quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

dúvidas

O assunto era "o amor". Ninguém sabe ao certo o que dizer sobre o indizível, o que reside nos confins do inexplicável, sem possibilidades métricas, óbvias e irrefutáveis. Muito se opinou, muito se concluiu, tudo ficou afinal de contas por dizer. Fixei-me num dos pontos de análise, não há outra forma a não ser dissecá-lo se pretendemos pensá-lo, será mais ou menos como dividir um campo de visão sob pena de perdemos a melhor parte. 

O amor fácil por exemplo, é tão simples o amor fácil. O amor sobre o qual se fala sem interjeições, limpo, claro, um amor partilhado a rodos pela humanidade. Este amor assenta num pressuposto individual, onde o que importa é o que se transmite e o que parece ser, a culpa que morre um bocadinho sempre que do outro lado da linha vem uma palavra de sossego, que aconchega o nosso ego e nos dá a sensação de dever cumprido (até breve, esperamos que assim continue). Sobre essa forma de amor há pouco a dizer, mas julgo que a deveríamos ter mais em conta, pela quantidade dispersa pelo mundo. É um amor aparentemente sadio, que parece resistir às intempéries das almas, que segue em fila pelos caminhos da vida, desviando-se das pedras, dos buracos, das dúvidas e das barreiras. Não há usualmente grandes sobressaltos, pelo menos no mentor desse amor. Já quem o recebe, pode por vezes sentir-se sacudido por um qualquer desconforto mais ou menos transitório, que parece fazer comichão quando na realidade se necessita de um colo. Mas a bem da verdade o costume engole o excepcional, e bem vistas as coisas aquela pessoa está sempre perto numa espécie de distância de segurança marcada pelo quotidiano, é melhor manter e aconchegar, não vá o diabo tecê-las. 

Depois, ensaiamos um outro género de amor, o mais difícil, aquele que se inunda seriamente dos afectos, e onde o outro assume um papel muito mais importante do que nós próprios. É aquele onde o bem estar de quem amamos importa muito acima da nossa obrigação, mas que curiosamente parece aos olhos do mundo muito menos visível. É um amor complexo em toda a sua dimensão, porque constrói uma dualidade existencial superior, e pode doer,  magoar, pode transcender o que qualquer dicionário consegue exprimir em palavras. Para este, nem todas as pessoas estarão eventualmente preparadas, é talvez um caminho pessoal, que converge numa ligação dual e profunda. A maternidade e a paternidade são bons e óbvios exemplos, mas diria que nem sempre, e diria ainda que poderão não ser necessários. Quem se encontra realmente consigo muito mais depressa encontrará este estado supremo da existência. Quem não sabe de si procurará, navegante no visível, no mensurável, no imediato. 

Resumindo, só quem se encontrou pode querer saber do outro verdadeiramente, sem procurar mais nada para si próprio. Não deve ser algo fácil de se encontrar no seu estado mais elevado, mas consideramos, no grupo da conversa, ser uma das mais puras formas de amor. 

No final de tudo bebemos um chá e entramos em introspecção, num beco difícil de digerir. 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

ciências

À discussão encetada sobre a mesa do jantar, insisto na importância da história e da filosofia para o desenvolvimento humano. Repito que o carácter se desenvolve no pensamento e na viagem pelo trajecto do mundo, e que sem eles nunca seremos ninguém. O pragmatismo defendido por quem aprecia que um e um seja sempre igual a dois, sem se debruçar minimamente nas variáveis externas imensuráveis,  refuta claramente esta minha teoria. Mas ora vejamos, e sem qualquer desprimor pelas exactas, profundas preciosidades da medicina, da física, da mecânica, da informática e do mundo em geral, questiono-vos na mais profunda das ignorâncias, a quem recorrem na ânsia da paz de espírito? Ao rigor instituído de uma qualquer instituição, ou ao conforto da vossa dimensão existencial?

