sexta-feira, 31 de outubro de 2014

liderança

Vejamos, é simples: do lado de dentro da segurança brotam palavras de apreço. Incentivos de continuidade, elogios merecidos, apelos proactivos de mudança, se necessária, esforços de compreensão. Do lado de dentro da incompetência emerge a critica, essa imponente. Nela emparelham-se más palavras e soltam-se receios invisíveis a olho nu, apenas espelhados na urgência da revolta. Não se iludam, é assim em tudo: estados gerais de agressividade revelam a maior das fraquezas, e das duas uma, ou há que matá-la ou há que ignorá-la. 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

30/10

Uma das minhas origens nasceu neste dia, há muitos anos atrás. O pronúncio fatal de um escorpião enraivecido comprovou-se em cada fala, em cada gesto, impresso nuns olhos que amaram pouco mais do que coisa nenhuma. Diziam dele, claro, eu não acredito. Gostou mais de mim do que dele próprio, não tenho dúvidas. Passeava-me no colo e comprava-me bolas de serradura, presenteava-me com bananas e com batatas fritas, levava-me ao clube enquanto jogava cartas e dominó. Nunca lhe conheci o olhar característico sentido por todos, talvez falha minha, eventualmente falha dele. Guardo-o aqui igual a sempre, tal como ele me guardou da soleira da porta, para que nenhum maroto me levasse dali. Hoje, há um ano atrás, nasceu outro membro na nossa família. Sob o signo de um escorpião traquina, uma ternura, nuns olhos tão doces quanto o sorriso maroto que lhe escapa de dois dentes, solitários numa boca que se abre sempre, para um contentamento insistente. Dizem há muito, já li em livros, já escutei de vozes sabedoras, que as famílias se devem reconstituir a elas próprias, que as pessoas se renovam, que os percursos prosseguem. Hoje é um dia bom. O dia em que o velho, que já morreu há muito, apareceu para que existíssemos, e o dia em que o novo, pequeno, nasceu para que continuássemos. 

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

excepção

Existem sempre os livros que nos ensinam a existir de forma saudável. Os compêndios que nos explicam como escrever, as bulas que nos esclarecem como ministrar, as sabedorias populares que insistem em tabelar. Conheço quase de cor as regras às quais sou submetida, consigo recitar o correcto e o incorrecto, na ponta da língua, depressa ou devagar. Sei o que devo comer, o quanto tenho de dormir, quando preciso de estar a trabalhar, a que horas tenho de preparar os jantares, lavar os lençóis, espanar a casa do pêlo e do pó. Sou sabedora que deverei espreitar debaixo da cama, por detrás dos móveis, nas arestas escondidas, por entre as mantas da gata. Sei exactamente quando é Inverno e quando é Verão, se é dia de descanso ou de labuta, quais os meus direitos, os meus deveres, as minhas responsabilidades e as minhas precisões. Julgo até que conseguiria escrever isto tudo num guia de bolso, devidamente ordenado alfabeticamente, etiquetado, com títulos, negritos, sublinhados, notas ou asteriscos, um manual que eu poderia consultar na hora do esquecimento, na força do cansaço, na ansiedade do medo. Mas bem vistas as coisas, nem sei se seria preciso. O mundo, o mundo que gira, não é um conjunto de regras, é um conjunto de excepções. Aceitá-las e percebê-las, é toda a ciência que ainda nos falta.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

aquele pato é a tua cara...


(imagem retirada de psicopatos)

Não sei muitas coisas sobre amor, mas sei amar com a infinidade do sentir. Chega-me tanto. A expressão imaculada é que é o delas, morre-me a meio da frase, espalha-se ao comprido na curva de um traço, escapa-me em cada sílaba tónica, que esmorece de fraqueza na beira da realidade. Ainda assim insisto, é de mim a teimosia, e arrumo letrinhas pequenas onde se lerá a seda mesclada com linhas de batôn encarnado. Ora, o amor é sempre uma promiscuidade. De um lado o saudável do outro o doentio, de um lado o prazer do outro a dor, daqui a doçura, dali a paixão. Não sei de outra forma, parece-me até impossível. O meu amor é muito mais do que uma simples felicidade. O meu amor sou eu reflectida em ti e tu em mim, e estamos tão longe da perfeição, que se fosse em compasso estaríamos redondamente enganados. 

