quinta-feira, 15 de novembro de 2012

in/compatibilidades

A minha gata deveria ser uma gata elegante como todos os gatos, deveria passear-se pelos recantos da casa sem alagar as flores e as estatuetas que me enfeitam a zona de conforto, deveria cruzar a minha mesinha de cabeceira de norte a sul sem derrubar os livros que repousam em noites esquecidas, sem qualquer tipo de préstimo. Não me lembro da última noite em que abri bem os olhos para sorver os contos inacabados de Javier Marias, uma delicia de capa verde enfeitada com uma senhora de espartilho e um toucado na cabeça, uma das mais belas indumentárias femininas de todo o sempre, e recheada de letras que se juntam com o propósito de nos transportar a mente muito além do que se diz e do que se conta, ou seja, nos acordar no exacto local onde queremos despertar do natural estado de vigília para chegar a um outro, guiados a jeito por letras que se acabam, criteriosamente, antes do tempo. Lembro-me por exemplo da minha outra gata, branca e de olhos azuis, que conseguia a arte felina de se passear no meio de tudo sem que nada a pressentisse, uma elegância feminina que só visto, um passear subtil e ao mesmo tempo imponente, irrepreensível. A esta, julgo-a eventualmente desadaptada. Uma estranha forma de vida que encarnou num corpo pequeno e muito bonito, que esbarra com força nas portas, nas paredes, nas mesas, nas pernas do meu filho, em mim. 
Falo por ora num homem. Um homem que é homem há trinta e alguns anos, do qual sempre esperaram qualquer coisa que ele quase conseguiu ser. Não era o que ele queria, ele queria ser o que é neste preciso momento, altura em que deixou de ser sentido como útil, para passar a ser visto como um incómodo. Não que ele não tenha utilidade, que se note, mas tem uma utilidade desnecessária para ela, ainda que indispensável para ele. Incompatibilidades diversas, se é que me explico, se é que me entendem. Mas por que raio é que as outras hão-de ter um homem com um H muito grande, que bebe cervejas e vê televisão no sofá com um comando na mão e um cigarro na outra, e o dela há-de agarrar o ferro de engomar quando ela de repente se ausenta, por minutos, por instantes, por escassos segundos, bocados de nada que quase lhe roubam do corpo a única condição que concebe para si?

( Uma gata deve ser elegante, um homem deve ser um homem, uma galinha deve ser uma galinha e se cacarejar, melhor ainda. Agora mais longe. Um pássaro deve cantar para os nossos ouvidos mas não em exagero, um cão deve encher-nos de lambidelas aconchegantes quando nos apetece, e as outras pessoas devem dar-nos o que precisamos, mas só mesmo quando precisamos. E basicamente é isto.)   

8 comentários:

  1. isso sim seria um mundo perfeito :):) já agora, o que é isso de um homem ser homem?! o meu pode, perfeitamente, agarrar no fero de engomar que eu não me importo nada :):):)

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  2. O mundo só é perfeito dentro da nossa cabeça, querida amiga. E ainda assim, só às vezes:). Também não me importo que o meu pegue no ferro. Mas que se me entrar pela cozinha e me roubar os tachos e as especiarias, já temos de conversar :)...

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  3. Faltou dizer o que mais gostas que o teu homem te faça. Na cozinha, por exemplo...

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  4. Paulo, Paulo, não me parece nada ser esse o tema central, mas tá bem, que não gosto de deixar curiosidades pendentes. É que na cozinha, normalmente, quem manda sou eu. Mas nada que não possa ser reconsiderado, logo, mãos habilidosas podem mesmo ser bem vindas...

    (gosto de mousse de chocolate. e assados apetitosos. e de bolos de canela... ajuda?? beijinho:))

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  5. Não é o tema central? Mas devia ser (o outro não andava a passar ferro mal a mulher saisse de casa?).
    Devo considerar, portanto, que gostas de mãos habilidosas na cozinha. Ok, mas de que mais...?

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  6. Paulo, cá ver... Assim, de repente, ocorre-me a precisão de umas mãos habilidosas para lavar a loiça. Conto contigo??? :)

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  7. Claro que contas, mas primeiro temos de comer. Onde gostas de o fazer?

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    1. Tenho dias... Alguns há, em que me apetece uma mesa com velas, copos de pé alto, aperitivos e entradas diversas. Noutros sou muito mais prática. Há dias, é isso...

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