domingo, 17 de março de 2013

requintes


Sabia lá eu no meio das flores da primavera precoce, o que seria o amor de que tanto se falava. Ainda assim queria-o, acautelada pelo chapéu de palha de aba larga que roubava ao prego da parede velha, assim viesse  sol, assim me apetecesse ( as saudades que eu tenho do assim me apetecesse). Sentada numa manta desfolhava malmequeres no anseio do bem me quer. Uma pétala de cada vez, sem enganos, atentíssima. Guardava os pés mortos das flores que me calhavam bem e deixava os outros sumirem-se no ar fresco tarde afora. Não tinham lá grande intenção, as flores que eu apanhava, e serviam só para que eu treinasse a motricidade fina dos meus dedos, hoje sei disso. Dou como certo terem sido as principais responsáveis pela minha aprimorada capacidade de enfiar agulhas sem vacilo, sequer sem necessidade de lamber o fio que nunca se abre aos meus dedos, precisos, fixos, sem tremelicos ou safanões vindos a despropósito. Uma preciosidade de predicado que utilizo uma vez no ano, eventualmente duas, por falta de tempo ou paciência. Fosse eu dotada de ambas e passaria os meus dias em frente à Bernina velhinha que calhou de herança à minha irmã, juntamente com um anjo, uma colher de pau e uma infinidade de coisas invisíveis. Ela cedia-ma sei disso. Se assim fosse, costuraria vestidinhos de seda colorida bem acima do joelho, que me embelezassem as pernas e me trouxessem a primavera florida de cada vez que eu me olhasse ao espelho de corpo inteiro que sai da porta do roupeiro de madeira onde moram vaidades, malvadas essas. A culpa das vaidades é dos espelhos. Dos de parede e dos das almas, espalhados nos olhos do mundo, juntos numa dança só. Não sei muito bem o que me fazia crer, ainda que levianamente o fizesse, nas previsões de uma flor. Desconheço ainda a razão do empenho exagerado impelido na desfolhada, como se o amor só pudesse nascer de um malmequer branco ao calor de uma tarde soalheira, que ignorância a minha. O amor pode nascer em plena chuva do Inverno, por exemplo. Crescer num rosário carregado, acolher carrancas, tiritar de frio e estender-se ao comprido no bafejo da corrida para sucumbir ao encontro. Um sossego inquieto, uma morte estranha, que afinal é vida cada vez maior. Nunca poderia imaginar a dimensão. Tivesse eu a mínima noção e teria deixado em paz os campos ao redor das casas velhas. Assim sacrifiquei flores sem fim, mortas às minhas mãos, cientes de que tudo se resumia à simplicidade de um malmequer, de um chapéu de palha, de uns dias de sol. E à vaidade de uma flor no cabelo, pois. Vale-me em consolo, e pelo assassínio em massa da flora circundante, o requinte das minhas mãos. Não fosse tal facto, utilíssimo, e nunca me perdoaria. 

4 comentários:

  1. O verdadeiro amor pode nascer em qualquer local, o verdadeiro.

    (tenho uma verdadeira admiração pelas pessoas que são capazes de enfiar a linha numa agulha na primeira tentativa e sem hesitação)

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    Respostas
    1. Pode, pode nascer em qualquer lugar, que o que menos importa são os locais ou circunstâncias...

      ( Pode ter, que de facto a coisa não é fácil. Valeram-me as desfolhadas, acredite. :)

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