Assim, loucuras à parte, vamos a meio da estrada. Eu, como sabes, vou atrás de pendura, e aproveito para te dizer que se me deixares cair terás de voltar para me ir buscar. Amores reveladores são únicos e completamente inevitáveis, só quem não ama assim é que não sabe disso.   

( desculpa, mas aquele pato é mesmo a tua cara. Quanto à pata, falemos depois...)

sábado, 25 de outubro de 2014

colo

Há frases que deveríamos ser obrigados a ler até ao infinito. A copiar todos os dias e a soletrar, letra por letra, sílaba por sílaba, palavra por palavra. Talvez desta forma, lá para os confins do nunca, houvesse uma forma de as aconchegarmos em nós. Ainda assim, desconfio, duvido que tivesse colo para elas. E o meu colo é grande, asseguro-vos, cabe lá uma pessoa inteira.  

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

no final cuspam,

mas se engolissem eram bem melhor.

gravitação

No mundo temos demasiadas vezes duas simples classes. Como se tudo fosse divisível por número certo, sem vírgulas, sem casas decimais. De um lado os que julgam que a humanidade gira em tordo deles. Do outro os que desfazem em prol da humanidade como se de um estorvo se tratassem, sendo portanto pertinente a acção e o respeito produtivo, sempre direccionado ao centro. Retiro, para além de outras coisas, bem além de um numero par, que há os que se julgam o cerne, e os que constituem a periferia. Algures no intervalo pouca gente habita. E deve ser também por isto, que o mundo gravita. 

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

vincular

A vinculação é seguramente uma das nossas urgências mais básicas, no que confere à saúde mental. É a partir dela que se organizam de forma salutar os patamares da socialização, sendo que o inverso não deixa de ser verdade, ou seja, partindo do pressuposto de que evoluímos em interacção com o meio, constitui uma fonte de desenvolvimento intrapsiquico e individual. Votar crianças aos cuidados institucionais provoca de forma directa uma dificuldade severa na manutenção dos objectos vinculantes. Induz a um medo de afectar o desejo a uma presença inconstante, que foge ao fim de semana ou passados uns meses de contrato, porque surgiu qualquer coisa melhor (pode sempre surgir qualquer coisa melhor quando não há amor). A manutenção da alimentação e do cuidar o físico continua, a meu ver, a sobrepor-se largamente ao cuidado afectivo, mas a realidade é que a saúde vai muito além de um corpo alimentado e aquecido. O jornal Público apresenta-nos hoje números assustadores, que apenas resumem o que todos sabemos: há demasiadas crianças institucionalizadas em Portugal. Há muitos meninos e meninas sem um objecto próprio que lhe devolva de forma sadia o que necessitam para crescer. Há demasiados meninos e meninas que em vez de colos sempre iguais conhecem inúmeros, exagerados, porque nos afectos o que é demais também pode enjoar (ou neste caso falhar). E há demasiados meninos e meninas que conhecem a rejeição em fases e frases, por dentro e por fora, com todas as características que nada têm a ver com a língua e com a construção frásica que a sociedade parece valorizar ao infinito. Pode estar em sofrimento, desde que seja bom aluno. Pode estar em desconforto, desde que seja educado. Pode chorar de noite desde que sorria de dia, e pode ter a alma rasgada, desde que o corpo cumpra os parâmetros analíticos da hemoglobina, dos leucócitos, dos linfócitos e das plaquetas. Há caminhos a percorrer no sentido de inverter a marcha. São passos pequeninos a ser dados num país em crise, onde os orçamentos pesam demasiado quando comparados com a necessidade efectiva de uma criança (de muitas crianças, acabamos por concluir). A redefinição do terceiro sector, o incentivo à criação de famílias de acolhimento devidamente apoiadas, a evolução de uma responsabilidade social, fazem parte de uma consciencialização do assunto verdadeiramente urgente. Uma grande parte da população não sabe o que é não ser visto, não ser chorado, não ser sentido. Doer apenas às pedras da calçada deve ser mais frio do que essas pedras, que nunca na vida chorarão. Pensar sobre isso é um mínimo aos qual todos nos deveríamos obrigar. Pela emergência da compreensão.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