( As aulas de filosofia que o meu filho traz para casa, têm-me dado anos de vida. Na correria dos dias, na medição das horas de sono, de trabalho, de lazer ou de distâncias, andava esquecida do lugar seguro onde o domínio da existência nos pode levar. O senão é perigoso, mas compensa o risco. Quando conseguimos saltar da genialidade da matemática, para a genialidade dos sentidos, percebemos que nada do que se quantifica, chega para existirmos. A bem da verdade, todas as ciências fazem sentido, é o que é: o que umas arrumam, as outras desarrumam.)

domingo, 1 de dezembro de 2019

condóminos

Sexta-feira à noite. Final de uma semana com pouco glamour, vivida a sério por entre as entranhas mais rugosas do ser humano. Dirijo-me à hora marcada para a reunião de condomínio, na mesa onde se encontram vozes indignadas por incoerências administrativas pouco ortodoxas. Sento-me silenciosa, na esperança que não me encontrem ali naquela cadeira, e observo todos à distância e com calma, uma das minhas maiores qualidades actuais é passar despercebida. Duas vizinhas acendem-se na injúria, tão fácil cair ali perante um problema, ajuízam em alta voz, e gesticulam convictas da sua imensa sabedoria. Outro, quase deitado num puff amarrotado, aproveita o fim do dia para se espreguiçar, mãos atrás da cabeça, poucas palavras, um sorriso cansado e incrédulo, concordo com ele: o mais cómico é muitas vezes o inesperado e o imperdoável. Sentado na merecida poltrona, vejo o sr. Manuel, oitenta anos já avançados, a apurar o ouvido para dignificar a escuta sem necessitar de intermitências, já compreendeu que ninguém está disposto a falar mais devagar. Do Brasil, via Skype, temos a vizinha Dulce, em camisola amarela de alças, óculos gigantes, e um leque majestoso, capaz de lhe arrefecer o ânimo, o calor, e ainda de refrescar o computador, velho e massacrado pelos trinta e muitos graus do Rio de Janeiro. Volta e meia a ligação vai abaixo. O quórum fica reduzido, a sala exalta-se mais um bocadinho, inicia-se nova tentativa, e neste momento já vejo também o vizinho Joaquim ao lado de Dulce, de calções aos quadrados, boné e crucifixo ao pescoço. 

São umas nove e trinta, talvez dez. A casa, cedida gentilmente pela vizinha da frente, enche-se de repente de estudantes universitários, que chegam das aulas de desporto. Dois rapazes e uma rapariga. Eu, vizinha do lado, paredes meias com o quarto de um deles, entretenho-me a descobrir qual dos dois se ocupa noite adentro da rapariga magricela e despenteada, com ar angelical. Enquanto na minha cabeça reproduzo o ruído da cama na parede do meu quarto, adornado com uns gritinhos discretos de felicidade, não consegui chegar a conclusão nenhuma que prestasse, tudo porque o vizinho Armando grita de repente bem alto, - Temos que acabar com esta situação. E o mais rápido possível! 

Regresso ao Brasil, ao leque, à falcatrua e à realidade, e penso para mim, já tive sextas feiras bem mais desprezíveis. Só falta chegar o ladrão, sentar-se na mesa connosco, trazer o chá e o bolo de fubá, e acreditaria definitivamente estar numa telenovela da TV Globo. Que saudades, caramba.

sábado, 2 de novembro de 2019

os arrumadinhos

A calma e a tolerância não são conceitos dos dias de hoje, são conceitos de um outro tempo. Como aquele em que eu esperava, sem facilidades, que a hora dos desenhos animados chegasse mais cedo, distraindo o corpo a efectuar papinhas de esparguete e água, enquanto na minha imaginação nasciam histórias de encantar. 

Hoje já não se cultivam legumes ao natural. A pressa de chegar às bancadas dos supermercados faz com eles não bebam toda a água que têm de beber, não esperem que o sol lhes dê cor, não acordem com o vagar de umas semanas lentas e caprichosas, no toque aveludado oferecido pela madrugada. Hoje, dizem que felizmente, temos recursos para acelerar todos os crescimentos. Hoje, sabemos onde estão todos, a toda a hora. E monitorizamos em padrão pessoas, como quem pesa ao quilo um pacote de farinha para o pão. Já não desenvolvemos a paciência da espera, a tolerância da demora, a resistência que apenas se consegue com o treino intensivo da subida a pulso e da ocupação da mente. Hoje o súbito substitui o denso, no universo da sociedade, e consequentemente, no universo das relações humanas. Ninguém sabe o que é esperar e desesperar por uma carta, ninguém sabe o que é a demora do pensamento, ninguém escolhe a longa caminhada, porque a rapidez do imediato permite que façamos tudo de uma vez, num shot vitaminico falso e manhoso, em vez de saborearmos o que vamos fazendo a tempo de se fazer. A ilusão da satisfação não trata mais do que isso, uma mera ilusão. Idêntica ao arroz de pato que compramos em embalagens plásticas ( recicláveis), que apregoam bem alto saber ao arroz de pato da nossa avó ( sabem lá eles o sabor do arroz de pato da nossa avó). 

