domingo, 31 de março de 2013

Páscoa

Independentemente das crenças de cada um, os valores do bem para os quais a data nos remete, deveriam expandir-se ao mundo. Senti-los e praticá-los, muito além do gozo de um feirado recheado a amêndoas doces e carnes fartas, será sempre a essência, que ousamos muitas vezes adulterar. Uma Santa Páscoa, na pureza do conceito, é tudo o que vos desejo.

quinta-feira, 28 de março de 2013

ponto de pérola

Dizes-me que levas cigarros e um chocolate e eu pergunto para mim mesma o porquê de não me levares a mim no bolso de dentro do casaco, encostada ao teu peito mas do lado de fora, que o lado de dentro é nosso, não é para aqui chamado. Em troca prometo que tentava distrair-te da falta que te faria o doce, as passas de uva, o cacau, a nicotina, os pacotes que fazem barulho a desembrulhar e que nos deixam com uma água ansiosa na boca que espera. Indagas da lua e está cheia, semi tapada com nuvens que a deixam no recato dos olhos que a cortejam ao longe, os olhos dos namorados estão sempre numa atalaia que espia e repassa, ainda que nem possa ser. Dedilhas-me as vontades que dissecas como se fossem as tuas próprias e falas no teu inconsciente recôndito como quem fala na bica acompanhada com um éclair doce a espargir açúcar por todos os lados, incluindo a tua boca, na pastelaria onde as senhoras se sentam para tomar o chá das cinco, cabelos armados, saias travadas, sapatos de meio salto e óculos que compõem as vistas cansadas de quem já viu quase tudo o que há para ver, de casa para o chá, do chá para casa, passagem na praça da esquina, o corriqueiro, o trivial. Não gosto de meios saltos, e isto é só um aparte. Respondo-te de feição e toco-te nas tangentes do id, aquele que consciencializamos desde que Freud o baptizou num momento de lucidez maior e pouco convincente. Não estamos globalmente capacitados para a claridade mas todos gostamos de coisas com nome, fazem mais sentido, por isso quase lhe perdoamos o facto de nos ter descoberto elementos ocultos que deveriam permanecer no anonimato permitido pela pele do corpo, não sempre, muitas vezes. Entro, cumprimento as senhoras com uma vénia delicada, agradeço a cortesia do senhor que amavelmente te indica muito depois de eu te ter visto, aprecio a montra de bolos que se estendem no meu palato como se os trincasse a todos ao mesmo tempo, lambesse os dedos e fechasse os olhos para que só o gosto vingasse, aproximo-me de ti e sento-me a inspirar o ar, ao mesmo tempo que engulo os açúcares que fervilham à tua volta, em ponto de pérola só porque eu quero assim, 108º graus centígrados, perfeito. Mais ou menos como a nossa natureza, minha e tua, em completa transparência adocicada, até porque há dias em que podemos todos os éclairs do mundo. Hoje é um deles.

quarta-feira, 27 de março de 2013

alternativa

Gosto de cozinhar. Tivesse eu errado o destino e hoje trabalharia por certo num restaurante das redondezas, cozinharia bacalhaus, bifes, lebres, borregos, vacas e porcos, garoupas e filetes de pescada em molho de azeite. Imagino-me vestida a rigor, farda preta, avental branco, chapéu alto na cabeça, bancadas de aço inoxidável e despensas recheadas de tudo. O simples facto de ter de passar os meus dias a picar cebolinhas e alhos em bocadinhos infinitamente pequenos que não se detectassem a não ser no paladar, nunca me demoveria. Sei o truque para que o cheiro desapareça num segundo, é colocar uma faca em fio de água e deixar as mãos receber a que trespassa a lâmina fina, não há odor que resista. Esventrar animais também não me causa repugnância alguma. Sou capaz de esfolar um coelho, retirar-lhe o fel amargo do fígado, cortá-lo em mil pedaços e estrugi-lo numa frigideira em lume brando, horas a fio que não sou de pressas. Hoje quando me perguntaram a propósito, se poderia ter sido qualquer outra coisa em vez de me debruçar afincadamente sobre mentes humanas, estive quase a deixar escapar esta minha vertente, entre outras, que houve mais. Não o fiz. Recuei no último instante e deixei-me ficar sossegada cá dentro, enquanto programava a paciente seguinte. Quando cheguei a casa, tardiamente, enfio-me na cozinha e como um mísero grelhado saído à pressa, estou longe daqui. Preciso de estar perto para me entregar ao que faço. Consigo-o facilmente na minha profissão, se calhar, a única que pode ser verdadeiramente minha. Certamente, só antes de tê-la poderia não sê-la. 

