a cabeça se atafulhar com não assuntos, como o internamento de Mário Soares, do qual estimo as melhoras, num hospital particular.

( Ao abrigo das diversas correntes da psicologia positiva posso dizer estas coisas com toda a legitimidade. Soltar o corpo e a mente é muito mais produtivo do que a insistente critica destrutiva. Dancem, por exemplo. No metro, no aeroporto, no centro comercial, na rua, em casa, no carro e onde vos der na real gana. E na loucura cantem sem ser só para os ouvidos moucos dos azulejos do duche. E espantem os males logo todos de uma vez.) 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

ensinamentos

A respeito dos ensinamentos e das inocências que morrem aos poucos enquanto crescemos, sinto sempre que deverei ser eu a matar muitas das do meu filho, no que me estiver ao alcance. Não que eu queira atirar a sua ingenuidade de criança aos lobos desta vida, sequer substituir experiências que terão de ser vividas in loco, mas é que tudo o que eu lhe der vai sempre arrumado em amor. É por isso que não me incomoda nada sentá-lo à minha frente e vasculhar dentro de mim qual a melhor forma de lhe desenhar a realidade com desvelo, mas em conformidade . Sou por isso capaz de lhe fornecer os dados mais básicos da evolução, desde a génese da vida à finidade (?) da morte, passando pelo interregno onde existimos em corpo e em alma, local onde nos perdemos muitas vezes subjugados a interesses irrisórios que formamos maiores. Mostro-lhe sempre deslumbrada as maravilhas da natureza, levo-o a ver os bichos que se respeitam ou que se comem uns aos outros, sou capaz de lhe ensinar que neste sítio onde todos vivemos há coisas boas e coisas más e ainda que todos nós temos obrigações sociais com a humanidade, mas que nem todos as cumprimos. Devo mostrar-lhe devagar e a seu tempo a miséria e o sofrimento, dar-lhe a conhecer que há injustiça e que nem sempre recebemos do que semeamos, particularidade esta por certo incompreensível dada a irracionalidade que acarreta, mas tão verídica como outras loucuras factuais. Sou ainda pessoa, e neste seguimento, para lhe abrir os olhos ao mundo que temos e não ao que eu queria que tivéssemos, sem pressas mas também sem excessos de guarda imprudentes que nada potenciam a não ser descobertas tardias e desprotegidas, num caminho severo o bastante para reclamar que nos preparem, ainda que minimamente, para que nele saibamos viver. O resto, o que ambicionamos dedilhado no imaginário da perfeição, deixo que lhe emirja dos sonhos que ajudo a construir e que nunca mato, um terreno tão amplo e maravilho como nenhum outro, possível apesar de tudo numa esfera superior pela qual podemos lutar a cada dia, para que consigamos devagarinho e uma de cada vez, pequenas vitórias que fazem deste mundo um sítio bom para se viver, ainda que possa doer.

