Gosto quando tenho a mania que sou gente grande, sem medos que me escorram no corpo à noite ou quando troveja, ou ainda quando o sol é demasiado quente para que se possa viver sem sermos felizes daqui até a um local invisível, vejam que lonjura. E que loucura. Nesses dias que são alguns, estou-me a borrifar para os fanicos que me dão na ânsia disto ou daquilo, para as saudades que me abrem o peito e que explodem para me deixarem a morrer em desespero, para as noites em que procuro, vazia, sem encontrar mesmo a sério o rasto a que me cheira. Tudo isso se vive e se suporta, tudo isso eu abafo no meu corpo que engole limites como quem come amendoins salgadinhos regados a panaché, acompanhados de um cigarro se for caso disso e se a vontade pedir. Ajuda na digestão do sal e na acidez da bebida, digo eu em vez de vício, soa significativamente melhor. Nesses dias que são alguns, sorvo ar como quem engole realmente vida, e corro sempre com destino traçado a rigor nos marcadores da viagem, estabeleço o que devo, o que não devo e cumpro, sofro todos os fardos que alombo no corpo que nunca se cansa de subir os montes que nascem no encalço uns dos outros, uma estafeta invisível que se desenha maquinal, com obstáculos. Nunca vi o testemunho, mas adivinho-o de mão em mão, as minhas, esquerda direita, mais se houvessem, volver, siga, andor. Viro tudo do avesso, saco de uma arma que atira a matar no caminho e me salva dos bandidos duma figa e vou sempre em frente, num turbo acelerado sem combustível visível. Gosto tanto quando tenho essa mania. Quando tenho essa mania regresso aos tempos felizes de criança em que os dias corriam certeiros e respirados na teimosia da idade que me possibilitava o que quer que fosse, mesmo que o que quer que fosse ficasse do outro lado do mundo e custasse a alcançar, muito mais do que os rebuçados que me ofereciam no café por cada sorriso interesseiro. No café, nada de pastelarias, sou da província. Aterrava na cama ao fim do dia com a mesma ambição com que acordava na manha a seguir e ficou-me para a vida mas em dias intervalados, ele há com cada uma. Não é sempre é só às vezes. Gosto tanto quando tenho essa mania. Quando tenho essa mania de que sou gente grande e que por causa disso não tenho medo, porque o medo é coisa de gente pequena, que nos ganha - em larga escala - porque muito além dele, pode tudo quanto quer.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
ignorância
Hoje há um mundo que olha a resignação do papa mais lúcido que eu já conheci. Há cavalos que invadiram cabeças muito depois de invadirem barrigas, sem que ninguém desse por isso. Surge-me a questão da pertinência da ignorância, mas morre-me, num ápice, mal olho para mim.
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
palavras
Precisamos delas para arquitectar intelectualmente os sentimentos, baptizados e arrumados em dicionários entendidos por toda a gente. É isto, sabes? Sei... A categorização faz parte do processo de ser, daí a importância de dar nome em terapia. Um estado confusional apelidado de tristeza ou de zanga é muito mais arrumável do que um estado confusional por si só, pensa nisto. Não tentes explicações despropositadas, não nos está ao alcance a explicitação lógica de todos os fenómenos que nos justificam os actos ou as precisões, soubesse eu porque amamos ou porque odiamos, por exemplo e era por certo uma mulher mais feliz do que já sou, até porque o conhecimento deslindado implica comando. Assim entretenho-me a sentir, coisa pouca? Vai-se a ver e seria uma perca de tempo perceber o porquê do que me rege até ao ínfimo pormenor, até ao corpúsculo do meu corpo, do meu intelecto e do meu inconsciente, esse, o mais misterioso de todos os mistérios. Mas gostava, confesso-te. Dar-me-ia um prazer indescritível perceber claramente as falácias das forças que afinal germinam, as demandas dos desejos que nem sempre se controlam, as gramáticas escondidas do que vocifero certo, coerente, mas que por vezes tem escapatória cá dentro, como se conhecesse os caminhos todos para onde deve fugir-me, de mim. Já imaginei um mundo sem palavras, um local onde o vazio de razão fosse uma realidade vivível, onde os gestos ganhassem corpo suficiente para que delas não carecêssemos. Uma mente organizada em sentires sem nome e sem sustento, esteios por si e em si mesmos, ó, que grandeza maior. Mas depois penso na minha boca perdida em tarefa nenhuma a não ser o alimento e julgo-me merecedora de poder dizer que te amo antes de te dar um beijo. Digna de conceptualizar significados com palavras que sabem a jasmim com flores nos dias de sol. Julgo-me ainda no direito de conseguir encher a boca e dizer um palavrão devidamente desenhado e quando a propósito, claro, nunca descabido. A vida às vezes é fodida, por exemplo, e há dias em que é mesmo preciso poder dizer isto. O resto, o que diria e conceptualizo, com ou sem palavras, guardo comigo e até que te diga. Em gestos, em olhos, em línguas e em corpo, todo. Aqui e aí.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