segunda-feira, 25 de março de 2013

pedrocas

Pedrocas está farto da escola. Fartou-se primeiro da vida, que se fartou dele em primeiríssimo lugar. Ele foi por consequência, mas ninguém acredita. Toda a gente acha que ele se encontra desfasado, mal comportado, inquieto, endiabrado. Em casa também está tudo quase farto, restam uns vestígios agarrados ao sangue que ainda o seguram a um amor cansado. Um amor desesperado, também. Na escola não há amor que resista e por isso o cansaço alteia-se pelas paredes húmidas que terminam em vidro fosco por onde o sol entra, mas não sai. Não dá a volta, morre-lhe dentro quando o encontra por entre as centenas de meninos que brincam nos átrios gelados. Agora lá, todos se fartaram. Não há estratégias nem decretos que lhe valham, afirma-se uma retenção triunfal antes dos ovos da Páscoa, atribuem-se uns dias de suspensão para encurtar o terceiro período e tornar suportável o sprint final. Toda a gente respirava na hora um alívio traduzido em interjeições de contentamento, verbalizadas em uníssono, oh, ah, que bom!. Acho que desfasei também eu na sequência. Olho à minha volta e não encontro outros locais para as crianças de doze anos aprenderem, para além da escola. E se os há, não são os adequados. É nelas que crescem e é nelas que se ensinam, não só os fáceis mas também os alunos difíceis, mais ou menos como na medicina e em todas as profissões que se prezem. Não costumo encontrar médicos que só curem simples dores de garganta, por exemplo, e que virem costas a uma esclerose lateral e mortal. E é por isso que a escola deveria lutar até ao fim por cada um dos seus alunos. Que há casos que desesperam, admito que os haja. Que há situações de difícil solução e de inerente desesperança, também consigo conceber. O que me espanta verdadeiramente é o contentamento. Uma escola que dá por perdido um aluno e que respira de alívio na sequência só pode estar equivocada. Um aluno que se perde deveria ser motivo de reflexão de todos os intervenientes envolventes, incluindo a comunidade escolar, que decerto também errou. E de  tristeza, que o caso não é para menos. Um professor que sorri de satisfação na mira da transferência é um professor que não devia ensinar. Nunca ninguém disse que ensinar era fácil. E há tanto onde se trabalhar nesta vida, que não há razões nenhumas para o fazer, se não estivermos vocacionados para tal. Ensinar não é só receber boas notas e bons comportamentos. Ensinar é também emprestar o saber ao desespero de quem não consegue fazer mais. 

domingo, 24 de março de 2013

?

E se bocejássemos todos em conjunto? E ao mesmo tempo aproveitávamos para desligar a televisão sempre que um político finge que comenta enquanto faz política, nos mais diversos canais, estatais ou não, sugestão esta já ouvida e verdadeiramente sugestiva. Talvez assim essa gente percebesse que o povo não é parvo de todo. E que muito embora o poder seja uma realidade centralizada, a clareza não abandona as massas tão depressa como a competência abandona os bancos do parlamento.   

sábado, 23 de março de 2013

scones (doce e natas frescas)


