vivo há muitos anos e já não tenho paciência para isto. Estou farto, dói-me o corpo todo, morro tarde, já há muito que morro tarde. Houve um dia em que deixei de me poder mexer em condições. A bengala não chegava, sabe como é. Conseguia virar-me, mas depois caí no chão. Nesse dia levaram-me para um hospital onde fiquei até que os filhos me trouxessem para aqui. Teve de ser aqui, o dinheiro não chega para coisinha melhor. Como mais ou menos, tomo banho uma vez na semana, mudam-me a fralda umas duas vezes ao dia, depende de quem cá está. Algumas têm mais algum cuidado, outras é a despachar. Os meus filhos vêm pouco. Ligam de vez em quando, moram lá para a Capital. Têm os filhos, os meus netos, que saudades que eu tenho deles. Quando cá vêm nem sempre os trazem, estão grandes, têm a vida deles. Ali ao lado dormem mais dois. Às vezes um deles grita toda a noite e eu não consigo dormir. Quando assim é durmo de dia, à tardinha, numa cadeira sem encosto. As de encosto não chegam para todos, são poucas, e eu não tenho direito, são só para quem paga um bocadinho mais. O que tenho sempre direito é ao pão seco. Isso, é à descrição. Posso comer pão a toda a hora, mas há vezes em que fico meio embuchado e já não me apetece. Fumo aqui uns cigarros à janela. A filha ralha que é caro, mas sabem-me pela vida que já não me vive aqui no corpo, coisa esta, alguma vez pensei. Pensava sempre que morreria de uma morte santa a meio de uma noite, em que o coração, farto, me deixasse em eterno sossego antes de precisar de alguém para além de mim mesmo. Não escolhemos, escolhemos pouco nesta vida e escolhemos ainda menos quando ficamos velhos. Quando ficamos velhos pesamos. Encarquilhamos o corpo e a alma que deixa de ter direito a decisão, mesmo que em tempos tenhamos sido gente da boa. Li muito, li que me fartei. Vi televisão, vivi revoluções, acompanhei Presidentes da República e politicas que se preocuparam qualquer coisa com os velhos e os reformados. Hoje essa gente deixou de existir. Eu também não pensava muito nisto, confesso. Era daquelas coisas que eu não via, e que por isso partia do pressuposto que não haviam. Os tempos também eram outros, as mulheres estavam em casa, agora tudo mudou. Algumas coisas para melhor e outras para pior. As possibilidades são maiores, mas esqueceram-se ainda mais os velhos. Ninguém nos vê, é quase como se não existíssemos. Se passa qualquer coisa na televisão, vê-se a medo, foge-se com os olhos e pronto, passou. Estas pessoas aqui é como se nos estivessem a fazer um favor. Dão-nos comida, fazem-nos um mínimo de higiene, mas o que eu queria era ainda sentir-me gente, e a verdade é que já não sinto. Estou velho, quase acabado, só não percebo porque é que não acabo de vez. Digo isto muitas vezes e com franqueza, mas acho que ninguém me percebe. Dizem-me sempre que é um disparate, que está tudo nas mãos de Deus. É verdade, eu sei que é verdade, mas não entendo a demora. Despesas para os filhos, que pouco podem, estorvo para toda a gente, e só faço é sofrer. Se ao menos o Senhor se lembrasse de mim, era o maior favor que nos fazia. A todos.
( Qualquer semelhança entre esta história e a realidade, não é coincidência nenhuma. É uma existência sentida porta sim, portas não, lá, onde não se vê.)
Uma realidade que dói, mas dói tanto!
ResponderEliminarE eles, os velhos, cada vez mais abandonados, mais sentidos como sendo um peso, quer para a sociedade, quer para filhos e netos.
Esse é, na minha perspectiva, um dos maiores dramas das sociedades modernas, as tais "civilizadas".
Bjs
Dói, de facto dói. A civilização tem destas inerências, aguçadas pela conjuntura que temos actualmente. Ao peso, acresce a falta de recursos. Um drama, sem dúvida alguma...
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