Não me cabe a mim desiludir-me com o mundo, o mundo está igual ao que sempre foi. Não me cabe desiludir-me com as pessoas, com as guerras, a política, com os hábitos, os costumes e os dogmas que nos prendem a uma raiz velha e cansada, mas mais pesada do que um rochedo. Não me cabe ainda desejar o que quer que seja para o novo ano, nada do que ambiciono, além do que a mim possa ser direccionado, depende dos meus desígnios, vontades ou ambições. Posto isto e muito mais que aqui não escrevo, sinto-me leve de medos, que surgem maiores quando os projectos não podem desviar o curso ideado. A assunção da imprevisibilidade, talvez seja uma das grandezas que nos pode trazer a paz. Ou o que mais se pode parecer com ela.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
sábado, 29 de dezembro de 2018
quarta-feira, 26 de dezembro de 2018
a juíza
Se a opinião pública fosse juíza do mundo, o mundo andaria certinho e direitinho, montado nuns carris que seguiriam velozes numa linha recta, conforme a sabedoria popular. Maria fugiu de casa um dia destes. Não foi comprar coisa nenhuma, mas foi pagar um serviço, e levou uma volta que nunca mais ninguém a viu, todos acham que fugiu. Muito já se disse, e as vozes sabem sempre do que falam. Primeiro, era uma pobre de Cristo. Escapou a medo, não aguentou uma vida de sacrifício, deve ter pedido abrigo a alguma alma que a acolheu, caridosa, por tê-la protegido de tão violento marido, capaz de matar, ofender, bater e maltratar. Andou uns dias que cá na terra não havia pessoa que não lhe chorasse a pobre da sorte, não lhe gabasse a coragem, não lhe louvasse a nobreza de deixar a casa, a vida rica, e ficasse apenas com a roupa do corpo, sem nada que fizesse lembrar os luxos de sempre. Grande senhora. Mas foi preciso apenas um Natal, altura de todas as salvações, da família, do perdão, do arrependimento e da melancolia. Nesse dia, ele entristeceu de sozinho, mostrou alguma fragilidade, exagerou, afirma, mas nunca lhe bateu, insiste, sempre cuidou dela, foram apenas umas discussões. Está magro, enfezado, com ar de infeliz, e a nobre justiça mudou. Neste preciso momento, quinze dias após o desaparecimento, oito dias após o primeiro veredicto, um dia após a consciência do arrependimento, temos uma nova vilã e uma nova vítima. Quem sabe se arranjou outro e forjou uma farsa para fugir. Quem sabe se simplesmente se fartou e resolveu abandonar o lar. Quem sabe se não foi nada, e de coisa nenhuma surgiu um acto de loucura. Amanhã, quem sabe, talvez ela volte, e ele a acolha e lhe perdoe este incauto abandono.
Amanhã, quem sabe, talvez ela volte, e ele a acolha e lhe perdoe este incauto abandono. Amanhã, quem sabe, talvez ela volte e ele a mate, como castigo. Hoje e sempre, ninguém sabe de nada a não ser o que julga ver. E o que se vê, pode ser nada, quase sempre é quase nada. Já o que se fala e se ajuíza é tudo, nem que mude com o tempo, com o vento, com o Natal, ou com um visível arrependimento. A magia das festas e de uma lágrima, é infinita.
domingo, 9 de dezembro de 2018
beleza
Visualizei, sob a orientação do professor de filosofia do meu filho, o filme " Cidade de Deus", base de reflexão para um trabalho de grupo. Uma lacuna na minha humilde sabedoria não o ter visto antes, uma falha gravíssima, uma ausência de realidade. O filme traça a vida numa favela do Rio de Janeiro, e é um dos confrontos com a vida mais duro que eu já assisti em cinema. Haverá outros, creio, mas este transporta-nos ao que o ser humano pode fazer em situações adversas e violentas, uma ausência de limites tão assustadora, quanto real. - Muito violento, apregoam algumas mães, a respeito dos filhos, homens quase feitos, de quinze ou dezasseis anos. - Muito real, riposto eu, uma estalada na cara de meninos que julgam que a vida é uma escola quase perfeita, onde os telemóveis topo de gama saltam da mochila, mais rápido do que os ténis de marca dão uns passos no chão. Hoje, de olhos mais abertos, talvez aqueles jovens já pensem que o lugar onde se nasce pode ser uma favela, onde a facilidade se confunde com o céu, de tão longe. Olhar de frente o sofrimento tem idade tardia, marcada pelo calendário dos ocidentais, que julgam que é assim que se faz alguém crescer. Uma pena, que o mundo não aproveite para tabelar por uma bitola idêntica, quando tudo começa a doer. É mais uma questão de jogo de escondidas, de estradas acidentadas nos primeiros caminhos, de lugares onde se pode, ou não, nascer e morrer. Pela história afora, as vidas perdem-se como quem lança um berlinde no chão. Por estas cabeças cruas, vamos no apelo do esclarecimento. Fechar olhos a quem já cresceu o suficiente para saber onde está, é meio caminho andado para a ignorância, mais violenta do que qualquer filme.