capricho

Nasceu um dia pertinho da hora do jantar. Algures alguém escrevia que os sons tocariam uma melodia sedosa e doce, com cheiro de cravinho e a tomilho fresco. Nunca se esqueceu do que diziam as rezas, Carmina deixava-lhe escrito, todos os dias, num papelinho dobrado pousado no banco do jardim (os figos serviam para acompanhar, um de cada vez).  O gato das botas, escrito em livros pequenos e mansos, ensinava coisas aos meninos que sabiam que amanhã naquela hora estariam ali outra vez. A ciganita escura passava devagarinho com água fresca para o chá ( tu nunca gostaste dela, tinha piolhos, uma maleita danada). A tarde trazia um som sereno que se entregava aos ouvidos de quem o deixasse entrar, ao mesmo tempo que a brisa fresca se recolhia da noite e do perigo. A música continuava, ali para as bandas da casa velhinha, e tu seguravas-lhe sempre na mão pequenina. Agora morreste-lhe e parece que ninguém percebeu ( ou todos leram assim de longe). Há uma festa que lhe deves e é preciso que lha pagues, hoje, no sítio que ambas sabem, nem tarde nem cedo, nem de noite nem de dia. Claro, não se exigem presenças a pessoas como tu, só às terrenas. Mas a única verdade é que te escolheu a ti (calma, tem calma, sempre a soubeste caprichosa). Não faltes. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

não que seja pouco, mas

dantes não era assim. Dantes não havia net nem youtube, e as músicas ouviam-se numa estação de rádio muitas vezes de mau gosto, dizia eu, na altura adolescente, pessoa de gosto duvidoso. Aqui na terra ouviam-se então os discos pedidos, uma hora por dia em que podíamos escutar a música que nos elevava os sonhos, que nos rodopiava o corpo mesmo sem querermos, que nos atingia a dinâmica própria das meninas de catorze, uma coisa que não tem descrição possível porque não há palavras que traduzam a idade em que tudo se sabe, sem nada se saber ao certo. É por isso que eu acho que o meu filho tem sorte em ter uma lista escolhida por ele num programa concebido para o efeito, com o propósito de outros rapazes e raparigas iguais a ele poderem escutar o que entenderem, sem que para isso tenham de esperar pelas seis da tarde, perto de um telefone fixo que marque o número que os deixará no ar, a solicitar a banda sonora do momento. Ou isso ou passar o dia com o ouvido ligado à estação que passa tudo menos o que apetece, à excepção de uma ou duas vezes por dia, claramente "a hora do dia". Depois, quase ao mesmo tempo, acho que ele tem algum azar. Quando penso que ele nunca saberá o que é a borboleta da expectativa por pequenas coisas, que são maiores do que o mundo. E que terá dificuldade me perceber o valor da espera e o que se poderá fazer com ela, que é uma infinidade de coisas que já nem me lembro. E que não chegará a experimentar a loucura que é ligar para uma rádio e falar em directo, enquanto se pede com vergonha "aquela música". É que depois "aquela música" sabia a vitória e a vontade, enquanto as músicas de hoje sabem só a música. Não é que seja pouco, que não é, mas dantes não era assim.

(O esforço de hoje está em saldo, é só carregar num botão. Vem em rolo continuo, ininterrupto, e quando pára bloqueia o cérebro. )

domingo, 19 de outubro de 2014

felicidade

O impulso, totalmente primário e emocional, fez com que tentasse ir ainda mais fundo na tristeza humana. Na raiva, na injustiça, na revolta. Durante dias inteiros escutei choros, vergonhas, culpas, tumultos que se expressam com força do corpo para fora, gritos que procuram um único lugar para espelhar. Somos maus nisso, somos muito maus. Cultivamos o belo, o correcto, o sorriso e a felicidade. Não aceitamos a lamúria porque dói nos ouvidos e porque nós próprios não sabemos o que fazer com ela (confessem, a impotência é toda ela um lugar indesejado). Perante um sorriso é fácil, sorrimos também. Perante um salto de alegria partilhamos e recebemos, mas perante a culpa tentamos apaziguar. Mudamos o mundo de lugar, redimensionamos os papéis, espreitamos outras perspectivas que nos conduzam à inocência do acusado, e fazemos-lhe frente (como se ninguém tivesse o direito à culpa). Na tristeza somos ainda mais ferozes. Arrancamos pessoas do lugar do queixume para as levarmos para o meio de uma festa, um conjunto de ânimo à base de concentrados que vai apaziguá-la e mostrar-lhe que o mundo é cor-de-rosa, e não negro da cor da noite. No seguimento calamos gritos, abafamos lamentos, escondemos esbracejos para que ninguém perceba a vergonha da fragilidade, para que ninguém cheire o odor da dor, para que ninguém definhe de inoperacionalidade: é claro, é claro que as nossas próprias fraquezas são residentes ali. É claro que o que pretendemos é que a coerência se liberte para o redor, e que  as ondas de harmonia se expandam ao mundo (seria tudo tão mais fácil). Caminhei sozinha ao longo da estrada, num hino à nossa ignorância e à nossa vontade de serenar sempre. Como se isso fosse possível, como se isso se traduzisse em maior felicidade (como se a felicidade não fosse muitas vezes, o resultado de inúmeras tristezas). 