Há dias em que as direcções se convergem em escolha adicta, escolha nenhuma, portanto. Levanto-me quando o sol nasce, abro as janelas e respiro a madrugada discreta que pouco me fala, como se me quisesse crente na normalidade das horas que correrão daí em diante, agora saio, depois trabalho, depois almoço e por aí afora, uma rotina acostumada, nada de novo, tudo igual. Nem chega a meio dia quando me acostumo à ideia de que me vais fazer uma falta medonha, de que a madrugada enganadora me sacaneou o espírito, de que os suspiros desafogados que respiro pouco ou nada têm a ver com a primavera e com os pólens que voam no ar que engulo, mais do que o habitual. Pressinto-te igual, na grandeza que forma a vontade análoga em dois corpos distintos, incitas-me a firmeza do ânimo por si só impositor, quanto mais nascido em dobro. Dizes-me isto e aquilo, respondo que sim senhor, encurtas-me a distância que me separa do desgoverno, olho pela janela, espreito o sol de primavera que me iludiu a aurora e apetece-me matá-lo. Poder-me-ia ter preparado, malvado. Falas-me em ler o jornal e imagino-te recostado enquanto me debruço sobre as letras pequenas com os óculos na ponta do nariz, leio-to na perfeição, as notícias de última hora, a crise, o Sócrates, o desemprego, a troika, o raio que parta este País que se afunda sempre, mesmo enquanto lemos, uma palavrinha de cada vez. Fartaste depressa e eu também, meia dúzia de linhas, mandas-me parar com aquilo, não te apetece, o que tu queres mesmo é comer scones numa esplanada de fim de tarde, pode ser à beira rio ou à beira mar, pode ser debaixo do sol que me enganou ou da chuva que nos guiou, pode ser no pináculo da civilização ou no reino do marasmo, desde que os scones tenham doce e natas frescas. Nesta altura do dia já pouco me importa o que como, já não me foco na gula que me dirige o corpo invariavelmente para os chocolates, já concordo com tudo o que me proponhas comer, mas de facto a doçura parece-me muito bem. Sento-me, peço um e tu pedes outro, o doce e as natas frescas misturam-se no prato, na colher, na boca e nos meus delírios precisos que me sabem, quase, a scones com doce e natas frescas numa esplanada que pode ser num sítio qualquer, a uma hora qualquer, num clima qualquer, desde que mos dês na boca e devagar, que o sonho é para aproveitar.     

quinta-feira, 21 de março de 2013

...

Marc Jacobs, diz que a ideia é apenas perturbadora. Por outro lado, a subtileza da linha entre charme e ofensa é um facto concreto. A Vuitton tocou-lhe, deu-se ao excesso, porque nem todos podem tudo mas os grandes podem muito. O que fez foi aproveitar o imaginário do mundo para publicitar um produto, chique o suficiente para suportar uma controvérsia que provoca indiscutivelmente reacções. Publicidade pura, na qual ninguém sai prejudicado a não ser a nossa carteira, se for capacitada para se abrir perante tamanho chamamento. Uma miragem, portanto.

( Pareceu-me bem esta questão meramente frívola, no dia de hoje. Qualquer coisa para desviar a atenção do panorama nacional, um tanto ou quanto enjoativo. No mínimo...) 

quarta-feira, 20 de março de 2013

canta-se o fado


avó

Amanhã é o dia em que a minha última avó completa mais um ano. Disse-me ainda há pouco que está para breve, que tudo lhe foge por entre os minutos que se esgueiram vida acima, como se lhe coubesse a previsão consagrada de decidir as horas exactas em que deixará de sentir o pulmão esquerdo a importunar-lhe a existência. Está farta dos seus suplícios de tântalo, uma espera vagarosa feita invariavelmente no sofá da sala debaixo de uma manta mindrica, com o Sebastião preto e barrigudo açafatado nas côncavas das pernas magras. Há muito que a oiço dizer isto e nunca lhe dei razão. Parecia-me sempre que a distância ao acontecimento tinha o tamanho da imprevisibilidade da vida e da morte, e que tais palavras serviam apenas para que o afecto que lhe tenho esbanjasse em forma de sorriso terno e recadinhos brandos. Agora já não é bem a mesma coisa. Agora as palavras dela estão empestadas de uma fraqueza que as torna quase tão precisas como o fraquejo do corpo, e atingem-me como se o que prevêem fosse tão certo como a madrugada dos dias. Não muda nada. Faço-lhe as festas de sempre, comprei-lhe exactamente os mesmos bombons, vou ouvi-la balbuciar baixinho o discurso da praxe. Vai dizer-me que não se importa e eu quero muito acreditar que é verdade. Vai dizer-me ainda que já não completa mais um e eu não queria acreditar nisso, porque isso são aquelas coisas que nós não conseguimos prever, mesmo quando a presciência está perto de ser visível.