E é neste trajecto que vamos construindo pessoas a martelo, como o vinho sem corpo, como uma broa que não levedou. É assim que esperamos que as nossas crianças se tornem adultos de sucesso exterior e mediático, sem olharmos para dentro dos olhos delas e percebermos se lá dentro, no território das emoções, há sucesso pessoal e imensurável, como todos os sentimentos. Porque o que conta parece ser o que se mede, em escalas com bitolas iguais, numa sociedade onde a norma engoliu, há muito, a magia da individualidade. E depois, depois chegamos ao que eu considero o limite da desumanização e da credulidade humana. Criamos este mundo, impulsionados pela ímpar sabedoria da evolução, mas fugimos a passos largos das consequências, nefastas, da inversão de prioridades. Criticamos a impulsividade das criancinhas, argumentamos que não estão aptas a pensar o suficiente porque se distraem nas novas tecnologias, gritamos que o valor das relações se deteriorou, que não sabemos dizer não, e que a agressividade roubou a tolerância e o respeito. Quando na verdade, o que acontece, é uma corrida contra o tempo e uma vitória da norma, sem tempo e sem individualidade. O resto, são consequências.

Daqui à frustração vai um passo. Um passo que se mede, já que apreciamos a medida, em índices de infelicidade e vazio. Hoje vivemos mitigados com comprimidos que sossegam criancinhas, e que aumentam a capacidade de adultos ansiosos, as tolerarem. Todas a aprender igual, depressa e de forma rigorosa. Os topos estão nos quadros de excelência, e recebem aplausos. E ninguém percebe o porquê, de tantas vezes, se desorganizarem anos depois. Eram tão arrumadinhos. Também ninguém parece perceber que ao longo da vida muitos se desregulem, quando no universo relacional não fluí tudo como se espera, e a agrura da vida ensina da pior maneira que há para ensinar: com a crueza dela própria. Em vez de vencermos, saímos vencidos, incapazes de alojar os sofrimentos, de secar as lágrimas e confiar na placenta, imaginária, do nosso próprio caminho. O abismo seria menor se olhássemos cada vez mais para o que conseguimos evoluir enquanto pessoas. Sem medidas e sem comparações.

domingo, 8 de setembro de 2019

balanço

Hoje é um dia de mudanças para muitos dos nossos jovens. As universidades abrem as portas dos seus lugares sentados, e quem conseguiu alcançar a meta inicia um percurso que poderá ser de sucesso. Identifico-me muito com a evolução pessoal, o investimento na educação e no conhecimento. Aprecio as sociedades que permitem aos jovens crescer, mas acompanho demasiado perto alguns deles para conhecer a tensão onde se encontram, nos anos que antecedem esta vitória. Muitas escolas fracas, com professores de papel e sem história. Muitos programas pré-estabelecidos, onde a verdadeira arte de transmitir conhecimentos é engolida por metas rigorosas e medidas à régua, como se só quem atingisse o valor certo pudesse ter o dom de um dia, vir a ser um bom profissional. Ninguém, ou muito poucos perdem um bocadinho do seu tempo a pensar no que vagueará na cabeça destes jovens. Quantas contas farão ao longo do secundário, financeiras e de valores de média, quantas vezes reequacionam os percursos, quantas segundas escolhas lhes nascem no horizonte, na miragem de não conseguirem alcançar a primeiras. Quantas noites passam sem dormir a construir castelos alternativos que lhes permitam ser o que não escolheram, por um acidente de percurso que pode ser tão trivial como um simples azar no professor da disciplina de matemática, acompanhado de uma limitação financeira familiar, para pagar uma explicação. O país une-se em perfeita junção para acompanhar os casos de sucesso, mas nem olha para os que ficam pelo caminho, e nem sequer para o processamento interno dos que alcançam o objectivo, à custa de uma saúde mental que deveríamos incentivar, e não colocar à prova em idades onde o sonho ainda deveria comandar a vida. Deixo os meus parabéns a todos os que conseguem caminhar. De frente, de costas, devagar ou depressa, e deixo também os meus parabéns aos que acabam arredados do processo, ainda antes dele arrancar. Louvo que consigam adaptar-se, arranhar soluções, perseguir indefinidamente o que ambicionam, cair e levantarem-se. Se tudo isto faz parte da vida, faz. Mas a desigualdade que este sistema permite, e o caminho onde desagua, não favorece, de forma alguma, um caminho de sucesso na evolução e na construção de melhores profissionais. A educação, a base de todo o ser humano, continua a ser para quem pode tê-la. Um sinal claro de um mundo sub-desenvolvido, de onde tão cedo não iremos sair. 

