quinta-feira, 30 de maio de 2013

flor

Há uma flor que me definha devagarinho por cima de um armário onde mal chego em braços esticados, depena-se folha a folha na lentidão desconcertante de quem não se quer esquecida, haverá lá coisa pior. Tirem-lhe os brincos, é uma frase que me ecoa nos ouvidos e que se alojou dentro do meu cérebro cansado e opado com ares clandestinos em poisio sossegado. Tirem-lhe os brincos não vão para dentro da cova com ela, diziam-me aos ouvidos que escutavam ao longe ainda ontem, sobre um esquecimento maior. A pobre já não ouviu coisa alguma, valha-nos isso, já não tinha posse no corpo quanto mais no que lhe enfeitava as orelhas encarquilhadas por cento e um quase por cento e dois, idade que já me levou gente de família da geração da longevidade, que comia sardinha em ranço arrecadada pelo pano das moscas que voavam perto devido ao galinheiro do lado de fora da porta, que não era empecilho, nem mesmo fechada, nem mesmo com fitas coloridas batidas pelo vento (e o tanto que me dependurei nelas: tão balalão, tão balalão, cabeça de cão...). O sol entrava-lhe pela janela quando resolveu suspirar pela última vez, coisa que espalhou as ânsias ao longe, perdessem-se os brincos e queria eu saber como era. Em tempos também assisti ao vison que voava de mão em mão, até o pobre do mustelídeo, morto e trabalhado, deveria estar bravo da vida com os arranques sofridos por braços de cabeças loiras e penteadas que diziam ai filha várias vezes por minuto, sem nunca dizerem ai mãe. Tantas que me doía a cabeça, ó Deus. Os oiros, os oiros e o vison são o que sustenta o povo, que o resto já morreu. Concordo, e também por isso acabo de regar a planta meio sucumbida que entretanto pousei no parapeito airoso e por ora vaidoso. Quase juraria que no momento da água abriu uma folha de si. E sem que se veja lua, atentem nisto, aí seria porventura namorico: debaixo de uma lua acesa, tudo tem outra leitura de ser. 

terça-feira, 28 de maio de 2013

a dois

( Elahe Soroushia)

A mulher meneia os cabelos negros por cima de uma mesa de copos embriagados dentro de um corpo qualquer. O homem agarra a cabeça por cima das mãos que lhe seguram o peso da alma em braços, uma vida toda tombada num desalinho enfartado que se entorna pelos olhos que fecham lá dentro o que não pode sair. Um outro toca uma harmónica que encosta aos beiços como quem lambe uma boca desalinhada que é preciso calar. Na sala ouve-se pouco mais do que o embalo do som e da voz e os ecos dos vidros no fundo do bar. A mulher persegue a melodia que acorda até os mortos que já morreram há muito, mas não o homem que dorme a fingir num corpo claro que insiste esconder. A harmónica acelera os acordes que inundam a sala de uma vida esquecida. Os copos regressam cheios do líquido tinto que todos bebem em intervalos iguais, ela canta, ele guarda-se, o outro toca. Na insistência da noite que não amanhecia nunca mais inflamam-se os olhos do homem que espera viver. Crispa a expressão do rosto vazio que deixou há muito num bairro qualquer. Olha para os cabelos pretos da moça que se abana perto e pergunta-lhe para onde vai. Ela responde-lhe que vai cantar enquanto a harmónica tocar e ele quiser. Ele olha para o músico e pede-lhe gentilmente um jazz que combina com o chapéu preto, o fato riscado, com ele e com ela. Esse obedece por simpatia e vontade de ver a melodia cantada por dois. Senta-se num banco alto e olha uma mulher que canta e um homem que vê. Uma música cantada por dois é muito mais do que um par compassado: uma música cantada por dois é um quadro singular de sintonia acolhida de símbolos iguais por corpos distintos e mal acabados para sempre. O Jazz durou exactamente dez minutos. O homem olhou a moça os mesmos dez que ela cantou ao ritmo dos olhos que viam sol. O sol era ela e ele sorriu. O outro calou-se na noite escura que o dia esquecido deixou muito tempo. Ninguém morreu de cansaço.    