O mundo não é um lugar bonito. O excesso de cores com que o pintamos de belo é uma maquilhagem perigosa, que leva ao engano. Um engano desastroso, danoso, mortal. Ensinar o desafio de contrariá-lo parece-me o caminho mais difícil, mais tortuoso, mais longo, mas eventualmente o único que nos poderá levar ao que é realmente belo.
O mundo não é um lugar bonito. O excesso de cores com que o pintamos de belo é uma maquilhagem perigosa, que leva ao engano. Um engano desastroso, danoso, mortal. Ensinar o desafio de contrariá-lo parece-me o caminho mais difícil, mais tortuoso, mais longo, mas eventualmente o único que nos poderá levar ao que é realmente belo.
segunda-feira, 3 de dezembro de 2018
arte
Sempre achei um abuso as interpretações literárias que se fazem às obras dos grandes mestres, e que se entregam, de bandeja, como se o analista de cada livro ou poema soubesse exactamente o que o escritor ou poeta, quereria dizer. O mesmo se estende à pintura, à escultura, ou a qualquer outra obra de arte. Uma expressão emocional em estado puro, é impura. Revela a essência que por vezes nem o próprio consegue encontrar. Na exteriorização assume o exercício de pertencer também a quem a vê, de uma forma diferente em cada pessoa. Tudo quanto a resuma, reduz.
sábado, 17 de novembro de 2018
(...)
Tenho subido todos os dias a mesma escada. O edifício, cinzento, acolhe sobre os olhos atentos de quem espera, pequenos e grandes seres que aguardam que melhores dias cheguem, mais rápido do que uma noite bem dormida, num abrir e fechar de olhos. Nem sempre acontece, nem todos regressam. Ainda ontem, à porta, um homem gritava bem alto a sua dor, expressa nuns abraços apertados de quem esperava que a vida voltasse depressa, seguisse o caminho inverso, renascesse num corpo depois de morto, e fizesse esquecer aqueles segundos, mais longos do que uma metragem de uma história completa, com inicio, meio e... fim. Continuo o meu caminho de regresso a casa, e nele cruzo-me com esperanças, humildes crenças, medos e desesperos, curas e nascimentos. Todos devidamente acondicionados em pessoas que transportam os sentimentos mais contraditórios, lado a lado, num jardim impessoal e velho, rodeado de árvores nuas de outono. Quando chego ao carro, procuro os meus óculos de sol, necessito de esconder os meus olhos de mim própria. Olhá-los, naquele momento, seria confrontar-me com a minha incapacidade de aceitar a nossa natureza, de uma vez por todas. A injustiça humana, zanga-me. Mas a da natureza, mata-me devagarinho.