sábado, 12 de janeiro de 2013

No time, great morning

Passei de raspão na estrada que liga uma aldeia à outra. Digo de raspão porque é o termo que utilizo quando não toco o que queria no momento devido, hora onde o meu corpo se revolta em sinal de protesto ouvido por ninguém a não ser por mim mesma. Consegui escutar as águas que corriam na fonte, as lavadeiras que esfregavam sabão nos lençóis brancos, as miúdas que saltavam elástico enquanto o sol não se abalava dos céus e ouvi até o meu avô, que murmurava ladainhas para dentro dele mesmo, o único sitio do mundo que o consegue suportar, mesmo depois de morto. Lá ao fundo e depois da subida fica a capela da santa que vivia alumiada a azeite da melhor qualidade, entregue em rigor de horário e de devoção, para além de uma confiança excessiva para quem nunca orava para além do precisado. O estritamente precisado. O rapaz, no seguimento, resolveu inquirir sobre a igreja. Pensa lá para dentro e do que colhe do redor o porquê das riquezas que se concentram nos cofres das sedes religiosas não servirem para alimentar o sem abrigo da SIC reportagem, que vive ao relento em conjunto com um cão que não abandona a troco de coisa nenhuma.  Fundamentei mais ou menos o discurso, transmiti que não existem omnipotências e enalteci o que há de bom na instituição. Tentei por outro lado explicar que as religiões se assumem como sustentáculos de muita coisa ao mesmo tempo que albergam nos muros escondidos tesouros valiosos e verdades deploráveis. Aproveitei ainda para lhe ensinar que nem sempre as realidades vivem devidamente apartadas, fundem-se, interligam-se, misturam-se e defendem-se com unhas e dentes que escondem o que têm de esconder para que possam existir em decência externa. Que se lixe a interna, cada um com a sua, que vivamos pois com a (des)ordem social visível. Disse-lhe ainda que onde houver mão humana os dois terrenos convivem em amena cavaqueira, na mesma mesa, olhos com olhos, pernas com pernas, uns de manhã e outros na noite, uns que acordam enquanto outros adormecem, todos juntos num corpo só. A certa altura parei. Comecei a hesitar na prudência de fornecer de bandeja dados que nos deixam num nu demasiado despido para uns dez anitos prestes a nascer. Constituirão por certo factos assustadores para um corpo em crescimento, ainda longe da destrinça necessária para perceber as dicotomias das realidades que se queriam certas e ordenadas mas que nunca o são, numa idade em que a vida ainda se pinta de brinquedos e de amigos que quando muito nos dão um pontapé nas canelas, sem querer. Disse-me depois, como se me seguisse o raciocínio, que o avô foi casapiano. E que lá havia quem fizesse mal a meninos órfãos que já nada tinham. É maldade, não é mãe? É, é maldade, disse-lhe, mas vamos esquecer isto por agora. Olha, queres ir ver a santa que vivia a azeite e que se calhar ainda reza? Ele quis e então fomos. Estava a chover e a porta estava trancada. Não houve luz de azeite para ninguém.

( Confesso que as manhãs de Sábados com jogo podem tornar-se um oásis num deserto. Três horas que disponho para me sentar numa bancada gelada e de bancos duros, nas quais posso ler sem interrupções, culpas ou outras perturbações. Claro que paro quando o rapaz entra em força, mas a rotatividade permite-me francos períodos de concentração. Na revista do Expresso de hoje encontrei uma espectacular fotografia onde novos bispos ordenados por Bento XVI se encontram estendidos no chão. Não consegui evitar, o primeiro sítio para onde lhes olhei foi para os pés, num prolongamento totalmente adjacente ao badalado calçado da figura Papal. Não me permitiram obviamente concluir coisa nenhuma, devo dizer, mas ainda me esforcei a retorcer a fotografia e a mirar ao pormenor as solas gastas viradas ao céu.)  

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

...

Se encaramos desajustes nas pessoas, deveríamos também considerá-los nos animais. Encarar que um cão só pode ser mau por culpa dos donos, equivale, mais coisa menos coisa, a dizermos que as pessoas só são más, eventualmente desajustadas, por culpa dos pais. Será que a natureza foi perfeita com eles e imperfeita connosco? Será que não há leões bons, formigas preguiçosas, gatos desajeitados e galos dorminhocos?

(Gosto mesmo muito de animais. Sou completamente a favor dos seus direitos e dos nossos deveres para com eles. Só sou contra fundamentalismos. Basicamente é isso.) 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Incongruências