( A ausência foi também ela um impulso inicial de cansaço. A elaboração secundária que possa ser sentida é um erro de percepção. Posso afiançar-vos.)  

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

pausa

Uma Mulher que não chora, certamente ficará cansada. Por ora descansa, por tempo indeterminado. Obrigada a todos.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

aqui e ali

É quase sempre cobardia. A culpa é toda dela e era ela que deveria vivê-la, espremê-la, cheirá-la e esgotá-la. À inveja, devo dizer. Os calados censuram as vozes que não têm, os ansiosos desdenham a calma que foge, os desalinhados desprezam a ordem que lhes falta e os acanhados acusam o audaz, que cobiçam até ao mais ínfimo poro de pele. Tal como os homens desejam a lábia do encantador, e as mulheres namoram em segredo os olhares roubados pelas sedutoras. Iria mais longe. É vontade que pinga muitas vezes das palavras que cortam o ar, em nome da congruência, da moral e do bom costume. É dor que regressa na volta, é tumulto que se firma, teimoso, diante daquele que arrisca galgar a normalidade. Aposto, juraria, que todos sabem do que falo: muitas vezes cobardia, para além de admiração.


Depois de saltá-la, já podemos regressar tranquilos. Já fomos e já viemos, já sentimos e já retomamos, há uma batalha travada e uma guerra vencida, daí em diante estamos mais serenos. Ou seja, a cobardia e a inveja nada mais são do que atiçadores de almas cautelosas. Um mal necessário, que peca somente um pouco aqui, um pouco ali.

crescer

Com o tempo seria suposto eu ganhar tolerância. Deveria ser paciente para os que vagueiam, tranquila com os que demoram, pacífica com os que descaminham, calma com os que escolhem perder, em vez de vencer. Todos estes conceitos se traduzem em liberdade, o direito que cabe a cada um e a cada qual, a autonomia que rege os movimentos da evolução. O meu único entrave é a impossibilidade da total individualidade e a consequente interligação entre pares, com carácter permanente. As outras acções interferem nas minhas, os erros alheios posso eu ter de pagar. Acabo a crer que nesta realidade interdependente há conceitos demasiado impossíveis para serem postos em prática, talvez por isso a liberdade continue a ser um sonho, a cumplicidade uma ilusão, a vontade um dom individual, e o resultado final somente o possível, da lógica comunhão.

Há supostas formas de vida superiores que não nascem com o tempo, esbatem-se, no confronto com a realidade. Quem me disse um dia que eu iria crescer, mentiu-me. Aqui não crescemos, só nos adaptamos. 

domingo, 12 de outubro de 2014

1 de novembro, um dia como outro qualquer

Movo-me no meio de um circulo de perspectivas importantes no que confere à vida e à morte, e no que respeita à validade de um testamento vital, com perspectivas francamente distintas sobre o assunto. Se por um lado as ciências médicas optam, na generalidade, por sustentar o corpo ao limiar da possibilidade, por outro as ciências que se debruçam sobre os processos mentais analisam o todo, e consideram que a qualidade de vida é um direito tão ou mais importante do que um simples coração a bater artificialmente, impossível de se encontrar outra vez. 