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Feira


Aqui, ao longe, quase sinto o cheiro da cebola, da feira da minha terra. Gosto de feiras. Movimento-me bem nas bancas de roupas duvidosas, intercaladas com legumes frescos, malas de contrabando e lingerie cor de rosa a um euro. Acabo sempre por encontrar umas boas bagatelas, quanto mais não seja um lenço colorido a imitar seda selvagem, só perceptível ao toque, como tanta outra falsidade. Mas as feiras da minha terra, há muito que perderam o encanto. Misturam por ora, sem graça e sem arte, o aroma do campo e da simplicidade, com o odor cansado da presunção. No mesmo espaço, chocalha a tradição perfumada, com uma modernidade indefinida, um misto de lugar nenhum, onde o que era já não existe, e o que se ambiciona, parece não se encontrar. Vejo tantos territórios destes, que invariavelmente ficam pelo caminho. As feiras da minha terra mereciam um outro destino, mais original, mais honesto, como o grito longo do pregão. Não mereciam morrer de solidão, entregues a quem não sabe cuidar delas, e que as roubam à sua própria individualidade.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

ruído

O mundo está cheio de pessoas que buscam paz interior a custo relativamente reduzido. Há muito tempo que existem, deverá por certo constar de um cardápio socialmente bem conseguido, um guião de bem-fazer, almejado por quem ambiciona para todo o sempre, um lugar cativo no céu. Privar com os que necessitam de ajuda deve fazer parte dos requisitos de quem se encontra numa extrema direita, mas com emoções popularuchas, quem sabe, de extrema esquerda. E não se vão de modas, claro. Participam em peditórios do banco alimentar, que independentemente do destino, serve um propósito nobre. Reservam uns dias de férias para integrar projectos da igreja direccionados a população carenciada, de dinheiro e de afectos, entre outras iniciativas, que permitem em tempo definido e com fim à vista, apaziguar o corpo pecador, e dar ao espírito um síndrome de dever cumprido, obrigada e até para o ano. Não tenho certamente nada contra, permito-me a mim própria à simplicidade da observação. Do teatro dos que a estes préstimos se propõem, em nome da "solidariedade", quando comparados com o verdadeiro auxilio ao próximo, pelo próximo, e não por um lugarzinho no céu. São tão fáceis de distinguir entre os dois. Enquanto um é governado pelo medo, o outro é pela generosidade. Enquanto um se entrega à fraqueza, o outro entrega-se à nobreza. Enquanto um adensa a diferença, o outro apela à semelhança. Enquanto um caminha na direcção da solidão, o outro retrata a grandeza da evolução.

Enquanto um é barulhento, o outro é silencioso.

(...)

O universo coloca-nos à prova, todos os dias. Quando tropeçamos e batemos com o nariz na porta, quando acordamos e sentimos o peso da vida aos ombros, quando nos deitamos e rebolamos por entre os lençóis, arranhados pelo desassossego. Depois, quando menos se espera, reorganiza-se. Nesse dia o nosso corpo respira com mais lentidão, focamos o caminho e, sem pressa, aguardamos nova intempérie. Nunca nada está terminado.