( Hoje é dia do pai. O meu é o filho dela, e é, como qualquer pai que se preze, o melhor do mundo. Sempre o achei, mas multipliquei o apreço que lhe sinto desde que se elevou a melhor avô do mundo.)    

domingo, 17 de março de 2013

requintes


Sabia lá eu no meio das flores da primavera precoce, o que seria o amor de que tanto se falava. Ainda assim queria-o, acautelada pelo chapéu de palha de aba larga que roubava ao prego da parede velha, assim viesse  sol, assim me apetecesse ( as saudades que eu tenho do assim me apetecesse). Sentada numa manta desfolhava malmequeres no anseio do bem me quer. Uma pétala de cada vez, sem enganos, atentíssima. Guardava os pés mortos das flores que me calhavam bem e deixava os outros sumirem-se no ar fresco tarde afora. Não tinham lá grande intenção, as flores que eu apanhava, e serviam só para que eu treinasse a motricidade fina dos meus dedos, hoje sei disso. Dou como certo terem sido as principais responsáveis pela minha aprimorada capacidade de enfiar agulhas sem vacilo, sequer sem necessidade de lamber o fio que nunca se abre aos meus dedos, precisos, fixos, sem tremelicos ou safanões vindos a despropósito. Uma preciosidade de predicado que utilizo uma vez no ano, eventualmente duas, por falta de tempo ou paciência. Fosse eu dotada de ambas e passaria os meus dias em frente à Bernina velhinha que calhou de herança à minha irmã, juntamente com um anjo, uma colher de pau e uma infinidade de coisas invisíveis. Ela cedia-ma sei disso. Se assim fosse, costuraria vestidinhos de seda colorida bem acima do joelho, que me embelezassem as pernas e me trouxessem a primavera florida de cada vez que eu me olhasse ao espelho de corpo inteiro que sai da porta do roupeiro de madeira onde moram vaidades, malvadas essas. A culpa das vaidades é dos espelhos. Dos de parede e dos das almas, espalhados nos olhos do mundo, juntos numa dança só. Não sei muito bem o que me fazia crer, ainda que levianamente o fizesse, nas previsões de uma flor. Desconheço ainda a razão do empenho exagerado impelido na desfolhada, como se o amor só pudesse nascer de um malmequer branco ao calor de uma tarde soalheira, que ignorância a minha. O amor pode nascer em plena chuva do Inverno, por exemplo. Crescer num rosário carregado, acolher carrancas, tiritar de frio e estender-se ao comprido no bafejo da corrida para sucumbir ao encontro. Um sossego inquieto, uma morte estranha, que afinal é vida cada vez maior. Nunca poderia imaginar a dimensão. Tivesse eu a mínima noção e teria deixado em paz os campos ao redor das casas velhas. Assim sacrifiquei flores sem fim, mortas às minhas mãos, cientes de que tudo se resumia à simplicidade de um malmequer, de um chapéu de palha, de uns dias de sol. E à vaidade de uma flor no cabelo, pois. Vale-me em consolo, e pelo assassínio em massa da flora circundante, o requinte das minhas mãos. Não fosse tal facto, utilíssimo, e nunca me perdoaria. 

sexta-feira, 15 de março de 2013

géneros, por exemplo isto

A fila esmoreceu-se. Havia o velhinho de bengala de pau e eu, as restantes eram pessoas apressadas em corrida, chave no apartado e saída,  antes da porta fechar. Dona Teresa desfaz-se em simpatias, pergunta-me do filho, do trabalho, da família, minha e dela, como se eu soubesse tudo o que há para se saber. Respondo-lhe sempre que vai bem, de circunstância, vamos indo, andando, tudo igual, mesmo que não esteja, mesmo que assim não seja, mesmo que a vida se torça e retorça, mesmo que vá nascer gente amanhã. Ao lado dela um conjunto de colegas dividem-se em tarefas monitorizadas, distribuição de envelopes endereçados, pacotes de encomendas, registos, avisos de recepção, cada um concentradíssimo até que a porta se abre a uma senhora simpática. Sorriso nos lábios, andar apressado, retira o ticket, olha o visor que toca no mesmíssimo segundo pelo homem do meio e dirige-se à chamada. O homem da ponta, já em passo rápido na direcção do seu posto, olha o homem  do meio de lado e balbucia, estragaste-me a festa, esta era para mim. O homem do meio sorri discretamente e procede ao atendimento, cortês e amável, enquanto a senhora trata o que tinha a tratar, calma, já sem sorrir. Dona Teresa insiste comigo, eu chuto para canto. O velhinho esconde as notas na bolsa pendurada ao pescoço. A senhora sai, o trabalho prossegue. Meia dúzia de gente, outras tantas jogadas, cada um por si.