Posso ter um desejo novo a cada dia e para o ano que começou. Pequenas coisas nascidas de vontades emergentes que me saltam de dentro em ocasião, despertas por alguma sacudidela externa ou interna, que me colocam em mira de um objectivo que passa a ser meu até que aconteça, sem obstinações mas com perseverança. Estruturais ou pessoais são outras questões mais profundas, merecedoras de pensamentos em local devido, quiçá, e a precisarem de expulsão, em algum lugar rodeado a paredes e a outros dois ouvidos para além dos meus. Chega, perfeitamente. Mas há uma que me atormenta especialmente nas manhãs que me fogem com pressa como se eu as quisesse apanhar, e que posso sem cuidados partilhar. Não quero nem ambiciono guardar horas fechadas a cadeado, precisava apenas que elas me chegassem para que o meu corpo despertasse sem sobressaltos e conseguisse arrumar-se, bem como a tudo o que o rodeia, nos minutos que decorrem seguidinhos uns aos outros, sem compassos de espera, quase como se me afrontassem diariamente. Nós ganhamos, tu não... Conseguiríamos uma relação muito mais perfeita, tenho para mim e julgo não estar enganada, se me cingisse a meia dúzia de objectivos e tarefas verdadeiramente importantes e me libertasse de excessos que de facto já nem considero importantes. A casa, também ela, ficaria liberta e com mais espaço de ar e de vazio, o único local onde coisas podem crescer, as precisas, só as precisas. Deixariam de existir lutas incessantes, miudezas de ganhas tu ou ganho eu, batalhas perdidas ainda antes de nascerem e que eu sei, claramente, que nunca ganharei. A consciência dos limites deveria servir para nos readaptarmos, será por aí, e não para a revivermos todos os dias enquanto os cereais nos passam pela garganta a duzentos à hora, mais ou menos a mesma velocidade dos pensamentos pendentes que nos nascem dentro do corpo, por sua vez adormecido. Mas que raio de incongruências.

( Perdi-me. Será apenas a libertação dos excessos? Ou alarguemos à consciência dos limites e real adaptação? E isto tudo num só ano, atenção. Pois...)

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Let's Dance


Consigo dançar ao som de muitas, mas bom bom, é ouvir qualquer coisa do género. David Bowie está de regresso, vejam só que maravilha. Faz parte daqueles aos quais não se pode tirar mérito nunca, e isto quer se goste ou não. 

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

arrumos

Descobrimos as loiças na sapataria velha e resolvemos resgatá-las do mofo que lhe comia as caixas por entre as sacas de serapilheira onde se dispõem batatas polvilhadas a pó branco, dizem que mata bichos medonhos. Tem vários serviços, desenhados a azul e debruados a oiro e vieram em forma de agrado, directamente de Alcobaça. De Alcobaça vinha também o melhor Bolo Rei do mundo, perdoem-me a sucessiva insistência no tema, em carradas alternadas e de acordo com a fraca capacidade de resposta da padaria, na época em que o produto era artesanal e consequentemente melhor. Não, não simpatizo com excessos de industrialização, muito embora tenha presente a sua necessidade. Mas é que falta-lhe sempre qualquer coisa que morre mais ou menos a meio do caminho entre a génese e o produto final, fabricado em série e sem o dedo do pasteleiro a provar a massa leveda, como se as máquinas nos pudessem substituir o palato. Fracas convicções as nossas, as máquinas não podem substituir coisa nenhuma onde os sentidos estejam envolvidos, podem acelerar processos, podem compor pormenores, podem contornar limitações, mas quando chega à altura da verdade percebemos que é de gente que nasce a arte que nos satisfaz. 
As loiças encontram-se por ora empilhadas no sótão da casa, terrinas ao lado de terrinas, pratos em cima de pratos, chávenas dentro de chávenas, molheiras acondicionadas no respectivo prato, taças de salada guardadas por tamanhos, umas sob as outras. A vizinha de cima ficou encantada. Espreitava a lavagem prévia por entre uma fresta da janela e murmurava em pensamentos o quanto aquela maravilha ficaria um primor nos seus móveis cerejeira da sala de jantar, que em tempos conheceram riquezas que se esvaíram como se esvaem os pós ao vento, depressa e todas de uma vez. Eu, pela minha parte, confesso que não lhe ligo muito para além da recordação de o conhecer desde que me lembro de ser gente. Mas por causa disso tenho-lhe estima, sinto que lhe devo cuidado e zelo, como que uma responsabilidade delicada por algo que devo de proteger. De vez em quando sou bem capaz de ir espreitá-lo. Roubo a chave escondida na gaveta da entrada, subo os degraus com jeitinho e por entre as flores que caem verdes no vão da mesma cor, entro e retiro os lençóis que guardam as terrinas, os pratos de diversos tamanhos, as travessas de servir à mesa e as molheiras com tampa. Cheiro tudinho, viro e reviro, volto a arrumar criteriosamente e volto passados uns anos. É mais ou menos assim com quase tudo o que guardo para além do préstimo efectivo.

