segunda-feira, 11 de março de 2013

olá, sou o Sr Silva,

vivo há muitos anos e já não tenho paciência para isto. Estou farto, dói-me o corpo todo, morro tarde, já há muito que morro tarde. Houve um dia em que deixei de me poder mexer em condições. A bengala não chegava, sabe como é. Conseguia virar-me, mas depois caí no chão. Nesse dia levaram-me para um hospital onde fiquei até que os filhos me trouxessem para aqui. Teve de ser aqui, o dinheiro não chega para coisinha melhor. Como mais ou menos, tomo banho uma vez na semana, mudam-me a fralda umas duas vezes ao dia, depende de quem cá está. Algumas têm mais algum cuidado, outras é a despachar. Os meus filhos vêm pouco. Ligam de vez em quando, moram lá para a Capital. Têm os filhos, os meus netos, que saudades que eu tenho deles. Quando cá vêm nem sempre os trazem, estão grandes, têm a vida deles. Ali ao lado dormem mais dois. Às vezes um deles grita toda a noite e eu não consigo dormir. Quando assim é durmo de dia, à tardinha, numa cadeira sem encosto. As de encosto não chegam para todos, são poucas, e eu não tenho direito, são só para quem paga um bocadinho mais. O que tenho sempre direito é ao pão seco. Isso, é à descrição. Posso comer pão a toda a hora, mas há vezes em que fico meio embuchado e já não me apetece. Fumo aqui uns cigarros à janela. A filha ralha que é caro, mas sabem-me pela vida que já não me vive aqui no corpo, coisa esta, alguma vez pensei. Pensava sempre que morreria de uma morte santa a meio de uma noite, em que o coração, farto, me deixasse em eterno sossego antes de precisar de alguém para além de mim mesmo. Não escolhemos, escolhemos pouco nesta vida e escolhemos ainda menos quando ficamos velhos. Quando ficamos velhos pesamos. Encarquilhamos o corpo e a alma que deixa de ter direito a decisão, mesmo que em tempos tenhamos sido gente da boa. Li muito, li que me fartei. Vi televisão, vivi revoluções, acompanhei Presidentes da República e politicas que se preocuparam qualquer coisa com os velhos e os reformados. Hoje essa gente deixou de existir. Eu também não pensava muito nisto, confesso. Era daquelas coisas que eu não via, e que por isso partia do pressuposto que não haviam. Os tempos também eram outros, as mulheres estavam em casa, agora tudo mudou. Algumas coisas para melhor e outras para pior. As possibilidades são maiores, mas esqueceram-se ainda mais os velhos. Ninguém nos vê, é quase como se não existíssemos. Se passa qualquer coisa na televisão, vê-se a medo, foge-se com os olhos e pronto, passou. Estas pessoas aqui é como se nos estivessem a fazer um favor. Dão-nos comida, fazem-nos um mínimo de higiene, mas o que eu queria era ainda sentir-me gente, e a verdade é que já não sinto. Estou velho, quase acabado, só não percebo porque é que não acabo de vez. Digo isto muitas vezes e com franqueza, mas acho que ninguém me percebe. Dizem-me sempre que é um disparate, que está tudo nas mãos de Deus. É verdade, eu sei que é verdade, mas não entendo a demora. Despesas para os filhos, que pouco podem, estorvo para toda a gente, e só faço é sofrer. Se ao menos o Senhor se lembrasse de mim, era o maior favor que nos fazia. A todos. 

( Qualquer semelhança entre esta história e a realidade, não é coincidência nenhuma. É uma existência sentida porta sim, portas não, lá, onde não se vê.)

2 comentários:

  1. Uma realidade que dói, mas dói tanto!
    E eles, os velhos, cada vez mais abandonados, mais sentidos como sendo um peso, quer para a sociedade, quer para filhos e netos.
    Esse é, na minha perspectiva, um dos maiores dramas das sociedades modernas, as tais "civilizadas".

    Bjs

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    1. Dói, de facto dói. A civilização tem destas inerências, aguçadas pela conjuntura que temos actualmente. Ao peso, acresce a falta de recursos. Um drama, sem dúvida alguma...

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