sábado, 27 de outubro de 2018
antídoto
Odete tem muitos ciúmes de Rosa. Rosa, discreta na voz e opulenta na presença, tenta passar despercebida, mas a rectidão das palavras, a franqueza dos actos e a eficácia dos pensamentos, não permitem. Vê-se a léguas de distância, enquanto caminha a passo certo e calmo, sem grandes acelerações ou dúvidas que a impeçam de prosseguir. Sempre a senti incómoda, ou não fora este mundo um lugar onde o certo desinquieta o errado, e onde a inveja arrebata corações confusos, em vez de os fazer aprender a comportarem-se. Hoje o tema foi um assunto onde Odete nada tinha a ver, mas que de todo, queria saber. A ira acomodou-se no seu metro e cinquenta de pessoa, levou-se das maiores razões de injustiça, ressuscitou memórias alojadas de informações vedadas, e gritou aos sete ventos uma suposta discriminação, como se tudo o que se dissesse, fosse de ordem pública, e tudo quanto se calasse, fossem calúnias direccionadas à sua própria pessoas. A dúvida, todos sabemos, dá lugar à mais feroz zanga, protagonizada por uma mulher. Nenhuma pode com ela ao colo muito tempo, pesa, inquieta, desassossega, desencaminha o espírito para a malvadez da existência. Há algumas que moderam a dose da descarga, refreiam o acto, calculam o timbre, arrumam a emoção, mas Odete não se vai de modas, quer saber, e mata quem se atravessar no caminho. Quando a encontrei, juro, deitava fumo pelas orelhas. Tentei que se sentasse e respirasse fundo, regulasse a emoção, exterioriza-se de forma mais ou menos contida a sua zanga, soltasse, com parcimónia e longe do alvo, o mórbido veneno. Estou certa de que resultou, abandonou-me bem mais sossegada, mas desde esse momento que me encontrava enfastiada, com umas dores no estômago, uma acidez no esófago, uma revolta intestinal. As mulheres injustiçadas, mesmo que em processo de imaginação, são perigosas. Acartam uma força bruta suficiente para desordenar o mundo, desencaminhar o homem, vingar o ego, e quebrar de vez quem se julgue em vigor, capaz de estancar a enxurrada. Num ápice esse pobre alguém afoga-se, inunda o corpo com a peste e respira a custo, como um peixe fora de água. Como paga, trouxe-me há pouco uma caixinha de dióspiros, uma delicia comidos com canela. De uma textura inconfundível, estranha, pastosa, difícil de definir. Comi dois, e melhorei significativamente a minha indisposição.
Há energias que danificam, mulheres que quando respiram horas depois, parecem outras mulheres, e antídotos realmente milagrosos.
Há energias que danificam, mulheres que quando respiram horas depois, parecem outras mulheres, e antídotos realmente milagrosos.
quarta-feira, 24 de outubro de 2018
amor-perfeito
A facilidade com que os "bons" atormentam o outro, seguirá certamente de perto o número de religiosos obsessivos que desdenham o vizinho. E atormentam, também. A humanidade peca por fraca, é necessário corromper para enaltecer o ego, faz parte de um traçado mais comum do que o circuito da necessidade. Nela estão estampadas vontades relacionais não satisfeitas, desamores, injustiças, intolerâncias, fragilidades inconsequentes de todos e para todos, uma roda viva, uma corrida mais louca do mundo, sem fim, e um fim. Estamos todos mais ou menos envolvidos. Pé dentro, pé fora, alguns, acredito, numa fugaz tentativa de desvio para lá da norma, uma remada em sentido inverso, um choque frontal com a dificuldade, um avesso fenomenal, digno de Nobel atribuído em causa justa, por esferas de análise superior, sem tribunais ou algoritmos manipulados. O mundo inverteu, e a ovelha negra é a ovelha branca, que acarta a saúde e a paz, ou a humilde tentativa. Com ela, carrega o peso da mudança, uma revolução, portanto. Sem cravos vermelhos, mas cravejada de amores-perfeitos.
(Uma vingança do interior sobre o exterior.)
(Uma vingança do interior sobre o exterior.)
terça-feira, 23 de outubro de 2018
juízos
Juízos, por mãe preocupada. Tão isto... Como se por vezes o que ela escreve me ajuizasse por dentro, sem ela saber. :)
sábado, 20 de outubro de 2018
livro
D. Alice diz-me sempre que há livros para ler de noite, e livros para ler de dia. Nunca lhe dei grande crédito, confesso, muito embora vá trocando com ela inúmeras sugestões de leitura. Passado uns anos, acho mesmo que terei de lhe dar a razão da convicção. Andava há noites a insistir num livro complexo, enfadonho, sábio, mas muito difícil. Sempre que lhe pegava encontrava reunidas inúmeras sensações, desde o conforto do conhecimento, à insegurança da incompreensão, tocando de perto a beleza das palavras, e fugindo rápido das metáforas encriptadas, injustas para quem aprecia uma boa comunicação. Tomo a consciência de que sou persistente, em diversos domínios da vida, um defeito, tal e qual a gula, entre outros de menor monta em termos de peso real. A persistência é o caminho do êxito, dizem alguns sábios, certos do trabalho a efectuar no caminho da evolução, esquecidos de que a desistência, também poderá ser uma virtude (ou a adaptação, ou a substituição). Desde que abandonei aquele livro e me dediquei à simplicidade, que a minha vida ficou mais clara, mais limpa, mais lógica, mais possível, mais certa de que não se deve partir, para não vergar. É claro que há dias em que tenho de lá voltar. De manhã cedo, mal acordo, antes de enfrentar o cansaço do dia, abro uma página ao acaso, leio umas linhas e percebo com a clareza da manhã, que a vida pode ser mesmo muito difícil de ser lida. Perco uns minutos nesse exercício, enquanto o café me acorda quase tanto quanto o livro me intriga. Abandono a chávena até ao dia seguinte, e o livro até qualquer dia (nunca se sabe quando precisarei de voltar).