quinta-feira, 14 de março de 2013

quarta-feira, 13 de março de 2013

crenças

Era pequena e a abóbada da igreja enfezava-me ainda mais. O padre tinha umas vestes compostas e uma barba farta, capaz de impor respeito ao maior homem que lhe afrontasse a sapiência, não havia quem, lá nas iminências de roda. Eu sentava-me a seu mando no banco do confessionário e deixava vir ao de cima pecados cometidos a logro do corpo que se queria vitorioso; batotas, mentiras, coisas de gente criança. Depois rezava a penitência ajoelhada num banco de madeira escura, na capela gelada, três Avé Marias, um Pai Nosso, outra oração a um Santo escolhido por mim. A catequese seguia-se e queria ensinar-me a crer no que eu não via.  O Senhor no Reino dos Céus, Satanás nos Infernos, Agostinho, António, Santíssima Trindade, Senhora de Fátima, da Nazaré, Santiago, Rita de Cássia, Teresinha do Menino Jesus, cada um deles com uma incumbência divina, na qual eu deveria ter fé. Tinha alguma, semi morta, a fervilhar no seio de um cepticismo de São Tomé, apanhara-me em caminho, eventualmente no carreiro de pedra inclinado onde eu cheirava oliveiras e carneiros de pasto. A minha avó nunca aceitou bem o porquê da confiança divina não me ter nascido naturalmente no meu saber pequenino, sequer o porquê de eu questionar a convicção cega em verdades escritas há longas centenas de anos na Bíblia sagrada que repousava na mesinha de cabeceira, azul e doirada, sem rigor de verificação. Não acreditas nos contos de fadas?, perguntava a importunar-me, enquanto costurava bordadinhos primorosos que enfeitavam camas de noivas recém casadas, o mais puro do linhos na pureza do leito, esta última prestes a morrer. Acreditava mais ou menos, apreciava a confiança nas justificações do que eu não concebia, tragava a religião e a mitologia que me caia em mãos e delineava uma fabulação interna que me aclarava, ligeiramente, de onde vínhamos, para onde vamos, o porquê da história nos atribuir um princípio evolutivo totalmente distinto da génese dos corpos via Adão, Eva e pecado, maçã e cobra, animal sedutor que levou a Mulher, fraca, a morder o que não devia. E logo ela, a Mulher. As causas resistem-me hoje, ponderadas. Quis o que se vê ou a subtileza, que eu enveredasse por ciências subjectivas, lugares onde vejo e meço o que se constrói sustentado ao invisível, quais matemáticas, quais biologias, qual exactidão esmerada ou rigor de cumprimento. A crença e de uma forma abrangente, surge-me hoje reflectida em mim e em mim mesma, individualizada, consciente, única em milhões de seres mundanos, limitadíssimos à visão efectiva ou ideada, cada um por si. Todas mentiras, todas verdades. Uma destas últimas, porém, dou-a como realidade absoluta, sinto-me no direito. É possível haver o que não se vê em corpo, e que venha armado de saber quem me queira convencer do contrário. A propor-se fazê-lo, que se ornamente devidamente de substancialidades suficientemente capacitadas, livros, tábuas inscritas, caracteres mensuráveis, palpáveis, e tudo o que me faça crer, por A mais B, tecido e corroborado, a verdade da inexistência de tamanho axioma. 

terça-feira, 12 de março de 2013

Bieber

Depois de toda a gente excomungar a garotada que se apinhou à porta do Atlântico para ver e transpirar pelo Bieber, já posso vir dizer que acho a adolescência um fenómeno lindo e sem tamanho. Sem cinismos, invejas ou segundos sentidos. Acho, ponto. Exageradinhos que só visto, é um facto. Mas há lá coisinha melhor do que deixar ir o corpo ao exagero sem os limites da adultez a estorvar no caminho?