vísceras

(Sílvia Marieta, a pintar) 


O cérebro e o coração serão os órgãos que mais nos fazem pessoas. Não existiríamos sem tudo o resto, deverá ressalvar-se, que precisamos de cada recanto que nos compõe o corpo, desde as veias que levam sangue, aos pulmões que respiraram ar, passando pelo estômago que nos trabalha o quimo e pelo intestino que nos limpa dos excessos, e isto só para mencionar exemplos.  Perdoem-me a tendência do ofício, mas o cérebro, e de entre os dois, sempre me concentrou melhores atenções. Não simpatizo com as atribuições líricas dos sentimentos ao coração, consigo muito melhor concebê-los nas ligações que se intensificam cá dentro, em cada caminho e em actos engolidos pelo tempo que corre por entre a vida que nos foi dada algures, num qualquer sítio onde se distribuem tábuas rasas que podemos usufruir em proveito próprio, para construirmos em aperfeiçoamento num corpo. Os corpos, e no seguimento, não serão mais do que águas furtadas de ensaios trespassados, que acarretamos em sítios onde os ratos comem sem se ver. O que fica, o que prossegue, serão as epítomes limadas e aprimoradas que permitem clarezas maiores, ou não fôramos nós seres evolutivos. Passa-se tudo do corpo para dentro, muito embora coisas se vejam do corpo para fora. Não obstante vivemos submersos numa perfeição imperfeita, e encarando os modelos de socialização, onde a extrapolação efectiva da nossa súmula é um território impossível que ensaiamos quando a atribuição nos parece justificativa, num exercício difícil e arriscado, não tanto quanto ambicioso. Largar pela boca ambos, e entregando-me até, perdidamente, às atribuições apaixonadas do coração, é das mais exigentes incumbências às quais podemos sujeitar o corpo. Pelo impedimento confundido de desejo.

(Qualquer dia meto as mãos à boca, chafurdo-me com os meus dedos, garganta abaixo, garganta acima, e vomito cá para fora as vísceras ensanguentadas, para logo depois pingar gotas traslúcidas em anseio de libertação. Não sei bem se as agarre em mãos ou se as entregue, de bandeja e sem adornos, a inflamarem o corpo que as receba. De mim. Sou capaz de jurar que nada morria.) 

domingo, 6 de janeiro de 2013

...

Há dias que pedem coisas, dias que marcamos no calendário da vida e nos quais queremos fazer o que manda a tradição. Por isso hoje é dia de comer Bolo Rei com licores adocicados, ambos capazes de nos restaurarem o corpo e o espírito para um modo mais quente. É sempre bom presentearmo-nos com doces, particularmente quando sentimos frio. 

( Sentimos frio quando o tempo arrefece ou quando o corpo adoece.)

sábado, 5 de janeiro de 2013

relógios

Permitir-me que o despertador não me acorde é um luxo que reservo para dias esquecidos no calendário do ano. Assim um entre outros, muito de longe em longe, quando o corpo reclama pela cama quente muito além do que me é possível suportar em sossego. Nessas alturas acautelo os afazeres, componho as cobertas macias, armazeno alimentos na véspera que me permitam ao estômago o conforto necessário para que não acorde ao primeiro sinal da manhã e deito-me para adormecer quando o cansaço quiser, sem imposições de urgência ou delongas obrigatórias. Deixo depois correr a noite até que o dia me entre pelo corpo, sem  atentar a horas ou a outro tipo de deveres incumbidos seja pelo que for. Depois quando descubro que o sol de Inverno resolveu estar nesse dia, sucumbo à perfeição da natureza que acorda junto comigo e me permite a deambulação quase matutina, apenas limitada pelo sono que se quis longo. Mea culpa, claramente. Saio e de entre o destino escolhido surge um outro, que a feira encontrava-se  languidamente estendida sobre a calçada, debaixo do sol, e reunia dezenas de livros bafientos por entre os quais me passeei sob o olhar atento das velhas sentadas em bancos armados à ocasião. Todas tinham um avental de bolsos largos e um chapéu de palha, cada um com sua função específica, um para guardar o sustento, o outro para guardar o corpo, vai-se a ver e servem mais ou menos os mesmos propósitos, embora de formas distintas. O regresso a casa foi feito por entre uns locais predefinidos, onde entro e saio em nome da vaidade, um terrível feitiço que me persegue a existência. A poder, livrar-me-ia dele para todo o sempre, confesso, que só assim teria percorrido a feira totalmente descansada. Ainda que sem se querer, admitamos, o relógio toca sempre alguma vez.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

...