terça-feira, 16 de outubro de 2018
indignação
Nos dias de hoje fala-se de violência sexual com a clareza que a comunicação social nos permite. Ontem abordou-se o assunto em prós e em contras, como se a discussão aberta pudesse exterminar um mal de sempre, mais entranhado no mundo do que o cheiro das traças nos armários esquecidos. Mas o que pareceu causar mais celeuma, foi o beijo aos avós, ao qual as criancinhas não devem ser forçadas. Ergueu-se o mundo e as vozes, e parece que ninguém quis perceber. A questão ali não era a família, o beijo ou a educação, mas a transmissão da importância do limite do corpo e da vontade. Mas é claro, soa sempre bem caírem os santos do altar, ouvirem-se bem alto as indignações, as incredulidades e as objecções. Pela minha parte, fico feliz quando o meu filho beija qualquer um dos avós, não por educação, mas por afecto. Criado por todos eles e pelo próprio, na partilha das emoções dos dias, das dificuldades, das vitórias e das alegrias. Se este beijo se alicerçasse em obrigação, como se os mesmos fossem um transeunte que nos cruzasse o caminho, é que eu ficaria preocupada. A esses ele só deve respeito, como todos, a toda a gente. Mas aos que insistem desejo força. Levantem-se, ergam-se, batam no exemplo com fúria e crueldade. É tantas vezes o que de melhor sabemos fazer, sem pensar, tudo igual a zero em consequências ou resultados.
terça-feira, 9 de outubro de 2018
instante
Há exactamente dezanove anos o meu mundo ficou mais pobre, pela segunda vez. Albertina morria numa cama de hospital, do outro lado do rio, tão longe, como se a morte pudesse ser menos sentida quando acontece na fronteira de um abismo. Nunca me esquecerei do que vi nesse dia. Um corpo já morto a respirar de cansaço, uma cor cinzenta, uma imagem que me atravessa como se ainda agora eu sentisse o cheiro do fim, a comer-me por dentro, como um bicho ruim. Esse instante instalou-se na minha memória, e nunca mais se apagou. Com ele caminham muitas horas de vida, que amadurecem comigo em todos os passos que dou, nas escolhas que decido, nas serras que me limitam os avanços. Caminham rápido, tal e qual os seus passos, que andavam numa direcção infinita, presos numa pele escura, tingida pelo sol e pela amargura, que parecia persegui-la muito mais do que o ar que respirava, um dia de cada vez. Albertina não devia ter vivido há tantos anos atrás. Quis o destino que nascesse fora da sua época, altura em que a mulher servia para servir o que o homem quisesse, e a sua vontade emergisse apenas para regatear, sem fazer e sem escolher. Ainda assim, dava uns laivos de actos nobres e fortes, quase tão poderosos quanto os que a vida e o marido lhe arremessavam ao pêlo, paus, fome, doença e morte, antes, muito antes do que o meu amor por ela poderia escolher. Esqueceu-se de lutar pela vida uns dias antes do fim, e nunca a perdoei até há pouco tempo. Hoje sei que fez tudo o que podia fazer, e que ninguém desiste, se conseguir continuar: a culpa não foi dela, foi da Era em que nasceu. Há sempre um culpado nas histórias da vida, um acaso que não pertence a ninguém que se conheça, mas que governa cada momento. Não sei se penso muito nisso, mas agora que me debruço, sinto que existe pouca coisa no mundo tão poderosa como o instante. Pode fazer nascer, pode fazer morrer, pode perpetuar-se para sempre na nossa memória, e nunca mais nos largar. Nem que se viva muitos anos, nem que se engula muito riso, nem que se esqueçam muitas lágrimas, nem que se sorva muito pó.