( Não, não sou adepta de riscos exagerados. Mas lágrimas, gritos e desmaios cardíacos de emoção descontrolada, nunca mataram ninguém.)

segunda-feira, 11 de março de 2013

olá, sou o Sr Silva,

vivo há muitos anos e já não tenho paciência para isto. Estou farto, dói-me o corpo todo, morro tarde, já há muito que morro tarde. Houve um dia em que deixei de me poder mexer em condições. A bengala não chegava, sabe como é. Conseguia virar-me, mas depois caí no chão. Nesse dia levaram-me para um hospital onde fiquei até que os filhos me trouxessem para aqui. Teve de ser aqui, o dinheiro não chega para coisinha melhor. Como mais ou menos, tomo banho uma vez na semana, mudam-me a fralda umas duas vezes ao dia, depende de quem cá está. Algumas têm mais algum cuidado, outras é a despachar. Os meus filhos vêm pouco. Ligam de vez em quando, moram lá para a Capital. Têm os filhos, os meus netos, que saudades que eu tenho deles. Quando cá vêm nem sempre os trazem, estão grandes, têm a vida deles. Ali ao lado dormem mais dois. Às vezes um deles grita toda a noite e eu não consigo dormir. Quando assim é durmo de dia, à tardinha, numa cadeira sem encosto. As de encosto não chegam para todos, são poucas, e eu não tenho direito, são só para quem paga um bocadinho mais. O que tenho sempre direito é ao pão seco. Isso, é à descrição. Posso comer pão a toda a hora, mas há vezes em que fico meio embuchado e já não me apetece. Fumo aqui uns cigarros à janela. A filha ralha que é caro, mas sabem-me pela vida que já não me vive aqui no corpo, coisa esta, alguma vez pensei. Pensava sempre que morreria de uma morte santa a meio de uma noite, em que o coração, farto, me deixasse em eterno sossego antes de precisar de alguém para além de mim mesmo. Não escolhemos, escolhemos pouco nesta vida e escolhemos ainda menos quando ficamos velhos. Quando ficamos velhos pesamos. Encarquilhamos o corpo e a alma que deixa de ter direito a decisão, mesmo que em tempos tenhamos sido gente da boa. Li muito, li que me fartei. Vi televisão, vivi revoluções, acompanhei Presidentes da República e politicas que se preocuparam qualquer coisa com os velhos e os reformados. Hoje essa gente deixou de existir. Eu também não pensava muito nisto, confesso. Era daquelas coisas que eu não via, e que por isso partia do pressuposto que não haviam. Os tempos também eram outros, as mulheres estavam em casa, agora tudo mudou. Algumas coisas para melhor e outras para pior. As possibilidades são maiores, mas esqueceram-se ainda mais os velhos. Ninguém nos vê, é quase como se não existíssemos. Se passa qualquer coisa na televisão, vê-se a medo, foge-se com os olhos e pronto, passou. Estas pessoas aqui é como se nos estivessem a fazer um favor. Dão-nos comida, fazem-nos um mínimo de higiene, mas o que eu queria era ainda sentir-me gente, e a verdade é que já não sinto. Estou velho, quase acabado, só não percebo porque é que não acabo de vez. Digo isto muitas vezes e com franqueza, mas acho que ninguém me percebe. Dizem-me sempre que é um disparate, que está tudo nas mãos de Deus. É verdade, eu sei que é verdade, mas não entendo a demora. Despesas para os filhos, que pouco podem, estorvo para toda a gente, e só faço é sofrer. Se ao menos o Senhor se lembrasse de mim, era o maior favor que nos fazia. A todos. 

( Qualquer semelhança entre esta história e a realidade, não é coincidência nenhuma. É uma existência sentida porta sim, portas não, lá, onde não se vê.)

...