Numa manhã que pode ser como a de hoje, esqueço as responsabilidades e alheio-me de um assunto que me pertence, faço orelhas moucas, mãos preguiçosas, visão adormecida. Nessa manhã abandono a casa sem separar os moradores, ou seja, esqueço o fecho da porta do quarto do peixe, o isolamento da gaiola do rato, a reserva estudada do espaço da gata. A estar de feição, arrisco deixar tudo num só espaço, deixando a lei da natureza fazer o resto, e é só esperar com calma para acabar de vez com o rodopio atrapalhado das manhãs. Desculpem-me a barbaridade, mas é que estou precisada. Isto foi hoje, logo após a confusão da gaiola quase desmontada e com iminente fuga do habitante, acompanhada de um animal que me subia para o ombro em miares desesperados, no exacto momento em que passavam dez minutos do toque da entrada da escola do meu filho, que entretanto estava a trancar o peixe. Fiquei assim, mas estou convicta de que até ao fim do dia isto passa.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Balões

Lembrar-me-ei sempre do dia em que a irmã Rosa me descobriu uma artimanha onde eu escrevera a preceito os mandamentos da lei de Deus. O meu teste foi de imediato anulado e até hoje nunca consegui decorá-los a todos, fiquei ligeiramente angustiada com a situação, devem perceber-me, foi a verdadeira responsável pela minha vergonha a par e passo com a minha colega de carteira, que em desespero de causa resolveu roubar-me a cábula do colo e deixá-la cair no chão. Também ela, a pobre, não tinha na ponta da língua a arte de não pecar. Hoje encontrei-a na escada e mais uma vez relembrei o episódio. Voltei a tentar perceber o porquê daquela mulher que apenas deveria rezar ter sido astuta o suficiente para me apanhar em falso perante tamanha falta. Sorriu-me, já velha e encarquilhada, desejou-me um bom ano e seguiu em frente com cabeça baixa. Já não ensina nada nem ninguém, cuida agora de algumas irmãs da congregação, rezará por certo de dia e de noite por almas pecadoras que lhe cruzam o caminho e por um mundo melhor. Veio-me ainda à memória uma outra, com percurso académico e pessoal, mas que perante  adversidades de carácter maior escolheu a clausura como forma de prosseguimento. Precisava de se afastar do mundo dos vivos, de se emaranhar nas profundezas da oração e da meditação, as únicas capazes de a guardarem das asperezas atormentadoras, para que passasse a existir sossegada. Nunca mais a encontrei. Imagino-a por ora abrigada por quatro paredes que lhe permitem esse viver tranquilo, sentando-se todas as manhãs na capelinha do convento onde por esta hora entrarão raios de sol que a farão lembrar os dias em que subia montes ao meu lado. Houve um dia histórico em que subimos um muito alto carregadinhas de balões coloridos, acompanhadas de um conjunto de rapazes do internato. Tropeçamos umas vezes pelo caminho, ponderamos desistências rapidamente esquecidas, esfolamos joelhos que sararam instantaneamente no ar bravio dos montes. Chegamos lá acima, meio dia passado, e encostamos no pilar de sinalização que vergava ao vento que nos levaria os balões todinhos para muito longe, sob o símbolo da liberdade. Ficamos todos a vê-los subir, saracoteados pelo vento, que se calhar era mais ou menos como a vida que ela enjeitou. Às vezes, tenho saudades dela.

( Disseram-me em tempos que os contactos com o exterior são extremamente controlados. Que são obrigadas a receber o pão por uma fresta sem que o padeiro as possa vislumbrar. A ser verdade, vejo-a também nessa lide, abrindo a porta devagarinho sob vigilância atenta da superiora e do lenço que lhe tapa o rosto. Por vezes imagino, o gozo que lhe dará comer o pão.) 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Pão de ló

O João faz anos hoje, quarenta e seis para ser mais precisa. Tem um atraso de desenvolvimento e acabou de sorrir muito ao apagar as velas de um pão de ló descongelado. 

