sábado, 1 de junho de 2013

just, be

Não sei quando deixei de ser criança, sequer se deixei de sê-la. Um dia fui em tamanho menor, hoje moro escondidinha dentro de um corpo que cresce sem que a areia o balde e a pá percam de todo o significado das construções que o mar derruba com umas ondas capazes de galgar os muros que se constroem na frente, como se o forte pudesse guardar tudo o que há para ser guardado. Oh, disparate maior. Os olhos ficam a mirar pequeninos e encolhidos em tamanho real, exactamente como quando aos quatro a poça se enchia demais e eu, mergulhada no papo-seco com tulicreme de cacau deitava uma pequena lágrima, tão pequena, tão pequena, disfarçada pelo sal, pelo sol e pelos cabelos em desalinho sossegado, possível só na infância. Depois quase me deixei da dose exacta de ser na mescla da liberdade, sou de mim, mas antes disso era de alguém. A pá mergulha agora em sulcos muitíssimo mais profundos, caíssem-me as guardas e o meu mundo morreria. Sou de mim, era de alguém, hoje dou-me tão pequena, tal qual como sempre, não sei ser maior. Há criança nova a nascer cá de dentro e cá de fora, até porque a implosão permite-nos o sermos para sempre o que quisermos ser no instante, e eu tenho dias em que sou exactamente a que já cresceu, antes de crescer. O chapéu de elástico não se vê mas eu sinto-o, e o tulicreme de cacau passa-me sem esforço na boca até à língua que lambe os beiços lambuzados até ao nariz. A mão esfrega e tinge o braço que leva tudo até às orelhas e não há adultez que não morra na beira disto. A adultez morre várias vezes aos bocadinhos pequeninos que deixam sentir um colo que me cheira a mãe ou um conto que me sabe a avó ( mama na burra, tem de ser esse, e cresceu, e fez-se pessoa, por entre montes e vales nunca antes atravessados). Se a adultez não morresse nunca eu por esta altura já sabia que um lenço não pode ser uma capa de uma princesa encantada ao redor de um castelo tão alto, mas a verdade é que não sei. Depois sinto o frio da água, claro, ser criança é senti-lo sem que haja cuidado maior. Treme-se o queixo pequenino enquanto a toalha nos embrulha mas nunca tapa tudo, e a nuvem malandra esconde o quentinho que afinal mora nos braços de alguém. Esses braços agora são meus, mas eu consigo despir-me de caprichos e entrar na água que me gela todos os ossinhos do corpo só para mergulhar uma onda e entrar num mundo que não é meu, é do Nemo. Seguro a respiração, dou-lhe a mão enquanto vimos os dois ao de cima e respiramos quase sem folgo. Gosto de ondas grandes, mares mortos não são para mim. Sou capaz de me deitar num brinquedo aquático e de me baloiçar até que a criança me vire e o roube, para fazer a corridinha da onda até à areia. Costumo chegar em segunda, tremenda falta de jeito. Engulo água, sempre, fatal como o destino. O destino é qualquer coisa na qual não acredito porque ainda não cresci o suficiente. Diz quem sabe que nos persegue de perto e nos sopra para dentro do corpo o que bem lhe aprouver. As crianças correm atrás do que querem, caramba, há lá destino que as pare. Mesmo quando o que querem não existe, não possa ser, não se possa comer ou não se possa ter.     

4 comentários:

  1. Só uma pequena criança seria capaz de imaginar um texto lindo destes :)

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    1. :)) São os teus olhos que lêem com a idade dos meus.

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  2. Pobres daqueles que só vivem a adultez, que perderam a inocência da infância, que deixaram de continuar pequeninos habitando num corpo que excede a sua medida.

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