sábado, 19 de janeiro de 2013

Fátima

Chegou-me embrulhada até ao pescoço com um pêlo verde. O casaco de astracã, diz ela que verdadeiro, guardava-lhe o corpo do frio e do vento que se faziam sentir a uma intensidade suficientemente forte para que se tivesse resguardado em casa, não fosse o chá das cinco para o qual tinha sido convidada por Mariazinha, a senhora que o prepara no bule que nunca se lava e que o serve por ordem inversa, ou seja, primeiro a dona da casa e por último a visita, que desfruta desta forma o exímio sabor apenas possível com infusão prolongada. Não está com paciência. Apetecia-lhe o regresso a casa, a libertação dos adornos e um chá insípido  ao sabor da lareira, essa sim de gosto requintado. De dentro da mala tira uma agenda doirada pintada à mão com a inscrição 2013 na capa. Lá dentro arrumam-se todos os dias do ano, com feriados e fins de semana, luas e frases bonitas em cada mês. Um encanto de livro que preferia guardar, não fosse o simples facto de perder a utilidade já no próximo ano, altura em que passará a ser um conjunto de folhas sem qualquer préstimo para além de lhe enfeitar a mala demasiado cheia por pequenos utensílios, que vão desde chaves a estojos de maquilhagem da melhor qualidade, para que pareça gente, diz-me em segredo. Disparate, digo-lhe, a senhora parece sempre gente, ainda por cima elegante. Não percebe, responde-me em sorrisos, sou como um livro destes que já não se usa, com dias fora do sítio e horas trocadas ao sabor da velhice. É também por isto que eu acho que não se deve guardar nada para se usar depois. O que se acautela em excesso pode usar-se fora de horas, perde o encanto, o lugar e até a beleza que se some, desorientada por excessos de zelo, um hábito imprudente que gostamos de cometer na vã esperança de preservar o que corre junto com os dias, numa velocidade impossível de guardar. 

2 comentários:

  1. Fantástico texto. Sobretudo no resumo final, no que refere à velocidade do tempo que passa, em contramão, quando desse tempo não se faz o uso preciso.
    Obrigo-me a citar Janis Joplin quando nos desafiava os temores e os preconceitos « o amanhã não existe; o ontem não existe; it's always the same fuckin day, man!»

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    1. Bartolomeu, o tempo será eventualmente um dos bens mais preciosos e que mais desprezamos, por vezes sem darmos por isso.
      Janis Joplin, mas que grande cantora me cita aqui. Desafiava tudo, até ela própria. Normalmente essas mentes concluem verdades que ninguém quer ver...

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