(Isto é só para dizer que a felicidade tanto é ambiciosa como limitada, uma qualquer junção potencialmente perigosa para nós, que não sabemos muito bem lidar com ela.) 

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

...

O quadro estava pendurado na parede da sala que era branca e tinha uma mesa ao centro, rodeada de sofás floridos a verde e a bordeaux. O armário do fundo tinha uns sacos de dinheiro escondidos atrás num buraco escavado criteriosamente para não ser visto, nem que lhe arredassem a considerável carga, coisa difícil e pesada quer na prática quer na possibilidade, quase inexistente, de apanhar quem o velava longe da sua guarda. Um primo tinha um fato de marinheiro azul e um pífaro na mão e uma irmã tinha um vestido que não lembramos bem qual. Ela tinha um penteado seguro com uma bandelette feita com meias de mousse desusadas, colorida, que era como se queria. Eu tinha uma jaqueta de ganga rosa velho a cair em cima de umas calças brancas com bolas pretas. Os sapatos não estão na memória, mas está o cabelo, encaracolado e teimoso para todo o sempre. Vivemos essa altura no tempo em que a Kodak dizia que as fotografias deveriam ser tiradas em número doze, vinte e quatro ou trinta e seis, sem qualquer tipo de vislumbre, a não ser quando se regressava do fotógrafo com as preciosidades na mão. Não haviam grandes instantâneos, haviam poses estudas e arrumadas em escadas, ao lado dos vasos das flores e nos assentos dos sofás, construídas em cenários familiares completos para a posteridade que vivia nos álbuns verdes e vermelhos de lombada grossa, onde as películas autocolantes protegiam vidas perduráveis. Ficamos guardadas pelo tempo, ligeiramente envergonhadas por meias de renda até ao joelho, por saias de xadrez rodadas e por camisolas coloridas e tricotadas em tardes sem fim, à luz do sol do sótão. O sótão é talvez dos sítios do mundo com maior posse da minha memória. Não que não tenha outros, tenho imensos, mas aquele está arraigado em mim como se ainda vivesse, com cada recanto, com cada baú, com estendais de roupa e com a Bernina que costurava afincadamente pedacinhos de pele nas calças coçadas do meu tio. Lá também havia silêncio. Gosto do silêncio desde que me lembro de ser gente, muito embora o barulho melódico também me possa embalar. Nele, no silêncio, espreitava assustada a casa da velha viúva que vestia negro e que tinha um ar de personagem malevolente, dotada eventualmente de poderes de sortilégio, que a deixariam capaz de atravessar as janelas de vidro alto e de me roubar para todo o sempre, presa com as outras crianças que por certo encarcerava nas masmorras da casa. O xaile, sim, lembro-me muito bem do xaile dela, era enrolado ao corpo com um requinte exagerado para quem vivia entre quatro paredes, grossas e escondidas ao mundo, e parecia fundir-se com ela na perfeição, pela forma como a perseguia, dependurado, volúvel, completamente jungido aos seus arrebatados movimentos. Nunca a vi na rua. Às vezes ficava horas esquecidas sentada em cima de mantas a escutar este silêncio atormentado. As crianças têm destas coisas, um fascínio doentio por um desconhecido que as assusta, mas que querem ao mesmo tempo conhecer para além do limite imposto pelo medo. Dizem que isto passa com o tempo, dizem que a curiosidade da infância é qualquer coisa que os anos comem, com jeito e paciência, para que na adultez passemos a existir mais quietos e sossegados. Não sei se acredite ou se não. A poder regressava, voltaria a construir a vida que não era minha e a espreitar por entre as pequenas frestas a velha do xaile preto, no silêncio lá do sótão.

( É claro que não era a curiosidade a personagem envolvida. Nem o medo, nem o silêncio. Quiçá, a harmonia do conjunto, mas isto sem certezas absolutas.)  

Seguidores