A questão da eutanásia, demasiado importante para ser esquecida, mas excessivamente delicada para excessos de discussão, vai um passo à frente, sendo um assunto que se impõe com urgência para uma análise pluridisciplinar, livre o suficiente para não reduzir um ser humano a uma crença religiosa, e respeitando a liberdade a que todos temos direito. Não trago para aqui, também devido aos motivos que atrás descrevo, incentivos polémicos que remetam para algum dos lados, não me sinto sequer capacitada para o assunto. Arrisco apenas algumas questões, as mesmas que me perseguem, e que estão totalmente isentas de dogmas limitativos; Brittany vai morrer a 1 de Novembro. Por escolha sua, numa solução mais rápida que matará de vez por todas o tumor que a mata ela, devagarinho. Será legítimo? Se não considerasse esta hipótese, iria ficar sujeita a uma degradação prevista que não pretende para si, enquanto ser humano e enquanto pessoa. Será justa para com ela mesma, privando-se dessa travessia de evolução? Acreditando na ignorância sobre o futuro, e encarando a ciência como em constante evolução, até que ponto perderá a oportunidade de algum aperfeiçoamento inesperado, ligado à ciência médica? 

Planear um nascimento em qualquer circunstância, mais ou menos razoável, é uma acto natural, onde a interferência directa com a natureza não cabe como questão. Planear a morte, por sua vez, vai contra distintos princípios, com inúmeras frentes e opiniões. A liberdade e a dignidade de cada pessoa acabam por ser, a meu ver, os nobres reitores de cada processo. A lei, por si só, talvez não devesse imiscuir-se tanto no assunto. Parece-me demasiado pessoal para constar no limite de um decreto.

sábado, 11 de outubro de 2014

...

De manhã bem cedo encontro o vizinho no patamar da escada. Bem velho, bem zangado, bem documentado. O país que temos vale pouco ou perto de nada. As pessoas que o compõem não têm vergonha, têm umbigo, e à volta dele gira um mundo individual de cada uma delas. Bem feitas as contas e é reparar que existem milhões de mundos diferentes e não existe um único mundo comum. Ergue-me o dedo ao alto e defende a educação. Acena com a cabeça e afirma que a força do trabalho já moveu montanhas, que a dignidade dos valores já edificou casas, que a união da família já salvou vidas inteiras, que a palavra já valeu por um papel. Hoje não sabe onde está, sabe apenas que não pode sair de carro desde ontem, ficou trancado por um outro que resolveu barricar a entrada da garagem. Conversa puxa conversa e afirma-me que certamente será do jovem que urina no muro do prédio pela manhã, uma vergonha. Prossigo caminho e amaino pensamentos. Atravesso o dia e encontro a noite, quente demais para o Outono que nunca mais chega. Apresso-me na chegada e por coincidência encontro o mesmo vizinho, bem velho, um pouco menos zangado. Já tivera ordem de saída, era um carro que avariou o sistema electrónico de sobrevivência. Perante a chuva, em vez de fechar abria os vidros, carecia de ser protegido. Uma desculpa esfarrapada, diz-me, não me convenceu. Já vinha a rir-se, subiu devagar. A menina vem cansada, prossegue. Ideia sua, deixo transparecer. Olhe que eu sou velho mas sei da vida, diz-me antes de entrar à porta. Sigo e penso no que me vendeu de manhã. A força do trabalho, a dignidade dos valores, a união da família, a solidez da palavra. Entro e arrepio-me, subiu-me um frio da espinha, certamente uma ponta de ar. Respirei fundo e deixei-me ficar. 

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

exageradamente caro

Sou capaz de ter tolerância para a impertinência. Consigo aceitar a indiferença, perceber a distracção, compreender o esquecimento. Facilmente recolho paciência dos fundos do corpo. Arranco a gancho palavras improváveis, utilizo com parcimónia os recursos anímicos que falo abaixo, distribuo sorrisos pelos bons e pelos menos bons, pelos que sabem e pelos que não sabem, pelos que me conhecem e pelos que me olham todos os dias, como se fosse a primeira vez. Mas encolho-me, retraio-me e retorço-me, quando me cospem no prato que eu dou. Nessas alturas, quando o corpo aquece e a mente arrefece, distribuo sorrisos como quem dá salvas de prata. É caro o meu sorriso. Custa bem mais do que dois tostões, meias conversas ou lustros ao ego. Na retaguarda não há gravações esclarecedoras. Nem que me peçam, nem que me implorem.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

ânimo

A força anímica depende de um conjunto significativo de circunstâncias internas e externas a nós. Varia com o sol poente, com a lua nascente, com o amor crescente, com o desânimo latente. A fluência com que vagueia interna e externamente, assusta qualquer mago do pensamento. A rapidez com que se alterna, a inércia com que permanece, a violência com que se instala, o vagar com que se demora. Por ser tão própria, deveremos mimá-la. Para isso é preciso guardá-la, à boa, dentro de uns frascos sempre à mão. Ou numa caixa de pó de arroz rosado, uma delicadeza. Pior ainda do que não guardá-la, é esbanjá-la. Esbanjar força anímica como se fossem migalhas de pão, é uma tremenda incorrecção. Na hora do testemunho, estamos frente a frente com um saco vazio. 