( Ela sabe bem disso enquanto segura o bebé nos braços. Uns olhos majestosamente grandes, um riso fácil, um choro elevado. Todo o mundo está ali, naquele pequeno ser. Que a mata e ressuscita, todos os dias. Invariavelmente.)

sábado, 24 de agosto de 2019

Corrupção

Passeia-se lenta, sempre com um ar de quem descobre a cada passo, o caminho imediato a seguir. Não se adivinham os avanços, as decisões, e os fios que orientam o seu trajecto, parecem sempre tecidos por umas agulhar de laçada fina, inconsequentes, imprevisíveis. Ninguém lhe decifra as métricas do rosto, o tamanho do sorriso, o peso da lágrima, a profundeza das covinhas que desenha no rosto, em cada palavra que soletra, com a doçura de uma simplicidade maior. Faz-me pensar, ao quente sol do meio dia, na transparência que todos encerramos, sem darmos conta, a quem consiga observar. É certo que fotografa a criança com a delicadeza da maternidade. É um facto que esconde a tristeza com uma mestria digna de quem consegue retirar coelhos de uma caixa, ou fazer desaparecer uma carta dentro da manga de um casaco preto. É real que desafia o mundo a olhos vistos, como se nele habitassem apenas distracções que se enredam nas corridas dos dias, velozes, sem tempo para o pensamento. Esquecida, talvez, que no desenho dos seus gestos, mora o seu todo. Escorreito, sem falhas de carácter, sem histórias de mal dizer. Transmitimos tanto do que somos no quotidiano do que fazemos. Nunca uma má história cultiva uma flor, nunca uma boa pessoa se corrompe na dificuldade. 

domingo, 30 de junho de 2019

o trajecto

Percorro o trajecto para o trabalho devagar, escondida atrás de um transporte perigoso com combustível inflamável. Subo a serra ao encontro da história de uma menina perdida, que ambiciona que a vida futura lhe traga um curso perfeito, um trabalho perfeito, um marido perfeito, uma vida perfeita. As lágrimas que deita escorrem-lhe velozes, pronúncio de que os melhores dias da vida dela estão a ser engolidos depressa, pela sua boca e por vontades alheias, esquecidas de que o caminho é sempre o nosso maior encontro com a felicidade. Quem sou eu para matar sonhos. De resto, compreendo-lhe perfeitamente a necessidade da orientação definida, encaixada no padrão escolhido pela mãe, linda, esbelta, de sorriso estudado e fato engomado. Professora, digo para mim, entregue ao preconceito, obviamente antes de saber. Enganei-me por um triz, é dona de casa, a vida foi-lhe fácil, a única dificuldade parece ser tornar a filha, digna de ser sua filha. Nunca percebi ao certo o porquê da natureza ser tão madrasta para certas pequenas. Que desde cedo, muito além do rigor das etnias culturais, são prometidas a uma vida vazia de escolhas e de sentido, de liberdade e de avanço. Das duas uma, ou o grito surge depressa, difícil e condenado, ou o ciclo vinga sobre a sua capacidade de ser pessoa. E daí em diante será mais do mesmo: mais frustração, mais submissão, mais (im)perfeição e mais beleza estereotipada. A única perda será a genuinidade e a paz de ser o que ela quiser ser, um balanço tão óbvio quanto impossível de se ver. Não sei se me explico.  

segunda-feira, 10 de junho de 2019

silêncio

Todos os dias leio o jornal. Oiço notícias, folheio crónicas, passo os olhos por receitas que alimentam a gula que acolhe os dias vazios de tudo, numa correria que só quem não corre, vê. Hoje encontro o silêncio na ordem do dia. O silêncio onde nos encontraremos outra vez enquanto pessoas, se ousarmos retirar num hotel por 48 horas seguidinhas, sem interregnos, sem telemóvel, sem televisão, sem conversa ou qualquer chamamento para o mundo exterior. O interior é o foco total, numa busca desenfreada por um caminho que nos foge das mãos, vezes demais. A moderação é feita usualmente por especialistas, que prometem o devido casamento connosco próprios, mesmo quando o par encontrado seja taciturno, mal disposto, enfastiado ou deprimido. Fico feliz com esta oferta, que rapidamente, suspeito, será parte integrante do Booking, do Airbnb ou outros semelhantes, que prometem pacotes completos ao melhor preço do mercado, com pequeno almoço incluído, e, certamente, vista para o mar. Esquecem-se, num erro maior, que o encontro connosco mesmos não se vende em pacotes enfeitados com lacinhos cor de rosa, formatados para o fim de semana, com acepipes e convívios ao fim da noite, na hora da palavra solta. O encontro que vale a pena, o silêncio que nos leva ao encontro do que procuramos, pode vir na calada de uma noite fria, encharcada de lágrimas, ou debaixo do sol de uma serra árida, quente como o lume, a cortar os pés. Pode despertar numa cama, vazia, calada e abandonada, ou numa outra cheia de voz, acompanhada, lida no corpo de quem amamos. O encontro que vale a pena não tem receitas escritas, com quantidades definidas por alguém que julga saber, o que outro alguém precisa. O silêncio que faz crescer, surge-nos dos soluços internos da mente, quando o que sorvemos tropeça no que sabemos e no que sentimos, altura em que, às vezes, desenhamos mais uns escassos metros do caminho. Mas o mundo é de quem sabe, também já sabemos. E hoje qualquer receita rumo à felicidade ganha simpatizantes a mais, nem que para isso se pague um salário redondo, é só um preço. E se tentassem perceber porquê?