gritos
Acordou de manhã e arrojou palavras sem fim que riscou a a azul forte numa censura revivida dos tempos em que a ditadura governava os povos. Ficou a olhá-las com um ar enfastiado de nojo, a arrumar cada uma num saco sem fundo capaz de acomodar uma vida vivida no cimo de uma escadaria com águas furtadas batidas pelo vento, onde um pássaro dançava. O pássaro cantava todas as manhãs um assobio sempre igual, num ranger desengonçado a ameaçar cair a cada sopro do vento que nunca o levou. As flores da varanda, verdes, cheiravam a cravos vermelhos da cor da liberdade e a sangue fresco que escorre nas veias de quem passa perto. Consegue sentir-se o calor nos corpos que andam nas ruas frias de Inverno e que desatinam apressados com destinos que ninguém sabe quais são, a não ser quem corre, e por vezes não. Outro dia, por exemplo, um homem corria sem direcção nenhuma quando voltou para trás, desesperado. Ficou a mirá-lo a percorrer a avenida no sentido inverso ao tempo, enquanto os minutos e as horas marchavam descompassados no corpo que os desafiava como se pudesse vencê-los em cada passo que dava, em cada respirar que engolia, em cada mágoa que guardava no peito embrutecido. Outra vez foi o velho que entrou no autocarro 30 e que afinal queria entrar no 33, pelo que entrou por um lado e saiu pelo outro, antes mesmo do arranque. Sentou-se outra vez, abriu o jornal na mesmíssima página, ajeitou os óculos na ponta do nariz, esfregou a barba e voltou a ler, tranquilo, assim parecia. Havia uma mãe que levava dois filhos, um em cada mão e uma vizinha que acompanhava o marido corcunda de braço dado, a servir de bengala. Uma jovem abanava-se, enquanto as montras falavam com ela mais do que qualquer pessoa lhe poderia dizer. Há palavras nisto tudo. Quem não sabe para onde vai grita desespero, quem corre contra o tempo grita força, quem espera grita desânimo. Quem leva filhos pelos braços grita amor, quem ampara grita generosidade, quem só ouve o espelho grita vaidade.
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013
mudança de paradigma
Existem sociedades onde as decisões sobre o testamento vital já fazem parte integrante dos procedimentos e da cultura de acção. Temos por exemplo cerca de 40% da população dos Estados Unidos a predefinir e a registar precocemente o que quer que lhe aconteça na exacta altura em que for necessário tomar uma decisão, se for caso disso. Não é impossível, sequer difícil, numa era em que os pensamentos acompanham a evolução global, considerarmos que o corpo é pertença nossa, de acordo com uma vontade interna capaz de ordenar os destinos que lhe impomos e consequentemente o que queremos que lhe façam quando já não tivermos a lucidez ou a capacidade física para exercermos o nosso poder de optar, quando tal é preciso. Desde que não entrando em confronto directo com princípios éticos das classes profissionais ligadas à saúde, como é o caso, tudo me faz sentido. Mas surge-me uma questão central para a qual não encontro resposta definitiva, necessitarei talvez de deixar correr o tempo e as acções que me atestem uma real competência sobre a qual tenho sérias dúvidas. Questiono directamente a capacidade de acolhermos a mudança de paradigma necessária para que seja exequível a generalização deste tipo de deliberações. A classe médica continua a exercer e por necessidade do utente, na maioria das vezes, um paternalismo de protecção que nos salvaguarda o ego das decisões importantes. Há uma persistente entrega, uma passagem de testemunho para mãos e cérebros que escolhem por nós em decisões tão importantes como o que fazer com o nosso corpo, em caso de sobrevida. Definições precisas e nossas sobre esse destino, transportam-nos para o centro da questão, com uma consequente inversão de papéis e uma considerável auto responsabilização.
