quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Balões

Lembrar-me-ei sempre do dia em que a irmã Rosa me descobriu uma artimanha onde eu escrevera a preceito os mandamentos da lei de Deus. O meu teste foi de imediato anulado e até hoje nunca consegui decorá-los a todos, fiquei ligeiramente angustiada com a situação, devem perceber-me, foi a verdadeira responsável pela minha vergonha a par e passo com a minha colega de carteira, que em desespero de causa resolveu roubar-me a cábula do colo e deixá-la cair no chão. Também ela, a pobre, não tinha na ponta da língua a arte de não pecar. Hoje encontrei-a na escada e mais uma vez relembrei o episódio. Voltei a tentar perceber o porquê daquela mulher que apenas deveria rezar ter sido astuta o suficiente para me apanhar em falso perante tamanha falta. Sorriu-me, já velha e encarquilhada, desejou-me um bom ano e seguiu em frente com cabeça baixa. Já não ensina nada nem ninguém, cuida agora de algumas irmãs da congregação, rezará por certo de dia e de noite por almas pecadoras que lhe cruzam o caminho e por um mundo melhor. Veio-me ainda à memória uma outra, com percurso académico e pessoal, mas que perante  adversidades de carácter maior escolheu a clausura como forma de prosseguimento. Precisava de se afastar do mundo dos vivos, de se emaranhar nas profundezas da oração e da meditação, as únicas capazes de a guardarem das asperezas atormentadoras, para que passasse a existir sossegada. Nunca mais a encontrei. Imagino-a por ora abrigada por quatro paredes que lhe permitem esse viver tranquilo, sentando-se todas as manhãs na capelinha do convento onde por esta hora entrarão raios de sol que a farão lembrar os dias em que subia montes ao meu lado. Houve um dia histórico em que subimos um muito alto carregadinhas de balões coloridos, acompanhadas de um conjunto de rapazes do internato. Tropeçamos umas vezes pelo caminho, ponderamos desistências rapidamente esquecidas, esfolamos joelhos que sararam instantaneamente no ar bravio dos montes. Chegamos lá acima, meio dia passado, e encostamos no pilar de sinalização que vergava ao vento que nos levaria os balões todinhos para muito longe, sob o símbolo da liberdade. Ficamos todos a vê-los subir, saracoteados pelo vento, que se calhar era mais ou menos como a vida que ela enjeitou. Às vezes, tenho saudades dela.

( Disseram-me em tempos que os contactos com o exterior são extremamente controlados. Que são obrigadas a receber o pão por uma fresta sem que o padeiro as possa vislumbrar. A ser verdade, vejo-a também nessa lide, abrindo a porta devagarinho sob vigilância atenta da superiora e do lenço que lhe tapa o rosto. Por vezes imagino, o gozo que lhe dará comer o pão.) 

2 comentários:

  1. Acompanho o seu blogue há muito. E é sempre uma delícia cá voltar. Continue a contar-nos coisas, com essa sensibilidade e com esse talento para brincar com as palavras.

    Um abraço
    Maria

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    Respostas
    1. Maria, obrigada pela sua simpatia. Volte sempre, será sempre muito bem vinda. :)
      Um abraço e um bom ano para si.

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