domingo, 5 de outubro de 2014

outono

Enfada-me o calor do Outono, é a coisa pior que se segue ao do Verão. Baixa-me na cabeça com uma força capaz de me colocar em estado de dormência fora de horas (dormir à hora certa é que nada). Outro dia, a meio de uma tarde, dei por mim capaz de acordar somente umas horas depois. De me esticar debaixo da palmeira do jardim e desfalecer, juntamente com os lagartos, os gatos, os cães. É claro que me foi impossível. Ao fim da tarde, na hora do regresso, encontro-os a cumprir o meu sonho (vida de cão também é isto). Este Domingo fresco sabe-me portanto a nozes das verdadeiras. A isso e a qualquer coisa semelhante a conforto. Sim, obviamente que comida casa com Outono, como casa com Inverno, como quase casa com Verão. As mantas da família já cheiram a frescura acabada de lavar. As pantufas marinam na prateleira, as botas regressam à vida, as meias dizem-me que daqui a uns meses é Natal. Não tarda nada e chegam as castanhas, os figos secos, os bolos de passas e rum. Não tarda nada e o Inverno acaba outra vez. O tempo corre que nem o vejo, mas juro que tento. Outro dia, o do calor, enquanto espreitava o gato de pernas esticadas, quase vi um minuto a escapar-se no ar. Terminou antes de o ser, e já me chamavam de volta ao mundo real (era precisa ali ao lado, e a necessidade mata qualquer deslize inconsequente). 

sábado, 4 de outubro de 2014

we'll always have Paris...



( Fotografia daqui.)

perigo

Às vezes dou por mim interessadíssima num programa de televisão. Raro, muito raro, é de aproveitar. Ontem estava perdidamente apaixonada pela malvadez de Adolf Hitler, um homem que reunia no corpo fraqueza e maldade, um alvo de considerável interesse no campo da psicologia. É antagónica a vida que nos atiça o gosto por tudo quanto desvie, ao mesmo tempo que nos faz querer a harmonia, impossível de existir. Questiono-me como seria o mundo que eu ambiciono, coerente, regular, proporcionado. Ou no mínimo o que seria dos instintos de quem se exalta com o desvio andante. O que me intriga mais ainda, são as propriedades sedativas de um bom programa televisivo. Não sei quanto tempo passou até ouvir o meu filho, em surdina nos meus ouvidos, acorda mãe, já acabou... Por essa altura tinha abandonado por completo a minha curiosidade e o meu alvo infeliz, e já ia num mundo interno, perdida numa viagem de um sonho qualquer, quase tão disruptivo quanto maníacos medonhos. Um perigo este meu interior.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

pequenos mestres

A vida é feita de pequenos mestres. São eles que me orientam no meu dia a dia, me ensinam as cores da calma e do medo, me transmitem o lado de mãe e o lado de filha, o lado da mulher e o lado do homem, a casa do novo e a casa do velho. Ouço-os muitas vezes falar com a ligeireza de quem nada me ensina, de quem não me traz qualquer bem, de quem pouco acrescenta ao que esta vida escreve direito, em cartazes padronizados, em anúncios optimizados, em livros científicos de extrema precisão. Estão todos redondamente enganados. A Dona Luciana da praça, a Dona Cidália da loja, a Dona Rosa mãe do Pedrinho, a menina simpática do balcão. Entre os gestos automáticos da profissão, entre a régua da educação, entre um serviço prestado por disponibilidade ou dever, dão-me lições a cada dia que encontro. É claro que a mestre maior serei eu no meu lugar, numa equivalência com todas as pessoas do mundo. Mas elas, as outras para além de nós próprios, são mestres de vida e de acção. Somos todos pequenos mestres. Tão pequenos que ninguém nos vê.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

sorte

Quando passado 14 anos ainda não se acredita na sorte, é porque a sorte foi muita mesmo. Ou de como eu não me canso do Miguel Esteves Cardoso, mesmo quando ele fala muito na Maria João. 

Seguidores