Estaremos aptos, na globalidade? Ou manter-se-ão estas livres escolhas reservadas a uma determinada classe populacional com características muitos próprias, que é o que tem acontecido até então? Prender-se-á este facto unicamente com a escassa divulgação do tema? Ou será que e na inversão, continuaremos a depositar confiança externa em vez de decisão própria, por comodidade e conforto mental?
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
da compreensão...
Sempre ouvi dizer, ou melhor, sempre soube, que o corpo é aquele invólucro que se desmancha em três tempos, apedrejado por génios maleficentes que despertam mais ou menos à meia noite, quando tentamos arrumar com os despertares todos que nos assaltam a mente capaz de dormir. Respiramos fundo, contamos carneiros aos milhares, descobrimos que essa bicharada é uma patranha maior do que a política que se vende barata e ainda que os chás de camomila sossegavam a avó Maria nos dias de chuva e mais coisa nenhuma deste mundo, o que é mais ou menos o mesmo que dizer que hoje não servem para nada, a não ser para adocicar as memórias resistentes aos tempos ansiosos do xanax. Debruço-me na lareira morna que já mal crepita, empurro-me para o calor que deveria atingir-me e levar-me para longe, mas a única coisa que consigo é o inverso, fraqueza minha, ou fortaleza tua, saber-se agora. Insistimos na causa das coisas, sei disso. Porquê?, era um livro que me ornamentava a escrivaninha do quarto de pinho, no qual centenas de perguntas tinham resposta, outras tantas tinham causa, mais algumas tinham uma exposição lógica, como se tudo neste mundo estivesse obrigado a uma fundamentação linear, com principio meio e fim. O pedido de explicação é coisa que oiço em cada esquina, perdida nos corredores do ofício, nas tramas da família, no circulo, restrito, das relações de amizades, em mim e em ti, vê bem. Tenho dias em que embalo. Sigo desembestada no turbilhão imposto da clareza e da explicação, retorço o corpo intrigado na busca de porquês justificativos para os dias e para as horas, para as noites e para os fantasmas, para os poemas e para as palavras, para os sorrisos e para as bofetadas. Consigo sempre qualquer coisa, que seja um nico de nada, uma luz imprecisa, uma justificação que me alimenta as ideias e despejo tudo no local exacto da reciclagem. Sei tudo o que se pode saber, por vezes ajuda, outras será igual ao litro, sorrio de satisfação com a obra feita e parto em nova emboscada, eventualmente sem tomar o gosto do que recebi. Sem problemas, percebi, estás percebido. Mas o que eu gosto mesmo é quando nos estamos a borrifar para o assunto, sabes? É porque sim e basta. Não, nada é por acaso. Mas sentir sem perder tempo a perceber é do melhor que há, quando a coisa é boa.
(Há dias, em que juro, matava o meu intelecto.)
(Há dias, em que juro, matava o meu intelecto.)