sábado, 6 de outubro de 2018
calor de Outubro
Quando chego a Outubro, necessito que as cores se vistam de Outono, as noites refresquem e os dias se tornem de gosto doce, a lembrar castanhas. Não aprecio o calor tardio e doente, não me acolhe o cansaço, não me oferece um colo fresco, não me aligeira as tardes que se estendem como se a noite não precisasse de um encontro. Quando assim é, sei que o ano não me cheirou a próspero. Por vezes, pairo perdida por entre as poeiras que me fazem travar os passos, cheiro-as devagar, tento espreitar por entre as névoas que me turvam os olhos, penso, repenso, e não descubro nada. Agosto fora, Setembro adentro. É necessário sentir os primeiros de Outubro, para que a clareza me inunde o espírito, e se faça luz no meu corpo: está quente, não cheira a fresco, não se renovam os ares nem se respira o nascer. Outubro é um mês bom, um dos meses da minha vida, onde alguns me nasceram, onde outros me morreram. Oxalá refresque rápido e chova, não há como o cheiro da terra para desenhar na água doce e fria, todos os caminhos do mundo.
( Sou sempre demasiado tardia a ler os sinais da natureza. Uma doença, tal como o calor de Outubro)
terça-feira, 25 de setembro de 2018
descuidos
Acho ordinária a leviandade com que se fala na educação como a salvadora do mundo. É um embuste, a todos os que passam a acreditar que a pureza do saber eleva o Homem a um estado supremo de consciência, mais sereno, mais capaz, mais compassivo, mais sábio. Esquecem-se, com descuidada irreflexão, que é no inconsciente que mora grande parte das razões da existência. E que não há matemática ou geografia que nos dê grandeza ou educação, quando na esfera emocional, nada se passa.
terça-feira, 18 de setembro de 2018
persa
Amo os animais desde que nasci. Acolho-os no meu colo desde que me lembro de ser gente, ajudei gatas a parir, vi cães a morrer, chorei de dor quando a minha avó se lembrou de socar um coelho na minha frente, era eu pequena, três réis de gente. Nada mudou. Mas hoje, amplia-se cada vez mais o meu contacto com a minha consciência, e muito embora me continue a chocar o sofrimento animal, choca-me ainda mais a passividade humana, perante o do seu semelhante. E fico ainda mais indignada quando me deparo com quem o valida como veredicto, enquanto afaga a cabeça de um persa. O persa não tem a culpa, é lindo de morrer, peludo, macio, deve compensar até aos ossos o ego de quem o possui assim, sem entraves nem limites. O seu ar de dono do mundo não foi decidido por si, tem lá a culpa de ter nascido com uns maravilhosos olhos azuis, uma cabeça perfeitinha e um corpo delicado. A culpa nem será da dona, que lhe deposita na existência a sua fé na humanidade. A culpa será eventualmente da necessidade de ajuizar com plena garganta, aclarada, depois de cuspir um escarro. Se todos pensássemos mais nos nossos processos do que nos dos outros, o respeito aumentaria substancialmente. Essa história do pensar no próximo, honestamente, sempre me levou para territórios de desconfiança, de egoísmo, de vontade de emergir (ou, pior ainda, existir), como se possível fosse que o meu pensamento pudesse, por si só, ajudar quem quer que fosse. O caminho afigura-se-me sempre mais dentro do que fora, e quando assim não é, poderemos até acarinhar gatinhos, dar esmola aos pedintes, participar nas corridas cor de rosa em prol de uma causa, mas na prática nada muda, nada resulta, nada avança. A não ser, claro, o nosso ego.
sexta-feira, 7 de setembro de 2018
avantesma
Ela estava sempre airosa, do alto dos seus dezoito, muito desenvolvidos e ligeiramente belos. Não fosse um dente amarelo que lhe estragava o sorriso, e diria que era quase perfeita, o que rápido nos leva à crença de que já na altura, se a sua boca se mantivesse fechada, muito teria a ganhar. Eu, franganita de dezasseis anos, sem formas nem graça, ficava abafada por trás dela se ele entendesse esconder-me, as inseguranças tolhiam-me os passos da adolescência, uma era da minha vida onde o mundo me pisou os calos até fazer sangue. Naquela altura toda a malta se apelidava com um qualquer epíteto, mais ou menos apropriado, que definia aos olhos que olham a personagem em questão, sem ser preciso decorar Marias e Josés, uma infinidade de nomes sem qualquer ligação prática. Não faço ideia de onde surgiu a ideia na cabeça da airosa rapariga, de dezoito e de dente amarelo, senhora do grupo, dos rapazes, e de alguma inveja das outras raparigas. Não faço ainda ideia o porquê do grupo ter acolhido aquele nome para me definir, eu, tão pequena e enfezada, quase raquítica, sem cores e sem rosáceas de sol. Mas sei que ontem, nas minhas leituras da noite, Fanny Owen atirou-me à cacetada para uma palavra que eu já nem sabia ter ouvido na minha vida. Muitas vezes, vezes sem conta, dirigida a mim como se eu fosse na realidade uma autêntica aparição, na melhor das hipóteses, deixando de lado a disformidade, claro, não me parece apropriada a uma donzela, nem quando proferida por uma tal superiora. Ainda outro dia passei por ela. Os anos maltratara-na, e hoje, em plena luz do dia, o dente amarelo é o menor dos seus defeitos. Continuava a gritar alto e bom som as suas verdades absolutas, enquanto enrolava cigarros sentada na mesa da esplanada, gesticulando como se o mundo lhe pertencesse, e os nomes, hoje substituídos por outros mais claros e ofensivos, fossem propriedade de sua senhoria. A sorte dela é que ainda ia longe deste capítulo do livro. Caso contrário, e se estivesse lembrada de tal qualificação, era bem capaz de lhe ter segredado ao ouvido na passagem, que ela se parecia muito com uma avantesma. Não porque é disforme, embora até talvez seja. Não por apresentar aparência fantasmagórica, muito embora possa tê-la. Mas porque esta pessoa me assusta, por variadíssimas razões. E há de factos palavras feias, que assentam que é uma beleza.
