quarta-feira, 22 de outubro de 2014

vincular

A vinculação é seguramente uma das nossas urgências mais básicas, no que confere à saúde mental. É a partir dela que se organizam de forma salutar os patamares da socialização, sendo que o inverso não deixa de ser verdade, ou seja, partindo do pressuposto de que evoluímos em interacção com o meio, constitui uma fonte de desenvolvimento intrapsiquico e individual. Votar crianças aos cuidados institucionais provoca de forma directa uma dificuldade severa na manutenção dos objectos vinculantes. Induz a um medo de afectar o desejo a uma presença inconstante, que foge ao fim de semana ou passados uns meses de contrato, porque surgiu qualquer coisa melhor (pode sempre surgir qualquer coisa melhor quando não há amor). A manutenção da alimentação e do cuidar o físico continua, a meu ver, a sobrepor-se largamente ao cuidado afectivo, mas a realidade é que a saúde vai muito além de um corpo alimentado e aquecido. O jornal Público apresenta-nos hoje números assustadores, que apenas resumem o que todos sabemos: há demasiadas crianças institucionalizadas em Portugal. Há muitos meninos e meninas sem um objecto próprio que lhe devolva de forma sadia o que necessitam para crescer. Há demasiados meninos e meninas que em vez de colos sempre iguais conhecem inúmeros, exagerados, porque nos afectos o que é demais também pode enjoar (ou neste caso falhar). E há demasiados meninos e meninas que conhecem a rejeição em fases e frases, por dentro e por fora, com todas as características que nada têm a ver com a língua e com a construção frásica que a sociedade parece valorizar ao infinito. Pode estar em sofrimento, desde que seja bom aluno. Pode estar em desconforto, desde que seja educado. Pode chorar de noite desde que sorria de dia, e pode ter a alma rasgada, desde que o corpo cumpra os parâmetros analíticos da hemoglobina, dos leucócitos, dos linfócitos e das plaquetas. Há caminhos a percorrer no sentido de inverter a marcha. São passos pequeninos a ser dados num país em crise, onde os orçamentos pesam demasiado quando comparados com a necessidade efectiva de uma criança (de muitas crianças, acabamos por concluir). A redefinição do terceiro sector, o incentivo à criação de famílias de acolhimento devidamente apoiadas, a evolução de uma responsabilidade social, fazem parte de uma consciencialização do assunto verdadeiramente urgente. Uma grande parte da população não sabe o que é não ser visto, não ser chorado, não ser sentido. Doer apenas às pedras da calçada deve ser mais frio do que essas pedras, que nunca na vida chorarão. Pensar sobre isso é um mínimo aos qual todos nos deveríamos obrigar. Pela emergência da compreensão.

2 comentários:

  1. Este é um assunto que me angustia verdadeiramente...

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    1. :( também a mim. E parece-me tão esquecido pelas pessoas no geral...

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