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
lucília
Vejo-a a depenicar uns brócolos amarelos e a colocá-los na panela com muito jeitinho. As meias às bolas cobrem-lhe uns pés magros que se orgulham de andar por onde lhes apetece, enquanto as mãos cadavéricas empurram para dentro da touca uns cabelos teimosos que lhe tapam os olhos que só vêm em frente. Pode andar onde lhe apetece, mas só anda ali. Da boca sai-lhe muito pouco, está cansada de palavras que nunca a levaram para sítio nenhum que se visse. Fosse verdade que levassem e teria dado a volta ao mundo nos tempos em que fritava chamuças e recitava poemas de amor, decorados no banco da escola e expulsos por imposição do miocárdio, que batia invariavelmente virado para o lado esquerdo, desde o dia da serenata e até hoje. O arroz doce é que já a levou tão longe que eu nem posso imaginar, diz-me. Acho que é por isso que muda de corpo quando o faz, que é certo, nós podemos mudar de corpo de vez em quando. Veste-se invariavelmente de preto e delicia-se a colocar no tacho o arroz, o açúcar, o leite e os ovos e a desenhar nomes com canela nas taças toscas de barro. Também aprecia as tigeladas de Castelo Branco, que perdem apenas por se cozerem individuais no forno e na forma, não permitindo sobras para salazar. Por isso prefere-o a ele, que come invariavelmente quente com uma colher de pau que rapa o tacho com sobejos exagerados, assim fica com mais só para si. Não toca nas taças, essas são sempre para os outros. Não é digna de uma inteira, sabe disso, é merecedora apenas e só dos paus de canela e do arroz ressequido no rebordo, do lugar à janela e do vento na cara, frio, de cortar a respiração. E do cheiro das violetas que nascem nos vasos. Houve um dia em que insistiram na taça e resolveu ceder, não aprecia desfeitas. Sentou-se na mesa, colocou o guardanapo no colo, agarrou uma colher fina da melhor prata, encheu-a de arroz devidamente polvilhado e levou-a à boca. O desconforto foi instantâneo, deu-lhe de imediato um refluxo no estômago, caiu-lhe o exagero no vazio do órgão mirrado junto ao corpo que a sacudiu violentamente, em solavancos vitoriosos que quase a comeram viva. Levantou-se mal se recompôs da intempérie imposta e saiu para a rua, para sorver ar. O ar coube-lhe sempre dentro, aninhado no vazio de nenhures. Disseram-lhe em tempos que a sorte também é qualquer coisa que se pode arrumar sem grande preceito, acomoda-se e pronto, por assim dizer, não é precisa habituação. Não concorda, tem medo dela, está melhor assim, que não há amor que a agarre nem sorte que lhe caiba dentro. Recita sozinha, à janela e sabe que nunca perde. Rapa com jeitinho o tacho grosseiro e jamais passará fome. Um dia ainda morre quase vazia, sabe bem disso, mas não está importada. Nesse dia podem até abrir-lhe a boca até mais não e enchê-la de colheradas de vida, podem empanturrá-la de doces, de amores e de estupores, de ventos e de horrores, de beijos e de rancores. Mas por enquanto quem manda é ela, quando muito o arroz doce. É que nunca o consegue lamber sem canela. Fosse dona de si mesma, à séria e mandava-o à fava, que mulher que é mulher ordena o corpo que habita, sem direito a perdição. Assim é uma mera cativa, inutilizada num pecado cumprido não por preferência, mas por sorte. Maldita palavra, esta.
sábado, 16 de fevereiro de 2013
a ler, definitivamente e independentemente
A crónica do Padre José Tolentino Mendonça, de há umas semanas a esta parte, na revista do Expresso. E isto quer sejam católicos, judeus, islâmicos, protestantes, qualquer outra, ou completamente ateus.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
...