segunda-feira, 3 de setembro de 2018
no coração
Nem sempre consciencializo a finitude da vida, esqueço-me dela, numa defesa que o meu corpo ergue em sua salvação. Não me surpreendo porém quando a encontro, já a tratei por tu em várias estradas do meu caminho, desde as mais esperadas às mais impossíveis, perfeita na assunção de que não mandamos neste mundo. E muito menos quando comparados com a vida e a morte, as únicas grandes senhoras da existência. Fechar ciclos deixa-me porém assustada, num medo que encontro no meu depósito emocional, aquele onde sentimos tudo o que há para sentir, sem apelo nem agravo, sem modéstias ou redenções. Ainda não sei ao certo se por vezes não me apetece crer no infinito da vida eterna, aquela onde tudo se pode reencontrar, com as mesmas rugas nas mãos, os mesmos olhos adocicados, o mesmo cheiro tão próprio de cada pele (não há melhor sentido para recuperar o que é nosso, tenho para mim). Mas para meu desassossego sou da dúvida, de muito poucas certezas, e o lugar onde as respostas se me podiam afigurar como certas, representa para mim um ror de enigmas sem clareza possível, nos dias que até hoje eu conheço, uma empreitada de horas que se seguem umas nas outras, em filas indianas e históricas, sempre sem nenhuma conclusão que me leve a algum lugar para além da repetição da dúvida. Não raras vezes, procuro sinais. Ora nos mortos ora nos vivos, ora nos tristes ora nos felizes, oras nos certos ora nos errados. Perda de tempo, pura inutilidade, não há nada que se me afigure como certo ou verdadeiro, cada vez mais a realidade me contraria a lógica, com um comando doido, difícil de manobrar. A vida tem uma lei, oiço dizer. Creio nela, não me restam caminhos de sobra ao meu pobre intelecto. Mas as perguntas perseguem-me, incautas, velozes.
Por ora existem uns olhos cansados, que parecem não gostar mais deste mundo. É um ciclo que um dia termina, é a lei da vida, é sempre esta a resposta que os ignorantes usam para explicar a dor do fim. Como se possível fosse desenhar por palavras os sentimentos. Santa ignorância, franca estupidez. A única coisa que podemos descrever em código é o fácil, o óbvio, a regra, o evidente. A outra dimensão pertence a extensões esquecidas pelos dicionários do Homem, e reside apenas no seu coração (o que será isso, o coração?).
