quinta-feira, 13 de junho de 2013

olhos de ver

Hoje li não sei quantas páginas enquanto esperava o que afinal não veio. Deparei-me com um serviço com gente que passeia e gente que trabalha, de batinhas brancas e estetoscópios ao pescoço a enfeitar corpos com Dr. no inicio do nome. Havia um problema, deveria ser sério, tinha de ser sério, reuniu numa sala uns quatro enquanto cá fora ares cansados folheavam revistas cor de rosa, há que pintar o mundo de cores bonitas e penteados a condizer. Fui coçando o nariz para espalhar o sono que subia teimoso pelos olhos acima, não fosse perder o chamamento e teria bebido o segundo café do dia, ainda mal amanhecera. Parei as leituras e olhei para as pessoas como que a imaginar o que lhes corria dentro, ou não fora o livro o mote ideal. Centrei-me no casal grávido sentado à minha frente, ela mais grávida do que ele, que se visse, só que se visse. Ele abanava um telefone que tocava de vez em quando. Ela fixava os olhos no vazio que não existia na sala, quem sabe vinha-lhe de dentro, coisa estranha, sempre pensei que não havia grávidas vazias, espero que não haja e que tenha sido falsa impressão. A que chegou sozinha de pai trazia uma filha na mão. Sentou-se a meu lado e olhou-me de soslaio, imagino o que possa ter pensado. A filha teimava em rodopiar uma saia rodada de ganga, muito curta, tem futuro, deu para perceber, pela forma como sacudia e mexia nos cabelos, entre outras coisas. A certa altura perguntei se a demora se estenderia a uma bata azul que passou. A bata azul encolheu os ombros sem olhar para mim e prosseguiu viagem até a um sitio qualquer. A indiferença do mundo dá cabo das pessoas e faz com que elas percam o nome, o Dr., a identidade real e passem a ser batas de cores distintas. Bata azul, bata branca, pessoa que espera, pessoa que atende, pessoa que foge, só indiferente. Olhar uns para os outros com olhos de ver exige envolvimento. Envolvimento exige tempo interno e tempo interno é diferente de tempo externo. Um pode ser fácil, o outro pode ser difícil. Talvez seja desse que as pessoas têm falta quando dizem que correm correm e o tempo não chega. O tempo chega, tem de chegar, chega para comer, chega para dormir, chega para trabalhar, chega para descansar. Só não chega para que olhemos uns para os outros com envolvimento e olhos de ver. 

6 comentários:

  1. Adorei o seu texto. Vai na linha do que escrevi em LANTERNAS VERMeLHAS, no meu blog. De facto, deixarmos-nos levar pela correria, é perdermos essa capacidade de nos "encantarmos" com o OUTRO, porque o olhamos com olhos de ver, mesmo!!!

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    1. Obrigada Paula. Já não é a primeira vez que escrevo sobre isto, ando eventualmente repetitiva... É o que faz escrever o que se sente na pele... :)

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  2. Felizmente, ultimamente não tenho tido más experiências, muito pelo contrário.
    Mas já senti, ou já só senti...

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    1. E há sítios do mundo onde esse sentir não pode acontecer... Sou particularmente sensível a estas questões, e intriga-me quem perante algum tipo de vulnerabilidade não desenvolve afectividade. E não me falem de hábito. Hábito serve para nos defender a nós, não para descuidar os outros...

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