Não sei se me consigo acostumar a um mundo que tem velhos sem dinheiro para pagar a renda do sítio onde moram há anos esquecidos. Não sei ainda se consigo conceber a ideia de os olhar a mirar as paredes corridas dos corredores onde se dependuram fotografias de papel ou de memória, as melhores do mundo, sem saberem se ali poderão permanecer durante o tempo que ainda pode vir. Não aprecio excesso de dramatismos, escândalos à tarde na boca da Fátima ou da Júlia, não aprecio sequer os discursos emitidos por quem apenas fala sem pensar no que efectivamente importa, no caso das pessoas com reais carências do básico e do essencial. Este meu texto insignificante vale também ele coisa nenhuma, sinto-me na obrigação de o dizer, trata uma mera opinião para com um sistema que desdenha a fragilidade de fim de vida, que o trata como um sítio de passagem onde cai quem não morre a horas, e que por isso mesmo vive consequentemente demais. Mas é que cada vez mais, nas minhas alienações felizmente inconsequentes, me assume sentido a perspectiva do desfecho com um botão género interruptor de parede, que desliga quando o mundo se cansa de nós e quando deixamos de ter coisas para oferecer, para passarmos a possuir apenas precisões. E isto sem idade marcada, claro. As precisões cansam quase sempre o cuidador, em pessoa e em sistema, que ainda vive escorreito nos dias de sol onde tudo se aguenta e nada custa rigorosamente nada, a não ser os empecilhos que pejam passos apressados. Ainda hoje nos correios, perante uma fila considerável que contava euros até à loucura dos duzentos ou trezentos, ouvi uma opinião, eventualmente ainda mais pronta do que a minha. Falava o senhor, mirrado, corcunda e de bengala na mão, numa trituradora que desfizesse tudo de uma vez só, género papel confidencial nos gabinetes de contabilidade. Puf, that's it.
De facto, acabava-se com a moléstia. Cortavam-se os males pela raiz, uma limpeza orientada a critério, mas que ia-se a ver e na execução da ordem deixava cá aquele, bem como tantos outros como ele. Levaria por certo, e por ordem de prioridades, primeiramente os gordos de bagagem que poderiam compor sistemas com o que deixariam para trás, se continuasse sem haver direito a transporte para o lado de lá. Concluía-se então, mais do que certo, que nem a morte gosta de miséria, quanto mais a vida.
( Não estou nada contra os senhorios. Só para que fique esclarecido.)
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
atum ou chocolates?
(Às vezes apetece dizer que se deslarguem disso. Vivamos pois, quem quiser e assim apreciar, amor sem hora marcada. Mas deixemos respirar quem aprecia o agendado, cercado a bic vermelha no calendário do frigorífico, ou emergido do lembrete, barulhento, do smartphone. Ainda ontem, noite entradota, compras tardias e encontro a meio do corredor dos enlatados um casal bisonho de orquídea na mão. Outra mão na outra mão e boca na boca, pois. Querem lá saber da pirosice do dia ou das vésperas, sequer da das montras ou dos pacotes de açúcar cor de rosa choque que me entram pela bica adentro todas as manhãs, de há uns quinze dias a esta parte. Interessam-se lá eles da crise, financeira ou da meia idade, que atravanca desembaraçamentos amaldiçoados, coisinha do pior. Um dia ainda se enfiam num balão de ar quente em direcção aos céus enquanto dançam e sonham alto, tudo a meio caminho das nuvens. Que voem, que dancem e que sonhem, é o que tenho a dizer. E eu se não quiser ver que feche os olhos ou que passe no corredor do lado, que posso sempre não comer atum e ficar-me pelos chocolates. Com, ou sem forma de coração.)
terça-feira, 12 de fevereiro de 2013
da ordem
Aprendo infinidades de coisas com o meu filho que ainda nem sequer tem dez anos. Ensina-me como ninguém que a fraqueza é para amparar e que os erros são para desculpar, e isto sem abri a boca pequena e faladora que trabalha em outras palavras, outras curiosidades, outras entregas sem carga de intento efectivo, nascidas da vontade que por ora o guarda muito mais do que a mim. Gostava de ainda poder viver de vontades, mas isto é só um aparte, uma utopia amestrada, coisa de gente crescida que já foi pequena e que já não volta a ser. Aprendo com a minha gata a tranquilidade da existência. Come quando tem fome, dorme quando tem sono, corre atrás de uma bola cor de rosa quando eu chego e ela fica feliz. Tento aprender, na verdade só tento, que não a conheço ao ponto de a poder albergar algures num sítio perdido e esvaído. Fica ali, na tentativa de conceber, que busca pateta e descabida. Aprendo com a natureza um sem número de lógicas programadas pela ordem natural dos dias e das noites, dos solstícios e equinócios que os fazem maiores ou menores, da aurora e da penumbra, do sol ou da chuva que insiste em cair quando a não quero, parva que é. No meu mundo, às vezes, a ordem deveria ser outra. Muno-me de fatuidades a despropósito, como se o meu corpo pudesse, só porque quer, vejam bem, arrumar com as coerências das árvores e dos bichos, das condições atmosféricas e das horas toldadas à escuridão, dos rios que correm até ao mar e das gaivotas que fogem livres para sitio nenhum, desde que esse lugar seja seguro e tenha peixe que se coma. Misturei coisas, mas falo essencialmente de afectos. Ou não constituam os próprios a teoria mais sustentável da existência, e que me perdoem os teóricos dos números, das religiões que se querem indubitáveis, das ciências exactas justificadas no concreto. O meu filho cresce depressa, é um exemplo. Eu queria que me fugisse mais devagarinho, vejam outro. Vai-se a ver e passa, é assim, está a crescer. Nós é que precisamos da eterna impugnação, coerente com a nossa vontade de dominar o que não tem domínio nenhum.