sábado, 25 de agosto de 2018
sei lá se sabemos lá estar
É nos olhos das pessoas velhas, e nas pressas dos novos, que encontro o mundo. O tempo que depois gasto entre o caminho do que se aprende num, e do que no outro se deve aligeirar, é uma perda que eu dou por bem empregue, quase como se lesse um livro que se escreve na minha cabeça, palavra por palavra, linha por linha, sempre até um fim que pode recomeçar outra vez, mal outros olhos me cruzem no caminho. Quase nunca me esqueço de uma história, as histórias são a vida que corre num corpo que as respira sempre que acorda, com o sentido de direccionar os passos para a força da dureza da existência. Ninguém disse que a vida era fácil, diz-me sempre alguém que amo, longe, muito longe de saber que essa frase povoa a minha cabeça vezes sem conta, aninhada ao lado da magia que encontro em cada dia que nasce, exactamente porque a vida não é fácil. Os tempos mudaram, e a nostalgia do que nem vivi, por vezes faz-me pensar que algo se perdeu algures nuns anos esquecidos, tidos como muito maus, mas que fabricaram gente que não verga nem com um pau. Longe de mim crer nessa dura virtude, gostaria muito de um meio caminho, algures onde eu nasci, costumo dizer. Ali, entre o ontem e o hoje, quando as casas eram feiras de tijolo, amor e sopas de feijão com couves e azeite, e onde os dias felizes não vinham escritos nos livros, nos pacotes de bolachas e nas caixas de plástico, que decoram a mau gosto as caras e as casas. Amélia dizia-me a medo, não fosse eu julgá-la, que o marido em tempos esteve na tropa em Évora. O tenente gostou tanto dela, que lhe arranjou uma casa, para a família morar e para Alberto acabar com as amantes que tinha. - Tinha de as ter, dizia-me Amélia, - eu estava longe a dormir num colchão de palha, que morava no chão de uma sala, que se encontrava na casa de uma sogra, que tinha uma língua de fel. - Ele contou-me e eu entendi, e depois disso é que construímos a nossa vida.
As mulheres que viviam com maridos e com outras mulheres no mesmo espaço de dois corpos, viviam felizes e cientes de que a família era o centro do caminho que teremos de percorrer até ao fim de uma linha, que se abençoa aos cinquenta anos de matrimónio, tal como Amélia fez ainda há dias, entrando na igreja para renovar os votos, pelas mãos dos filhos, com o mesmo marido que a amou, a fez mãe, a trocou, a deixou sozinha e a pegou ao colo, tudo sempre com o mesmo amor. Sob o olhar atento do pároco que abençoou esta união impossível de dissolver nos caminhos da terra, e por conseguinte, rezam as lendas divinas, pelos caminhos do céu. Olhei para Amélia e ela vertia umas águas de felicidade que lambeu quando lhe chegaram à boca. Limpou os resto com a mesma cautela com que dobrava as peúgas pretas de algodão, retorcidas uma na outra, aconchegadas na ordem de sempre, soberana, linear, perfeita. Não sei ao certo ao que sabem as dela, mas as minhas, quando me escorrem pelos olhos, sabem sempre a sal, como se tivessem marinado um repouso cansado, de uma semana para a outra, sem louro ou açucares, num mosto que fermenta até uma outra estação.
Bebo um copo de vinho, devagar. Pela janela entra um ar que desperta os gatos e os insectos voadores, impossíveis no verão. Não há estrelas que norteiem os transeuntes do mundo, que se esgueiram rápido e sem destino, sempre numa diferente direcção. Em tempos, penso para mim, a vida era feita só de dor, latejava e como qualquer ferida, custava no tempo, sarava na carne, cicatrizava devagar. Hoje, nos gritos histéricos da noite, tudo passa numa fracção de um segundo, que não dói, não sabe, não cresce, não mata nem vive. Nunca estamos no sítio certo, sei lá se sabemos lá estar.
As mulheres que viviam com maridos e com outras mulheres no mesmo espaço de dois corpos, viviam felizes e cientes de que a família era o centro do caminho que teremos de percorrer até ao fim de uma linha, que se abençoa aos cinquenta anos de matrimónio, tal como Amélia fez ainda há dias, entrando na igreja para renovar os votos, pelas mãos dos filhos, com o mesmo marido que a amou, a fez mãe, a trocou, a deixou sozinha e a pegou ao colo, tudo sempre com o mesmo amor. Sob o olhar atento do pároco que abençoou esta união impossível de dissolver nos caminhos da terra, e por conseguinte, rezam as lendas divinas, pelos caminhos do céu. Olhei para Amélia e ela vertia umas águas de felicidade que lambeu quando lhe chegaram à boca. Limpou os resto com a mesma cautela com que dobrava as peúgas pretas de algodão, retorcidas uma na outra, aconchegadas na ordem de sempre, soberana, linear, perfeita. Não sei ao certo ao que sabem as dela, mas as minhas, quando me escorrem pelos olhos, sabem sempre a sal, como se tivessem marinado um repouso cansado, de uma semana para a outra, sem louro ou açucares, num mosto que fermenta até uma outra estação.
