sábado, 12 de janeiro de 2013

No time, great morning

Passei de raspão na estrada que liga uma aldeia à outra. Digo de raspão porque é o termo que utilizo quando não toco o que queria no momento devido, hora onde o meu corpo se revolta em sinal de protesto ouvido por ninguém a não ser por mim mesma. Consegui escutar as águas que corriam na fonte, as lavadeiras que esfregavam sabão nos lençóis brancos, as miúdas que saltavam elástico enquanto o sol não se abalava dos céus e ouvi até o meu avô, que murmurava ladainhas para dentro dele mesmo, o único sitio do mundo que o consegue suportar, mesmo depois de morto. Lá ao fundo e depois da subida fica a capela da santa que vivia alumiada a azeite da melhor qualidade, entregue em rigor de horário e de devoção, para além de uma confiança excessiva para quem nunca orava para além do precisado. O estritamente precisado. O rapaz, no seguimento, resolveu inquirir sobre a igreja. Pensa lá para dentro e do que colhe do redor o porquê das riquezas que se concentram nos cofres das sedes religiosas não servirem para alimentar o sem abrigo da SIC reportagem, que vive ao relento em conjunto com um cão que não abandona a troco de coisa nenhuma.  Fundamentei mais ou menos o discurso, transmiti que não existem omnipotências e enalteci o que há de bom na instituição. Tentei por outro lado explicar que as religiões se assumem como sustentáculos de muita coisa ao mesmo tempo que albergam nos muros escondidos tesouros valiosos e verdades deploráveis. Aproveitei ainda para lhe ensinar que nem sempre as realidades vivem devidamente apartadas, fundem-se, interligam-se, misturam-se e defendem-se com unhas e dentes que escondem o que têm de esconder para que possam existir em decência externa. Que se lixe a interna, cada um com a sua, que vivamos pois com a (des)ordem social visível. Disse-lhe ainda que onde houver mão humana os dois terrenos convivem em amena cavaqueira, na mesma mesa, olhos com olhos, pernas com pernas, uns de manhã e outros na noite, uns que acordam enquanto outros adormecem, todos juntos num corpo só. A certa altura parei. Comecei a hesitar na prudência de fornecer de bandeja dados que nos deixam num nu demasiado despido para uns dez anitos prestes a nascer. Constituirão por certo factos assustadores para um corpo em crescimento, ainda longe da destrinça necessária para perceber as dicotomias das realidades que se queriam certas e ordenadas mas que nunca o são, numa idade em que a vida ainda se pinta de brinquedos e de amigos que quando muito nos dão um pontapé nas canelas, sem querer. Disse-me depois, como se me seguisse o raciocínio, que o avô foi casapiano. E que lá havia quem fizesse mal a meninos órfãos que já nada tinham. É maldade, não é mãe? É, é maldade, disse-lhe, mas vamos esquecer isto por agora. Olha, queres ir ver a santa que vivia a azeite e que se calhar ainda reza? Ele quis e então fomos. Estava a chover e a porta estava trancada. Não houve luz de azeite para ninguém.

( Confesso que as manhãs de Sábados com jogo podem tornar-se um oásis num deserto. Três horas que disponho para me sentar numa bancada gelada e de bancos duros, nas quais posso ler sem interrupções, culpas ou outras perturbações. Claro que paro quando o rapaz entra em força, mas a rotatividade permite-me francos períodos de concentração. Na revista do Expresso de hoje encontrei uma espectacular fotografia onde novos bispos ordenados por Bento XVI se encontram estendidos no chão. Não consegui evitar, o primeiro sítio para onde lhes olhei foi para os pés, num prolongamento totalmente adjacente ao badalado calçado da figura Papal. Não me permitiram obviamente concluir coisa nenhuma, devo dizer, mas ainda me esforcei a retorcer a fotografia e a mirar ao pormenor as solas gastas viradas ao céu.)  

6 comentários:

  1. São constatações, que nos deixam um amargo de boca, de coração e de pensamento, incongruências e paradoxos para que não encontramos na caixa da nossa melhor boa-vontade, uma memória capaz de amenizar.
    Para mais, uma desonra à memória daquele rapaz nascido em Nazaré, filho de Maria e José, que pregou ao mundo irmandade.

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  2. Bartolomeu as religiões são realidades importantes, mas ao mesmo tempo encerram incongruências que nunca mais acabam. Às vezes penso se a culpa é da sociedade, sendo o reflexo a religião, ou se o inverso, tendo em conta a necessidade das mesmas por parte do indivíduo. Até hoje acho que não concluí devidamente coisa alguma...

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  3. Há profissões (ser padre não acaba por ser uma profissão?!) com as quais sou implacável, a saber: padres, médicos, todos os que estão ligados à Justiça, políticos, em suma, todos os que devem, ou DEVIAM, contribuir para o bem-estar do Homem, proporcionando-lhe uma vida digna. Não lhes admito que errem, não lhes admito que não respeitem o Ser Humano. Dir-me-á, "mas eles também são homens", são, sim, mas a maioria com letra bem pequenina.
    A ostentação da Igreja - qualquer que seja o credo -, é qualquer coisa que considero obscena.
    Como é que se explica determinados comportamentos, de qualquer dos individuos destes diferentes grupos, a uma criança, é uma coisa que me ultrapassa. E temo! Temo que percam cedo demasiado cedo a inocência a que têm direito.
    Boa semana.

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    1. A Igreja tem coisas boas, necessárias à sociedade, e tem coisas menos boas, pecando essencialmente por pregar o contrário do que muitas vezes pratica... A ostentação é claramente uma delas. Explicar a uma criança essas incongruências não é fácil. É necessário fazê-lo com cuidado, para que a tal inocência que refere não desapareça antes do tempo. É exactamente esse o cuidado que tento ter. Quanto às profissões, há bons e maus profissionais em todo o lado. Quem trabalha com gente, como é o meu caso, deverá ter especial cuidado e vocação para o fazer. Já com os erros, depende. Há erros e erros. Erros de desleixo e erros de cansaço, por exemplo, são só dois deles. Que não meço pela mesma bitola, de maneira nenhuma.
      Boa semana para si também.

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  4. Talvez fosse interessante explicar primeiro que, muito pouco ou nada, Religião e Igreja têm a ver com Fé e Credo. As primeiras têm uma história vincadamente "Romana" (na Católica Apostólica) e as segundas uma dimensão espiritual quantas vezes à parte. Que Igreja é diferente de Religião; que o culto das imagens sacras convive intimamente com Arte e que esta nem sempre é/fui minimalista. Que Igreja já foi classe social, foi/é Poder, é/foi simbolicamente riqueza material em vez de espiritual tout court. Etc.

    (bonito texto)

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    1. A Igreja para além disso tudo que dizes, acaba por ser um suporte social de extrema importância. Não compactuo com determinadas coisas, penso que dá para entender, mas reconheço-lhe um valor importante que não deveria de todo esmorecer perante algumas questões que se insurgiram com o tempo... Ou desde sempre, nem sei. Essa questão da riqueza material é de facto um dos enormes problemas que julgo que nunca soube gerir muito bem. O poder que detém, por sua vez, é-lhe dado em massa pela sociedade que necessita da Fé e da Religião, as tais diferentes, com uma intensidade fortíssima. Apesar de tudo, continuo a encontrar-lhe alguma riqueza espiritual. Não em todo o lado, mas em muita coisa. Deturpada, muitas vezes, no seguimento de outras questões que falaremos noutra altura, sim?

      ( Obrigada. Beeeeijo:)

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