sexta-feira, 8 de março de 2019

Dia da Mulher

Inês é minha prima desde que nasceu. Brincávamos sempre sozinhas, num vão de escada de acesso a um sótão, com bonecas nuas que vestíamos com as obras de arte que Albertina costurava, tardes a fio, na bernina que hoje habita em minha casa, restaurada, polida, como que a desafiar a morte que lhe roubou a dona. Inês era uma rapariga ingénua, tal e qual eu, tal e qual as outras primas que surgiriam na família, até ao dia em que o pai, à sua frente, mata com dois tiros a sua mãe. Maria caiu no chão imóvel, para todo o sempre, e Inês, apesar de viva, caiu com ela. 
Foi nesse dia que eu soube que há pessoas que matam outras pessoas sem ser em guerras, e que a vida de quem perde assim outro alguém, muda para sempre, porque a perda vai muito além de uma mãe. Inês perdeu a mãe, perdeu o pai, perdeu uma avó feliz e umas tias serenas. Perdeu a esperança no mundo, a tal que nenhuma pessoa deve perder, muito menos aos treze, muito menos nunca. Perdeu o local onde morava, perdeu a confiança na família, perdeu muitos colos, muitos sorrisos, muitos abraços e muitas histórias. Ganhou outras, demais para lhe caberem no peito, que rebenta ao pensar no que o pai, que a devia guardar, lhe arrancou das mãos num segundo. 
Dali em diante fiquei de olhos mais abertos. Descobri que à minha volta moravam outras vítimas, menos violentas, ou talvez igualmente, sem concretizar. Moravam vítimas em casas conhecidas, em casas distantes, em histórias que eu escutava como se nada estivesse a ouvir, num fingimento que me valeu muitas verdades assustadoras. A violência de um crime para quem a lê num jornal, é de uma atrocidade tremenda. Projectamos as nossas vidas, analisamos o perfil do agressor, especulamos o motivo, choramos a infelicidade da desgraça alheia. Longe, muito longe de quem vê ao perto os olhos de quem perdeu a vida como ela era, mas continua a viver, como alguém escolheu. Muito mais longe ainda, creio eu, de quem vive todos os dias sob o medo da morte. Talvez ainda tão longe de quem vive sem ele e o descobre, inesperadamente, num dia qualquer. Não há respostas, nunca se sabe o porquê, e por isso não me revejo no discurso da igualdade, da evolução, da mudança. Enquanto não educarmos sempre pessoas, teremos atitudes animais. Enquanto focarmos as celebrações no exterior, e esquecermos o interior, caminharemos sempre para lado nenhum. Enquanto a vida da família valha tanto como um nome ofensivo, que sai da boca com espinhos na direcção de um corpo sofrido, teremos sempre desrespeito. Enquanto o valor da Mulher, continuar a ser menor, e se vista apenas de flores e vaidade, não chegaremos ao destino. E assim, longe, muito longe de ganhar batalhas merecidas, vamos morrendo, a mãos alheias, um dia uma, outro dia outra. 

