sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

o valor dos caracóis

( Acrílico sobre tela - Vitor Zapa) 


Não sei, nunca tive muita paciência para o pormenor. Depende. Há pormenores que me levam de arrasto num cerco qualquer. Lembro-me bem dos teus, nas gavetas, perpétuas, onde guardavas os anos em fotografias e em bilhetes perfumados a flores enxutas, colhidas num desânimo amargurado que resolvias secar junto de ti. Vias todas, todos os dias. Precisarias de encontrar o desuso que te comia, uma coisa de cada vez, os caracóis foram primeiro, em contratempo. Dizia-to o espelho incerto que te mirava a morrer. Encolhias muito com a chuva do Inverno, nunca gostaste do Inverno. Olhavas para a janela encardida e bafienta e desconfiavas do que vias. Abrias nesses dias as gavetas de rompante. Escolhias tudo de uma só vez, enfeitavas-te de gladíolos sem cor e deitavas-te à espera. Olhavas para a porta que nunca se abria se não para saíres por ela, quando esquecias que o teu mundo morava ali. A lagoa era assim como uma saída que espreitavas de perto, com o nariz encostado à água. Os peixes que saltavam, nem vias, sentias só as formigas que te subiam para o corpo amarelado e que te feriam as costas, ásperas, defuntas. Disseram-te em tempos, deve ser verdade para sempre. O gato enrodilhava-se no cesto, à noite, enquanto espreitavas a lua que não nascia porque as nuvens não te deixavam ver. Só gostavas delas de dia, para entreveres vidas cingidas à tua, imprecisas, sem tirar nem pôr. Um dia subimos à serra. Era Verão, penteaste o cabelo e pintaste a boca e os olhos. Nunca mais me vou esquecer do ar que nunca te vi. Voltamos depressa. O sol punha-se, o espelho chamava-te. Retiraste tudo de ti e olhaste-te a desaparecer. Tinhas flores. Tinhas uns quadros nascidos em tela quadrada armados numa parede de um quarto vazio. Tinhas uma cortina que te escondia o lixo. Disseste-me uma vez: Ali, ninguém pode entrar. Não entrei, mas a partir daí fiquei sempre com vontade. O lixo é um mundo que nós nunca queremos ver. Nem no espelho do corpo, nem no espelho da alma. O que trespassa, é morto, mas cuidado, diz-se por aí que pode levar caracóis.  

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