domingo, 20 de janeiro de 2013

xeque-mate

Ela entra em direcção à mesa onde ele a espera sentado e com o tabuleiro arrumado. As peças estão devidamente distribuídas num branco e negro perfeito, as torres, os cavalos, os bispos, o rei e a rainha. Ela despe o casaco e senta-se sem abrir a boca pintada de vermelho forte. Ele começa sem sinal e anda com um cavalo por cima dos peões que dormem submissos na mesa de pedra. Olham um para o outro sem sinais visíveis de expressão e trocam jogadas de mestres na vida ao sabor de uma ampulheta de areia fina que dá a cada um os minutos suficientes para que pensem na jogada perfeita, que pode nem existir. Ele levanta um braço e ela abre os olhos esperando que ele lhe dirija uma palavra que a situe. Uma barmaid aproxima-se ao sinal e ele pede um Jameson com duas pedras de gelo. O whisky chega pouco tempo depois e é depositado na mesa mesmo ao lado do jogo que continua num chorrilho de mortes matadas e morridas que se apinham de cada lado, tombadas em desalinho. Estão quase no final e ela encontra-se num xeque que lhe dói até à alma e que ele sorve como se lhe lambesse a boca semi aberta onde corre um sangue vivo que se vê. A ampulheta escorre a areia demasiado depressa para que o raciocínio acompanhe os passos da vitória que procura e encosta-se para trás, rendida no forro barberry  com ar de quem vai perder as réstias de forças que a seguram em pé no tabuleiro quase vazio. Ele continua imerso no jogo que joga como quem só joga e não faz mais coisa alguma naquele momento. A bebida serve-lhe apenas para que o corpo se distraia uns segundos esquecidos, não vá a máquina do raciocínio tolher-lhe o corpo todo e levá-lo para longe, para um qualquer sítio onde apenas há rigor de exactidão. Num último gole lambe uma gota que lhe escorre pelo queixo e ela sorri. Mexe um cavalo que ainda lhe resta e apanha-o numa distracção leviana causada pelo descuido que lhe levou a destreza de ideias. Ficam de novo num mano a mano intenso e ritmado, sem tempo contado, rápido como a luz que nascia da lâmpada que baloiçava ao ritmo dos sopros no tecto baixo. Ela pergunta: Chega? Ele responde que não. Continuam num incessante desafio regado a desejo que nascia de ambos em doses exactamente iguais. O cansaço chega no frio da noite que entrou pela madrugada e que deixou a música entregue aos sons alternativos de Pixies, uma das melhores do mundo. Já ninguém joga, agora apenas encontram os olhos um do outro. Ela pergunta com os dela: Chega? Ele com os dele responde que não. Levantam-se os dois e saem pela porta que respira névoa cinzenta que os encobre mal saem para a rua. A lua estava escondida e não deixa antever para onde vão. A escuridão permite apenas que se oiça da boca dele: Chega? Ela responde que não e seguiram ambos, numa direcção escolhida ao sabor de um jogo, de um whisky e de um bâton.    

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