Não mandamos em nada do que é realmente grande. Mas nunca nos habituamos.
Não mandamos em nada do que é realmente grande. Mas nunca nos habituamos.
jogo
Nada é mais perfeito do que o invólucro do corpo. Ensaiamos, na loucura, na profissão, na curiosidade ou na ganância, e aí sabe-se lá porquê, escorregar no anseio da descoberta irrealizável, destros de tudo e de coisíssima nenhuma. Circundamos, espiamos, especulamos, apuramos o faro à descurada peugada que nos dará decerto a razão da sabedoria e insistimos, com pensamentos edificados na barra da suposição, apoucados, à espera. De estarmos certos, por vezes errados.
Ora deixem-me que vos pergunte, senhores, se isto não é um jogo de sorte e de azar, de puro desafio à excelência do valhacouto, é o quê, então?
domingo, 10 de fevereiro de 2013
samba
Não tenho nada contra quem samba aqui, ou ali. Acho inclusive que a internacionalização de tudo e de todos e a multiculturalidade subsequente, é qualquer coisa de magnânimo e evolutivo. O cerne está, apenas, na questão efectiva da pertença cultural. O samba não é meu, tal como o fado não é deles, e isto, é só um exemplo. Que não implica que eu não dance, sequer que eles cantem fado. Obviamente...
mais ou menos
Gato por lebre, já se diz há muito. Porco por javali, frango por faisão, sucedâneo por chocolate. Carne de aviário por carne de caça, perca por cherne, granadeiro por bacalhau. Não saí da gastronomia, podia tê-lo feito com sério benefício em exemplos, e já lá estou outra vez. Cavalo por vaca, pois. Um grande embuste de aguçada revolta, também pela simpatia do animal em questão. Evito pensar muito no que ingiro quando compro alimentos compostos e confeccionados. E não é por esquecimento, por desleixo ou ignorância. Genuína é a hortelã que me cresce no vaso da varanda, os agriões que germinam no leito do rio, as azeitonas que caem das oliveiras na costa. E outras do género. O resto é mais ou menos o que se diz, sabe mais ou menos ao que devia, é mais ou menos composto pelo que se descreve. O mais e o menos é a ignorância que nos permite comer, mais ou menos sossegados.
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
Guinness
Comam toneladas de carne, cozinhem feijoadas enormes, corram maratonas todos juntos e engulam quilos de gomas. Surfem ondas gigantescas, reúnam milhões de amigos nas redes sociais, partam tijolos com a cabeça e bebam mil litros de água de uma só vez. Mas deixem os beijos fora disto. Guinness é quase sempre sinónimo de loucura e exagero. Beijos loucos e exagerados são outra coisa, não são recorde.
