segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

lucília

Vejo-a a depenicar uns brócolos amarelos e a colocá-los na panela com muito jeitinho. As meias às bolas cobrem-lhe uns pés magros que se orgulham de andar por onde lhes apetece, enquanto as mãos cadavéricas empurram para dentro da touca uns cabelos teimosos que lhe tapam os olhos que só vêm em frente. Pode andar onde lhe apetece, mas só anda ali. Da boca sai-lhe muito pouco, está cansada de palavras que nunca a levaram para sítio nenhum que se visse. Fosse verdade que levassem e teria dado a volta ao mundo nos tempos em que fritava chamuças e recitava poemas de amor, decorados no banco da escola e expulsos por imposição do miocárdio, que batia invariavelmente virado para o lado esquerdo, desde o dia da serenata e até hoje. O arroz doce é que já a levou tão longe que eu nem posso imaginar, diz-me. Acho que é por isso que muda de corpo quando o faz, que é certo, nós podemos mudar de corpo de vez em quando. Veste-se invariavelmente de preto e delicia-se a colocar no tacho o arroz, o açúcar, o leite e os ovos e a desenhar nomes com canela nas taças toscas de barro. Também aprecia as tigeladas de Castelo Branco, que perdem apenas por se cozerem individuais no forno e na forma, não permitindo sobras para salazar. Por isso prefere-o a ele, que come invariavelmente quente com uma colher de pau que rapa o tacho com sobejos exagerados, assim fica com mais só para si. Não toca nas taças, essas são sempre para os outros. Não é digna de uma inteira, sabe disso, é merecedora apenas e só dos paus de canela e do arroz ressequido no rebordo, do lugar à janela e do vento na cara, frio, de cortar a respiração. E do cheiro das violetas que nascem nos vasos. Houve um dia em que insistiram na taça e resolveu ceder, não aprecia desfeitas. Sentou-se na mesa, colocou o guardanapo no colo, agarrou uma colher fina da melhor prata, encheu-a de arroz devidamente polvilhado e levou-a à boca. O desconforto foi instantâneo, deu-lhe de imediato um refluxo no estômago, caiu-lhe o exagero no vazio do órgão mirrado junto ao corpo que a sacudiu violentamente, em solavancos vitoriosos que quase a comeram viva. Levantou-se mal se recompôs da intempérie imposta e saiu para a rua, para sorver ar. O ar coube-lhe sempre dentro, aninhado no vazio de nenhures. Disseram-lhe em tempos que a sorte também é qualquer coisa que se pode arrumar sem grande preceito, acomoda-se e pronto, por assim dizer, não é precisa habituação. Não concorda, tem medo dela, está melhor assim, que não há amor que a agarre nem sorte que lhe caiba dentro. Recita sozinha, à janela e sabe que nunca perde. Rapa com jeitinho o tacho grosseiro e jamais passará fome. Um dia ainda morre quase vazia, sabe bem disso, mas não está importada. Nesse dia podem até abrir-lhe a boca até mais não e enchê-la de colheradas de vida, podem empanturrá-la de doces, de amores e de estupores, de ventos e de horrores, de beijos e de rancores. Mas por enquanto quem manda é ela, quando muito o arroz doce. É que nunca o consegue lamber sem canela. Fosse dona de si mesma, à séria e mandava-o à fava, que mulher que é mulher ordena o corpo que habita, sem direito a perdição. Assim é uma mera cativa, inutilizada num pecado cumprido não por preferência, mas por sorte. Maldita palavra, esta.          

4 comentários:

  1. Às vezes não consigo alcançar deviamente, acho eu, aquilo que quer transmitir nas entrelinhas. Às vezes fico até mesmo baralhada. Salto de uma palavra para outra e acabo por me perder. Em todo o caso não quero deixar de partilhar que acho deliciosa a forma como escreve e acabo diariamente por sentir o bichinho e espreitar o "sorriso" que partilha. Obrigada.

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    1. :) Às vezes perco-me nas histórias que tão bem conheço e esqueço que desse lado o entendimento não pode ser igual ao meu. Basicamente, queria dizer que a sorte por vezes escolhe-se. Mas nem sempre totalmente de acordo com a nossa vontade. Isto, muito resumidamente. Sorrisos para si, e obrigada. :))

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  2. Morre vazia de quê? De afectos? De amor? De sonho?
    Não, ela ainda sonha! E nesse sim, nesse ela não manda.
    Há alguém, homem ou mulher, capaz de dar ordens ao corpo? Em termos mecânicos sim, mas nos afectos?...
    E é o doce do arroz que a consola, que a aconchega, que a faz seguir em frente.
    Há mulheres assim, há!

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  3. Morre, provavelmente, vazia de ser...
    Há mulheres assim, claro que sim. Muito embora esta esteja dramatizada por mim...

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