segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

arrumos

Descobrimos as loiças na sapataria velha e resolvemos resgatá-las do mofo que lhe comia as caixas por entre as sacas de serapilheira onde se dispõem batatas polvilhadas a pó branco, dizem que mata bichos medonhos. Tem vários serviços, desenhados a azul e debruados a oiro e vieram em forma de agrado, directamente de Alcobaça. De Alcobaça vinha também o melhor Bolo Rei do mundo, perdoem-me a sucessiva insistência no tema, em carradas alternadas e de acordo com a fraca capacidade de resposta da padaria, na época em que o produto era artesanal e consequentemente melhor. Não, não simpatizo com excessos de industrialização, muito embora tenha presente a sua necessidade. Mas é que falta-lhe sempre qualquer coisa que morre mais ou menos a meio do caminho entre a génese e o produto final, fabricado em série e sem o dedo do pasteleiro a provar a massa leveda, como se as máquinas nos pudessem substituir o palato. Fracas convicções as nossas, as máquinas não podem substituir coisa nenhuma onde os sentidos estejam envolvidos, podem acelerar processos, podem compor pormenores, podem contornar limitações, mas quando chega à altura da verdade percebemos que é de gente que nasce a arte que nos satisfaz. 
As loiças encontram-se por ora empilhadas no sótão da casa, terrinas ao lado de terrinas, pratos em cima de pratos, chávenas dentro de chávenas, molheiras acondicionadas no respectivo prato, taças de salada guardadas por tamanhos, umas sob as outras. A vizinha de cima ficou encantada. Espreitava a lavagem prévia por entre uma fresta da janela e murmurava em pensamentos o quanto aquela maravilha ficaria um primor nos seus móveis cerejeira da sala de jantar, que em tempos conheceram riquezas que se esvaíram como se esvaem os pós ao vento, depressa e todas de uma vez. Eu, pela minha parte, confesso que não lhe ligo muito para além da recordação de o conhecer desde que me lembro de ser gente. Mas por causa disso tenho-lhe estima, sinto que lhe devo cuidado e zelo, como que uma responsabilidade delicada por algo que devo de proteger. De vez em quando sou bem capaz de ir espreitá-lo. Roubo a chave escondida na gaveta da entrada, subo os degraus com jeitinho e por entre as flores que caem verdes no vão da mesma cor, entro e retiro os lençóis que guardam as terrinas, os pratos de diversos tamanhos, as travessas de servir à mesa e as molheiras com tampa. Cheiro tudinho, viro e reviro, volto a arrumar criteriosamente e volto passados uns anos. É mais ou menos assim com quase tudo o que guardo para além do préstimo efectivo.

2 comentários:

  1. CF, também experencio estas sensações, na casa fechada da minha avó , que de vez em quando visito e vou espreitando em gavetas e armários e descubro "tesouros" que nem julgava já existirem...

    Sorrisos :)

    Ana

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  2. Pois é. Uma riqueza, quando os encontramos outra vez... Sorrisos para si também. :)

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