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
bonés, gorros e outros adornos
Espreito numa nesga de porta e está sentado com uma espada na mão. A cabeça encontra-se envolvida no carapuço da camisola cinzenta de fecho à frente e brinca, sem nunca destapar o cabelo. De há um tempo a esta parte encontro miúdos que se enfiam dentro de gorros ou carapuços, e penso no porquê. Faz-me recuar aos tempos em que o meu avô escolhia uma boina a condizer com o casaco de fato e com a gravata de nó muito fino, vaidade, nele por certo pouco mais do que pura vaidade, de um homem que nasceu demasiado belo num mundo de mulheres. Não sei se aprendeu a vivê-lo, julgo até que não, os exageros são sempre uma dor de cabeça demasiado dorida para que dela nos consigamos libertar e depois, viver. Recuo ainda aos adolescentes que há anos viram bonés, uma irreverência exposta que faz com que se passeiem com um orgulho gingão e um corpo ligeiramente pesado com inclinação para a frente, como se na carga dos ombros levassem o mundo às costas e gostassem disso. E pudessem com ele, essa é que era. Hoje, verdadeiras vivas aos gorros e carapuços. Pergunto directamente sem ser preciso, para quê isso, quando não está frio? É moda, diz-me, como se eu não soubesse essa parte e perguntasse apenas o que não sei. Será, claro, mas desconfio que não será só. Talvez porque me enfio de imediato no chapéu de palha com aba larguíssima que me acompanha os passeios nas tardes de verão, mesmo quando não esta sol. Em conjugação com os meus óculos gigantescos guardam-me também dos olhos do mundo, além de me guardarem os meus. É estilo, intenção, mas é muito mais do que isso, que temos o hábito de juntar tudo aos sentidos do corpo e daí retirar conclusões apropositadas. Se sinto conforto, nada me causa dano, se não vejo com os meus olhos é porque não há, se não deixo escapar pela boca é porque não sinto, se me tapo, ninguém vê.
( Não é por nada que o psicanalista fica sempre na retaguarda.)
( Não é por nada que o psicanalista fica sempre na retaguarda.)
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
grandes frases, ligeiramente manipuladas, só para soar melhorzinho...
Ricardo Araújo Pereira, versão Emídio Ribeiro: Tragam o bife, que o esparregado já cá canta.
Nazareno ao acaso, versão patriota: Tragam o surfista, mas a onda é nossa.
Ulrich, versão pele de sem abrigo: Tragam a austeridade, que o arcaboiço todos temos. Venha ela. Siga...
( Com o apontamento de que esta última é evidente. As outras, vá, exigem mais concentração e raciocínio. Atentem por favor ao facto de que a escolha da mixórdia, não foi por acaso.)
domingo, 3 de fevereiro de 2013
complementaridades
Quando imagina, a música é invariavelmente esta. Não que os acordes tragam de arrasto palavras de valor, o que lhe entra no corpo é exclusivamente som. Começa a ouvi-lo num tom muito acima do que os ouvidos conseguem granjear, é talvez por isso que se aloja nela, inteira. A dança chega repentina, um desperdício, despreza-se a escalada crescente e atinge-se o pico num segundo que se mantém, ritmado, incansável, enérgico. Ganha-se na intensidade, inquestionável. Precisa de poucas circunstâncias. Basta-lhe um átrio vazio de gente e um DJ a passar só para ela. E os olhos que a olham da mesa, claro, sempre esperados. Dirige-se para o local escolhido ao centro no exacto momento em que a música atravessa as colunas e se arremessa, toda, na sua direcção. Inicia um movimento onde nasce, um passo de cada vez, numa entrega sentida como se a música lhe brotasse do sangue. Ela só ouve, ele só vê. Mexe-se vigorosamente enquanto abre ligeiramente a boca que emite uns murmúrios que acompanham a letra juntamente ao corpo, este mais destro, mais pronto, totalmente subjacente a um ritmo frenético que se sente à distância pelos gestos que lhe saem das pernas soltas, debaixo da saia exageradamente curta. Gosta de olhar para os pés demoradamente enquanto os braços se levantam em direcção às luzes que faiscam muito menos do que ela, apagassem tudo e vê-la-iam, sozinha, enquanto a música tocasse ou ela a ouvisse. A dado momento, num frémito insistente do refrão, estremece além do já fraco refreamento e perde-se num descontrolo efusivo, um atrevimento que paira enquanto as batidas insistem nela, incessantes, pertinazes, impostas. No anseio extasiado descalça os sapatos altíssimos e desce ao chão, que a consente como a um bicho perdido que rodopia em desassossego descompassado, um descalabro. A música aproxima-se do fim mas ela não sente. Continua num crescente movimento que executa em entrega exacerbada e abana-se continuamente, até que o som se cala de uma vez, altura em deixa de só ouvir e restaura os demais sentidos. Ele, ainda só vê. Ela dirige-se aos sapatos que volta a calçar e que a deixam de novo a roçagar a racionalidade. Avança até ele e senta-se a seu lado. Respira fundo, molha a boca no Hendrick's e pergunta-lhe ao ouvido: Amor, ouviste bem esta música? Querida, responde, vi-te bem, a ti.
