segunda-feira, 1 de abril de 2013

nascer

Não sei muito bem há quanto tempo nasci. Lembro-me de existir desde há uns trinta anos ou mais qualquer coisa, mas não sei precisar a primeira memória. Provavelmente nem nasci só nesse dia. Em paralelo de tempo estarão as paredes antigas, o lago do sapo que ainda não tinha acessos de virtualidade, a bicicleta que me levava e eu quase sem tamanho, a escola velha onde aprendi que o meu nome se podia pôr em letras numa ardósia preta, com um pau de giz. Nesse dia nasceu o meu nome visto, além do meu nome escutado e sentido. As memórias festivas vêm também de há muito. A Páscoa para mim eram amêndoas, mais ou menos como o Natal era presépio, árvore e presentes. E musgo, que ainda ontem o vi, no meio de paredes de água que nascia continuadamente num monte fértil de um dia próspero. Santos eram broas e forno de lenha. E cheiro a massa lêveda, muito cheiro a massa lêveda. Devo de ter nascido mais um bocadinho lá no meio, entre uma época e uma festa, Primavera, amêndoas, e por aí afora. Muito embora o meu cartão de cidadão diga que vi a luz precisamente em Outubro, ainda sem abrir os olhos, num dia de chuva que chovia numa cidade interior, num sítio que já nem existe enquanto local concreto. Não me apetece, não quero assim. Faz-me sentido a especulação de que me vou assomando, nada a ver com sol e com dias ou com datas precisas de arranques determinados. Simpatizo sem devoção absoluta com Locke e as tábuas rasas do desenvolvimento, papel branco, sem letras, sem sentimentos, sem constructos, apenas possibilitados em cada crescimento. Ainda que simplista, faz-me também sentido neste perpétuo nascimento, o que me deixa num sossego intelectual invencível. Nada tenho contra lógicas simples que me façam significado, por certo compreendem. Em concreto e na que falo, abre-me uma possibilidade de construção permanente, um caminho evolutivo fundamentado numa razão coerente. Bem sei que trata apenas um jogo de palavras. Uma vontade de exorbitar uma gênese que se aplica unicamente na origem do ser. Mas encará-la eternamente viável possibilita-me em consequência a morte do que constato errado ou infrutífero, enquanto pessoa. Porque em sequência nascerei outra vez.

( Num Natal próximo que não sei qual, não darei presentes por convicção. Nesse dia constituo-me um bocadinho mais e matarei um dos excessos que hoje carrego.)

2 comentários:

  1. Nasço e morro todos os dias; muitas das vezes em partos difíceis e em agonias intermináveis; outras, em poucos minutos. Sábado renasci novamente e amanhã não me quero morto mas, se tiver de ser, renasço. Bonito post... :P

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  2. :) Também eu. Tudo isso, e por difícil que seja, permite-nos o tal renascimento de que falas. Por vezes sinto que faz falta dar nome a estas questões, a fim de que a consciência surja devidamente fundamentada.

    ( Beijinho, e obrigado :))

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