- O marido da Maria matou-a com dois tiros, era a frase da minha mãe, repetida à exaustão da loucura. A minha Maria, a minha Maria, gritava ela, com as mãos na cabeça. E eu olhava, incrédula, ainda sem saber bem o que seria aquilo. Aquilo, era a morte.

sábado, 2 de março de 2019

certezas

Somos seres de pequenos actos, embora na nossa humilde inteligência gostemos de pensar que somos donos das grandes obras. Todos os dias, nestes em especial, em que o sol nasce para nos comprar as vontades, acreditamos que conseguiremos mudar o que está mal, acrescentar ao que falta, remendar o que se possa. O mundo não passa, porém, de um embuste disfarçado de saber incauto. Mal a noite caia, mal o copo esvazie, mal o corpo se relaxe e se encontre num segundo, e não seremos mais do que a nossa fraca compleição, enriquecida e empobrecida por todas as histórias. É por isso que pouco me importa o que me dizem. Sei de fonte segura que a realidade vai muito além do que se encontra num dia claro, cheio de certezas aleatórias e lugares comuns. 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

o caminho

Um reconhecimento, um pedir desculpa, claro ou envergonhado, têm um poder infinito. Não matam os males internos nem apagam memórias, mas fazem-nos acreditar de novo, e não há relações que avancem sem confiança. Sejam de amizade, sejam de amor. Enquanto se respira e se acredita, surge um alicerce de esperança no progresso. Mesmo que, como no resto do mundo, se ande para a frente com a consciência de que poderemos voltar atrás (para depois continuarmos, mais sossegados).

domingo, 27 de janeiro de 2019

censura

Dizem os entendidos que já nada é como antes. Que os meninos não irão conhecer o mundo como nós o conhecemos, e que a ausência de trocas sadias irá prejudicar o seu desenvolvimento, em prol de um crescimento virtual cada vez maior. Será que não nos cabe a nós, pais, controlar ligeiramente este fenómeno? 
Quando segui para a faculdade não havia telemóvel. Havia uma cabine de moedas, da qual eu ligava para casa, três vezes por semana. Ninguém sabia se eu comia, se eu bebia, se eu dormia, se eu estudei ou se eu vadiei. Se eu desaparecesse por umas horas não era grave, pois o desaparecimento não era detectado, eventualmente seria imaginado. E se eu não estivesse online horas a fio não era o desespero, porque esse estado, tal como hoje o conhecemos, não era possível. 
Em pequena, mais anos de distância ainda, eu saia em bando, de bicicleta, mal a escola terminava, com mais meia dúzia iguais a mim. Guardados por cães, gatos e cabras no pasto. Brincávamos nas árvores, nas fazendas, nas estradas, e nos baloiços construídos com uma corda e uma tábua, no tronco de uma árvore qualquer. Ninguém fazia questão de nos guardar em casa, certos do que estávamos a fazer, cientes da segurança transmitida por um dispositivo e um sofá, que não permitiriam que nos acontecesse nada. Estaríamos ao abrigo do sol, da chuva, da maldade do mundo e das nossas travessuras. Nada era assim, quando éramos livres. E é por isso que quando hoje em dia oiço falar de liberdade, o considero um conceito controverso e delicado. Somos livres num mundo que nos monitoriza os passos, como quem nos escreve a história. Livres num lugar onde se não atendermos um telefone na primeira hora, todos julgam que morremos, que fugimos, que estamos ausentes demais, ou que somos levianos, para mal do circuito normal da humanidade padronizada. 
Luto contra isto todos os dias. Não me interessa saber a vida do meu filho ao segundo, interessa-me que ele a viva. E se esse hábito já não me sai natural, se o impulso do perguntar se está bem surge mais vezes do que eu gostaria, faço um esforço imenso para que reduza, muitas vezes, todos os dias. Mais do que eu saber se ele está bem, é ele estar. E para ele estar, necessita de estar, por ele, para ele, sem a carga pronta da censura ao segundo. 

Não me parece que haja margem para crescer com limites difíceis de quebrar, comandados ao segundo por um dispositivo remoto. Houve tempos em que se pensou que esta permanente ligação era benéfica, hoje já começamos a perceber os riscos, mas não sei se saberemos o caminho do regresso.
Alguém deixou um carreirinho de pão? 

domingo, 20 de janeiro de 2019

e agora?

Seremos felizes quando conseguirmos olhar o mundo sem esperar a compreensão, é ela que nos desassossega e nos impede de sorver a simplicidade. Seremos ignorantes se nos entregarmos à preguiça da satisfação do óbvio, é na busca desmedida que evoluímos. E agora?