...
Perdi a conta aos dias que já me atravessaram desde que tenho de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Lembro, num resquício de memória guardado mas quase esquecido, das horas em que só lia, das horas em que só via, das horas em que só dormia, das horas em que só comia. Misturo por ora sonos com pensamentos, leituras com escutas (quase) activas, jantares com deambulações internas de organização doméstica. Dou por mim com elevada frequência a tentar apossar-me de várias coisas ao mesmo tempo. Separo os ouvidos para um lado e os olhos para o outro, filtro o que posso, encaixo o que consigo e no final, não raras vezes, misturo a informação que engulo meio sôfrega, não fosse escapulir-me por entre os minutos que correm rápido, fugazes. É trivial, sei, mas cada vez mais sinto o tempo como um luxo, substituível apenas e no âmbito em questão, pela capacidade de destrinça do que realmente importa. Cresça-me um ou cresça-me a outra, penso, que os dois seriam um luxo grande demais para mim.
sábado, 2 de fevereiro de 2013
ora, leiam
É nova e cheia de graça. Vejam aqui. Leiam e tomem-lhe o gosto. Uma lufada de ar fresco, sem cheiro a mofos, hábitos ou mais do mesmo.
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
o valor dos caracóis
( Acrílico sobre tela - Vitor Zapa)
Não sei, nunca tive muita paciência para o pormenor. Depende. Há pormenores que me levam de arrasto num cerco qualquer. Lembro-me bem dos teus, nas gavetas, perpétuas, onde guardavas os anos em fotografias e em bilhetes perfumados a flores enxutas, colhidas num desânimo amargurado que resolvias secar junto de ti. Vias todas, todos os dias. Precisarias de encontrar o desuso que te comia, uma coisa de cada vez, os caracóis foram primeiro, em contratempo. Dizia-to o espelho incerto que te mirava a morrer. Encolhias muito com a chuva do Inverno, nunca gostaste do Inverno. Olhavas para a janela encardida e bafienta e desconfiavas do que vias. Abrias nesses dias as gavetas de rompante. Escolhias tudo de uma só vez, enfeitavas-te de gladíolos sem cor e deitavas-te à espera. Olhavas para a porta que nunca se abria se não para saíres por ela, quando esquecias que o teu mundo morava ali. A lagoa era assim como uma saída que espreitavas de perto, com o nariz encostado à água. Os peixes que saltavam, nem vias, sentias só as formigas que te subiam para o corpo amarelado e que te feriam as costas, ásperas, defuntas. Disseram-te em tempos, deve ser verdade para sempre. O gato enrodilhava-se no cesto, à noite, enquanto espreitavas a lua que não nascia porque as nuvens não te deixavam ver. Só gostavas delas de dia, para entreveres vidas cingidas à tua, imprecisas, sem tirar nem pôr. Um dia subimos à serra. Era Verão, penteaste o cabelo e pintaste a boca e os olhos. Nunca mais me vou esquecer do ar que nunca te vi. Voltamos depressa. O sol punha-se, o espelho chamava-te. Retiraste tudo de ti e olhaste-te a desaparecer. Tinhas flores. Tinhas uns quadros nascidos em tela quadrada armados numa parede de um quarto vazio. Tinhas uma cortina que te escondia o lixo. Disseste-me uma vez: Ali, ninguém pode entrar. Não entrei, mas a partir daí fiquei sempre com vontade. O lixo é um mundo que nós nunca queremos ver. Nem no espelho do corpo, nem no espelho da alma. O que trespassa, é morto, mas cuidado, diz-se por aí que pode levar caracóis.
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