Um dia, eventualmente, vai acontece-me isto. A partir desse dia deixarei que estes me enfeitem os pés e o blogue. Aqui, e só aqui, exactamente nesta posição. Linda de morrer.


domingo, 10 de março de 2013

mais um, menos um

Doentes mentais a abandonar tratamentos por falta de dinheiro, chegaríamos cá, claro. Há os que ainda têm família de suporte, e há os que a não têm, ficando estes últimos entregues a um trevo sem quatro folhas de sorte. Tenho tolerância para sacrifícios, mas não para os que atingem classes desfavorecidas. A doença mental é uma delas. É-me próxima, mas mesmo que não fosse. Um esquizofrénico, um psicótico, não vivem sem fármacos, no nosso mundo. Mesmo com auxilio, vivem lá dentro, no deles, muito mais do que cá fora, no nosso. Sem ela, perdem-se, e sei lá eu se se encontram outra vez. Experimentem, quem regulamenta o que permite esta lacuna, um labirinto escuro e sem fim à vista, onde personagens estranhas chegam, capazes de matar. Não há fuga possível, só perseguição. Há figuras estranhas que guiam em grandezas inexistentes, que fragilizam, com mãos de falso amparo. Convenhamos, não deve de ser bom, mas são loucos, e os loucos, sempre foram loucos. Ninguém os ouve, ninguém os crê. Deixai-os falar, pois. De gente transviada, está o País farto. 

(Mais um, menos um.)

sexta-feira, 8 de março de 2013

do dia...

Eu podia escrever qualquer coisa relativamente ao dia, que podia. Mas bati com os meus olhos aqui, e achei que dizia tudo, mas tudo, muito melhor do que eu diria. 

quinta-feira, 7 de março de 2013

chocolate

O líquido pingava-lhe da boca doce e espesso enquanto a língua se passeava pelos lábios entreabertos, não fossem perder uma gota. Puro desperdício. Ele olhava-a do canto da sala a esperar que terminasse a caixa que devorava com o corpo esquecido ao mundo. Gosta particularmente quando o corpo dela se esquece ao mundo. Quando se entrega no limbo da pele que a cobre e o mata, para se deixar viver nos gestos, nas frases e nos olhares que lhe saem emaranhados em desejos escondidos, imensos. Ela prolongava-se numa sofreguidão declarada em cada trejeito e engolia os chocolates amargos, trincando as ginjas suculentas que se confundiam com os lábios vermelhos, irrequietos. Puro proveito. A ele, nunca uns chocolates lhe pareceram tão grande tentação, sequer sem prová-los. Jura que os comeria, dia após dia, sem gula mas em pecado. Ela estava distraída, tinha uma caixa de chocolates de licor inteira e só para si. A certa altura levantou os olhos, a caixa estava meia, comeria mais? Ao longe, ele aguardava o sim. Ela sorriu com uma boca quase quieta e voltou a olhar para baixo. Pousou-a no chão, levantou-se e mirou a lua, redonda, belíssima. Para ser perfeita, só lhe faltava chocolate. Não tinha, a lua nunca vem com cobertura de chocolate. Muito embora haja dias em que sabe, terrivelmente, a pecado. 


( O festival do chocolate está aqui, e não há meio de acabar. Das duas uma, ou mato a distância, ou mato a gula, o que constitui a mesmíssima coisa, convenhamos. Isto se o tempo que lhe resta não morrer depressa. Diz que é a dezassete. Benzo-me, mas não sei se resulta. )

quarta-feira, 6 de março de 2013

ignorâncias

Gosto quando encolho ao tamanho da formiga, pessoa pequena, que me permite a mesquinhez da existência. Todos a temos, ou sempre ou só às vezes, em dias alternados, o que for, até quem do pico da altura apregoa que não. Nessas alturas satisfaço-me com a fraqueza de quem "sabe", de quem bebe subtilezas e as liquefaz, plena de direito em devorar a proveito próprio. Vai-se a ver e tem, cada um sorve o que quer e como quer, chama-se a isso direito de liberdade. Exactamente igual ao que eu tenho em me sentir majestosa com o júbilo infundado que emana entre sorrisos e diminutivos desfeitos a brandura selecta, uma maravilha compostinha, pequenina, que faz gente feliz. Não tenho nada contra alegrias alheias, atenção. Esforço-me até, diariamente, em fazer rir quem chora, em afagar quem sofre, em acarinhar rostos marcados a ferros eternos que só a morte há-de matar. Mas encolho assim, é um facto, nas alturas em que sinto um gozo danado pela ignorância, ufana, de gente alegrada que passa perto. Que espreita, serve-se a gosto e foge. Calada, feliz e ignorante.