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

doença

Nasci com pouco. A casa não tinha água canalizada, vinha de um poço, e era aquecida no fogão. O meu pai era militar por vocação, numa época em que a obrigação ainda falava mais alto do que a família. Ou o amor, ou a dor. Cresci a acreditar que a vida era feita de pão cozido no forno comido com planta, de bolachas com manteiga e café forte, de milagres que a Santíssima Trindade, padroeira lá da terra, fazia sempre que alguém estava doente, e o meu avô saia de seringa em punho para dar uma injecção, enquanto a minha avó rezava de joelhos em frente à santa, fosse por quem fosse. Quando chegou a televisão vinha a preto e branco, com dois canais, e só às seis da tarde existiam desenhos animados. E ao Domingo de manhã, antes da missa, onde eu lia os salmos às escondidas da minha família, pouco católica por sinal. O meu pai tinha um mini amarelo que nos levava à praia da Nazaré sempre que era verão, e à serra ver a neve, sempre que era inverno. A capital servia apenas para ir ao médico, e muito de longe em longe, ao jardim zoológico, e sempre que isso acontecia havia o limite do que se podia gastar. Se comêssemos uma pizza, não comíamos pipocas, se comêssemos pipocas, não havia gelados para ninguém. Se fôssemos às compras, ou havia a saia, ou havia as calças, ou havia apenas um par de meias, se fossem de lã, subidas, caras e quentes. Não fui menos feliz por isto, acho que com isto construí um orgulho gigante em quem me ajudou a crescer no seio do amor e da dificuldade. Não sinto que os dias de hoje sejam piores por haver mais acessos, mais evolução, mais qualidade de vida. Mas temo que o amor verdadeiro não consiga brotar de igual forma quando tudo parece fluir sem adversidades. Explico-me mal, talvez, não é o amor que não surge, ele eventualmente surgirá. Mas vem disfarçado de cores que ofuscam a capacidade de sentir genuinamente. Uma doença do século que turva emoções, prioridades, pensamentos, família, abraços e vinculações. 

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

orgulho

O orgulho pertence às categorias legítimas e ilegítimas da existência. Quando nasce a pulso, juntamente com a obra crescente, assume-se como uma vitória de quem luta, de quem avança, de quem se esforça, de quem desespera até ao último segundo de tempo, para vencer uma maratona. Quando por outro lado nasce no vazio de coisa nenhuma, não passa de um ataque sombrio de vaidade, sem eira nem beira, sem sustento ou devoção. Enquanto o primeiro é um direito, o segundo é um defeito.

sábado, 12 de janeiro de 2019

histórias

A mesma pessoa olha-me sempre com os mesmos olhos, os olhos de quem quer esquecer o passado. Constrói um castelo que lhe parece suficiente para erguer uma vida inteira de agora em diante, e de esconder uma enorme, de agora para trás. Fala-me efusivamente das janelas que se abrem para o sol, das camas que se estreitam para o infinito dos olhos, dos recantos que aconchegam ao sabor do lume, do jardim imenso onde as redes se baloiçam numa perfeição qualquer. Não sei ao certo o número de andares, não consigo perceber. Nem o peso do oiro que carrega ao pescoço, a cor das paredes que limitam o lar, ou o cheiro do incenso que se queima na sala. Olha-me demasiadas vezes com a mesma questão, já estou cansada: - conseguirei eu prosseguir, e morar assim tão ausente? Não respondo, nunca lhe digo nada, o passado de cada um é um recanto escondido, em lugares inconstantes. Tanto pesam uma pedra, como pesam uma pena. De modo que nada falo e somente sinto: que o castelo seja imponente e capaz: de matar a dor de uma pedrada, e a saudade de um sorriso perdido.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

equilibrio

Ganho esperança no mundo quando encontro pessoas que me confiam a sua realidade, sem quase saberem quem sou. Nelas espelho uma crença antiga, arcaica, crescida por entre uns ramos de oliveira, um sol nascente e um sol poente, uma terra onde a palavra dada era a palavra honrada, onde o respeito governava, e onde os caminhos tortos das estradas levavam invariavelmente ao conforto do previsível. Perco-a quando encontro muitas outras capazes de vender a alma ao diabo por um par de vulgaridades. Sei com certezas absolutas quais delas se sobrepõem às outras, quais vencem e quais perdem, quais dormem mais sossegadas, quais são muitas e quais são raras. Deixo com cada um a conclusão que lhe aprouver, mediante a observação activa da humanidade. As certezas absolutas são como os corações, cada um tem as suas, que batem a uma velocidade compassada, individual, reflexiva, a um ritmo sinusal ou mais patológico. 

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