Bebo um copo de vinho, devagar. Pela janela entra um ar que desperta os gatos e os insectos voadores, impossíveis no verão. Não há estrelas que norteiem os transeuntes do mundo, que se esgueiram rápido e sem destino, sempre numa diferente direcção. Em tempos, penso para mim, a vida era feita só de dor, latejava e como qualquer ferida, custava no tempo, sarava na carne, cicatrizava devagar. Hoje, nos gritos histéricos da noite, tudo passa numa fracção de um segundo, que não dói, não sabe, não cresce, não mata nem vive. Nunca estamos no sítio certo, sei lá se sabemos lá estar.
domingo, 22 de abril de 2018
gerra conjugal (Dalton Trevisan sabe mais disto do que eu)
O meu marido é muito melhor do que eu a ultrapassar uma crise conjugal. Chega sempre muito feliz a casa, mesmo quando na manhã anterior me chamou de rameira, de sem vergonha, de gorda, barriguda e feia. Tem razão, tem toda a razão, eu compreendo-o perfeitamente. Um homem digno desse nome não tem de aturar os caprichos de uma mulher, são sempre um aborrecimento. Ainda para mais os caprichos de uma pseudo-senhora, com tamanha crosta associada. Interna e externa. Um homem digno desse nome quer uma mulher alta e esbelta, loira, vistosa, de preferência de poucas conversas perturbadoras. Deve dizer que sim a quase tudo, ou, se contestar, deve fazê-lo na medida certa, para que no final de contas o ajuste seja conduzido na medida exacta da elegância. Deve juntar no mesmo corpo dependência suficiente e independência quanto baste, deve amá-lo muito e ter um sorriso sempre aberto, mesmo quando no calor da briga saia um incontrolável és uma vaca, já se sabe que o impulso é inimigo das palavras doces. Continuo a compreendê-lo perfeitamente, se há coisa que irrita um homem são conversas sobre a razão, o que, convenhamos, agravadas pela escolha da hora errada, dão direito legítimo a um vernáculo desenvergonhado, solto depressa e bem. Hoje pela tardinha, logo após uma crise moderada, ainda o sol aquecia o vidro do carro e o meu corpo flácido e cansado, informou-me que vai recorrer aos serviços de uma prostituta. Não está satisfeito com os meus préstimos, devo-lhe mais assistência, e não importa se a mesma se presta entre um beijo e uma carícia, ou entre uma ofensa e uma ausência. Há mulheres que parecem esquecer disto, mas é um erro de uma ferocidade violenta. Nunca deveremos esquecer que os nossos maridos necessitam de sexo como do pão para a boca, e que se assim não entendermos, correremos o risco de procurarem profissionais do assunto, só por questões higiénicas, sem que nada se coloque em questão no romance do casamento. É um facto, comprovadíssimo pela história, das nossas mães, das nossas avós, de muitas mulheres e de muitos homens. Ainda assim olhei-o nos olhos, pois fiquei ligeiramente perturbada, confesso. Tentei que me explicasse melhor a razão, mas logo me calei perante os seus mais sérios argumentos; a assistência é diminuta, quando há, não é satisfatória, e claro que não é compreensível qualquer tipo de afastamento da minha parte, apenas e só porque na noite anterior saiu de casa de rompante, mandando-me encostar no vizinho da loja do lado, enquanto tenho rabo para isso. Era só uma pequena guerra conjugal, vale o que vale, só eu pareço não compreender, afirma. E portanto hoje, quando regressou pela manhã, eu deveria ter sucumbido às suas vontades, pois só assim seria uma esposa digna desse nome, e totalmente merecedora de fidelidade conjugal.
Olhei pelo vidro e estava um dia lindo lá fora. As famílias passeavam os cães, os gatos espreguiçavam-se nas ervas, e os pombos defecavam felizes no vidro do nosso carro. Eu, devagarinho, ajeitei o meu corpo velho no banco, mas quando abro o espelho reparo que o batom vermelho que eu tinha colocado com jeito e paciência, tinha sido comido pela nossa conversa sobre putas e cama. Que valente maçada. Ele mantinha-se irredutível, quieto, tão convicto na sua escolha acertada. O meu marido tem razão, e eu continuo a compreende-lo perfeitamente, ainda para mais, porque com muito jeitinho, avisou-me do que pretende fazer. Sou uma verdadeira privilegiada, nunca serei uma mulher enganada. É claro que retoquei o batom vermelho, tão nosso amigo quando a idade já não nos eleva. É ele e os livrinhos de auto-ajuda, que ensinam como ninguém truques para sermos felizes.
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