terça-feira, 5 de março de 2013

amarelo

Chloé, a partir do Blogue da Rita Varela

( - Amarelo é a cor dos tontos, filha, dizia-me a minha avó. - Ó vó, mas eu gosto tanto, e agora?... Não sou tonta, pois não??? )

Um dia rompi com os meus próprios limites e comprei umas calças de linho amarelas. Logo depois seguiram-se uns sapatos vermelhos, coisa pouco própria, também. A partir daí foi um descalabro. Já vesti saias rodadas com padrões esquisitos, colour with black, laranja com violeta e branco. Este ano, juro, sou capaz de me vestir toda de amarelo, sapatos incluídos. Torrado, desmaiado ou canário, a ver vamos. E por favor, não me tentem dizer, que só no preto vive a elegância.

( Não, não se enganaram. Isto não é um fashion blogue, é mesmo o costume. Mas o meu costume vai-se a ver e tem dias, varia de estado de espírito. E meto as minhas mãos no fogo em como o eclectismo da casa, não tem rigorosamente nada a ver, com a loucura do amarelo.)

segunda-feira, 4 de março de 2013

...

Instalou-se-me uma dor nas costas, lado esquerdo, no mesmíssimo dia em que os espirros me tomaram de assalto. Encolho-me de cada vez que sinto um a subir-me ao corpo, tento engoli-lo, sempre em vão, e expulso-o a medo e à força, cá para fora. Não posso respirar fundo de alívio, o costado, ofendido, reclama. Não posso empoleirar-me e ter a mania que sou gente grande, o costado, ofendido, reclama outra vez. A falta de sentido de oportunidade do meu corpo é qualquer coisa, atentem-me nisto. Nisto e na grandeza da nossa vontade, pois. Lérias, balelas, aferros de correntes positivistas que se lêem que é um mimo e que até parecem, na vontade, verdade. Eu própria as apregoo, vejam-me bem, podemos tudo e mais o que vier, é querer, senhores, é querer. E é podermos, senhores, e é podermos. Hoje, por exemplo, não posso ser grande. E isto pode nem ter só a ver com sapatos e com costados ofendidos a espirros incontroláveis. Ou pode, senhores, ou pode. Bastam, perfeitamente.  

domingo, 3 de março de 2013

...

Hoje, aos trinta e muitos, consigo enaltecer a genuinidade e a generosidade, por exemplo, muito acima de tantas outras. Em tempos apreciei a complacência da discrição, o glamour da delicadeza e o savoir faire da educação. Nenhuma me abandonou os gostos, atenção, mas se tiver de escolher, e considerando a  forte e frequente prevalência de umas em detrimento das outras, anteponho as primeiras. Na ordem, portanto. As segundas vêm, não raras vezes, com nuances, sui generis, encriptadas. Um tal de esvaziamento de carácter, quem sabe revogado na tentativa de enaltecer propósitos que apreciam ser vistos. Nada de generalizações abusivas, não se percam em explicações defensivas. A ideal junção será isso mesmo, ideal, mas ainda assim perfeitamente possível. Naturalmente quem as reúne, reúne, sem demais explicações. 

relvinhas



( Fiz montes disto em garota, mas não me lembrava. Valem-me os títulos dos principais diários nacionais para eu regressar no tempo, não fossem eles e nunca recordaria este cromo repetido até à exaustão. Outra coisa, os bonecos do contra informação fazem-me uma falta que só visto. E vêm aí, caramba.)

sexta-feira, 1 de março de 2013

Skip Extra Power


(Estou-me verdadeiramente nas tintas para o Skip, o que me interessa aqui é a miudagem a rodar o We Will Rock You. É que ainda sou do tempo das bandas de garagem - entradota, portanto. Quanto à roupa, por mim, podem até lavá-la com sabão macaco. Não sei se é bem a mesma coisa, mas a verdade verdadinha é que desde que deixei de acompanhar a minha bisa ao rio para esfregar lençóis, nunca mais vi nada tão branco.) 

Seguidores