quinta-feira, 20 de junho de 2013

rua

Passo na rua do suplício que eu nunca tinha visto e que está lá há muito escrita numa tabuleta em pedra onde a inscrição se encontra desenhada em letras limpas, vá saber-se porque nunca a encarei de frente, saber-se ainda o porquê de ter sido hoje, que nem abrandei o passo rápido que me acompanha demasiado, todos os dias. Lembrei-me da romaria que descia a ladeira do suplicio e da procissão do archote, que alumiava simbolicamente as gentes da terra que a percorriam na noite até ao cemitério, lugar do qual assobiavam foguetes luminosos a céu aberto, aceso e ruidoso. Os mortos devem ter medo, pensava eu enrolada às carranchinhas do meu pai. É a romaria explicava-me ele, enquanto o fresco da noite reunia gentes encabeçadas pelo pároco que fazia questão de levar uma tocha em mãos até ao final do arraial. Aquilo não era um sítio qualquer e eu, do alto de uns anos baixinhos e assustados de medo, sentia-o bem. Sentia-o nas preces murmuradas da minha avó Rosalinda, no choro abafado da minha tia Hermínia, nas orações ocultas do meu avô que não rezava, e nos olhos clandestinos que sorviam a luz e a noite, à espera do milagre. Os meus miravam tudo e percebiam que o mundo é um sítio de adultos no qual as crianças têm de crescer a comer pão de forno com manteiga e a beber leite fervido, sempre passado a passador de rede, e se puder ser com chocolate. Queria tanto ser crescida e poder saber o que era aquilo que morava ali, que havia quem lhe chamasse fé. Mas nem é esta história que aqui me traz, hoje não estou para nostalgias. Nem propriamente a crença, espelhada nos suplícios dos  transeuntes que ainda hoje dobravam a esquina da rua com o mesmo nome. O que me traz, ainda que possa não parecer, é a nossa capacidade selectiva que quase morre despercebida, tanto quanto os segundos que não contamos e os odores que não cheiramos. Nada mais do que a perfeita natureza, o que seria de nós se tudo soubéssemos? Soube hoje que a rua se chama suplício, nunca mais me vou esquecer. Mas a rua continua a mesma e certamente irei cruzá-la vezes sem conta, apressada, em bicos de pés, sem a ver. Ela, não sei se me conhece (ainda que me tenha dado a sua graça).

( Em criança pensava que o mundo era dos adultos, hoje sei que o mundo é das crianças. Concluo então que crescer dá conhecimento e que se soubermos muito, perdemos coisas.)

8 comentários:

  1. Muitas vezes a rua da vida não passa da Rua do Suplício. Quer sejamos crianças detentoras do mundo, ou adultos abnegados pela incerteza.

    Bjos

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    1. Não pode Paulo, não pode. Ou no mínimo, não deve. Tudo pertence na real medida que deve a cada idade que se atravessa, não concordas? Abnegar a incerteza faz parte de nós adultos. Viver na consequência, também...

      Beijos para ti...

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  2. muito bom o remate final entre ( ) :)

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  3. Mas olha que fazer com que o mundo seja de ambos é só uma questão de abrandar um pouco o passo, não como tu fizeste - que pareces não o ter feito e o nome ter surgido à tua frente por acaso, ou nele teres reparado por acidente, sabe-se lá. Abrandar o passo e sentir, os tais cheiros; olhar e ver, todas as cores e formas; deixar que as brisas nos envolvem; ouvir e escutar, até os silêncios. E, já agora e pensando bem - o mundo também não é deles [das crianças] porque, de tanto entusiasmo que pôem em certas coisas, deixam passar outras, tal como nós.
    Beijinhos

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    1. :) O mundo, e a bem da verdade, não será de ninguém e será de todos nós, querida Antígona. Da forma como o conseguimos, queremos e ousamos captar...

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  4. Quanto mais sabemos menos serenos somos :) Não tenho quaisquer dúvidas. Que bom é ser criança... ou ter um lado assim e ser feliz com ele.

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    1. Todos temos lados assim, Fátima. A questão é que na adultez valem o que valem, merecem existir, precisamos que vivam, mas já não é a mesma coisa. Não é um queixume, atenção. É uma simples forma de ver a realidade...

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