segunda-feira, 27 de maio de 2013

culpas

A crise também leva às costas uma culpa mais velhinha que o Deus nos acuda. Não ajuda, como não ajuda em nada, mas a verdade verdadinha é que sempre foi mais confortável procurar a ajuda de um clínico geral  e de um comprimido quase invisível, do que a de um técnico ao qual recorrem pessoas eventualmente disfuncionais, coisa que ninguém é, com muito orgulho.  E se há muita gente para a qual este mito já morreu, também há muita para a qual continua vivinho da silva e bem de saúde, obrigado. Não nos ilibo de culpas, principalmente quando leio publicidades sonantes pouco credíveis e "diagnósticos extraordinariamente competentes", conseguidos à custa de uma consulta de conversa e nada mais. Não ajuda a "competência" adivinha nascida em consultórios demais. Não ajuda a falta de rigor que ainda se encontra em portas abertas com indicações de cura rápida e fácil de depressões, obsessões, ansiedades e temores diversificados. Ninguém cura num minuto o que a vida constrói em anos. Um conjunto de circunstâncias com consequências sociais graves: burlas e desadaptações há muitas; gente com pressa, também; comprimidos milagrosos não há, mas quase que sim; e o dinheiro é pouco de facto. Tudo junto constrói esta fantástica notícia e um futuro preocupante sobre o qual todos deveríamos reflectir seriamente, incluindo os profissionais do ramo. A auto análise critica, nunca fez mal a ninguém.

( Por princípio só utilizo a terminologia grave em casos declarados, daí tê-la reservado para as consequências sociais que já atesto e tê-la mantido de parte no que se refere ao futuro. O que não quer dizer que não considere estas questões gravíssimas.)

domingo, 26 de maio de 2013

sábado, 25 de maio de 2013

nem só em Lisboa tudo acontece...


( ou de como este ano o Porto se antecipa e inaugura as festas a 10. em grande...)

...

Hoje permiti que as mantas se mantivessem nos pés da cama para Dona Julieta descansar. Enrolou-se bem cedo no meio de uma, e aqueceu-se ao limite em banhos de um sol primaveril que a amacia tanto. Agarrei-a, tirei-a dali e mostrei-lhe a sua cama sempre arrumada, há muito, nem sei quanto. Apontei-lhe com um dedo e expliquei-lhe que lá encontraria o sossego que merece sem donas que menosprezam horas de merecido descanso, em nome da ordem. Escapuliu-se-me do colo, nem vi, e mais rápido do que vento aninhou-se no mesmíssimo local de onde eu a tinha tirado. Quando cheguei já se encontrava quente. E ronronava baixinho enquanto me cheirava o nariz. Se dúvida houvesse ter-se-ia dissipado, o género é feminino: nós quando precisamos, também ronronamos.   

sexta-feira, 24 de maio de 2013

dança

Pela janela entreaberta entra-me uma nesga de sol morno que inunda a sala de um ar clandestino que foge por entre as almofadas estendidas sem guarda ou preceito no sofá creme. Envolvo-me num lenço de seda que me acolhe em braços com a cortesia que só a seda e os homens conhecem ao detalhe da importância esquecida por quem não pára para pensar o assunto. O lenço deita-me o cheiro que eu conheço e que se aninha do meu corpo para dentro enquanto descalço os sapatos que abandono com o descuido próprio de quem espera ninguém. Sento-me no chão e procuro um programa que me distraia o espírito e me transporte em viagem que me leve dos dias corridos a historias contadas na primeira pessoa do singular. Cedo ao cansaço que me puxa para dentro do sono e durmo quase sossegada. Acordo num sonho misto de realidades inquietas onde te encontro de imediato na primeira esquina que cruzo. Paras-me, pedes-me que te escute e eu espreito-te com uns olhos que engolem a boca que mexes muito além daquilo que dizes. Insistes na importância da atenção que me fugiu para ti e me deixou num perfeito abandono, e olhas-me numa reprovação crescente que encostas aos gestos que te elevam a altivez a um tecto onde não chego nem em biquinhos dos pés. Insisto em alcançá-la, pequenina, estirando-me altaneira sobre o teu corpo que mantinhas uma distância impossível. - Desculpa-me, mas não ouvi nada, sussurrei-te ao ouvido. Pela primeira vez na nossa existência sinto que não me escutas. Continuas num ritmo frenético a dizer-me o que eu não oiço, só porque só olho e só quero os movimentos que fazes na minha frente, mais perto de mim do que o ar que nos toca insistente as tangentes da pele. De repente irrito-me, e dou-te um beijo. Colo-me no teu corpo e calo-te durante os segundos que antecedem o momento em que substituis o meu lenço pelos teus braços fortes que cedem à imposição da minha língua. Calaste-te, tinhas de calar-te, estava farta de só te ouvir. Dobramos a esquina que tinha ficado esquecida no caminho dos dois e entramos numa porta onde se lia a letras grandes coisíssima nenhuma que se percebesse. Não perdemos tempo, seguimos em frente e subimos as escadas sombrias que nos elevaram a uma casa velha e vazia com uma arca de roupa que sabíamos perfeitamente que estava ali. Sem lenço e sem braços enrolei-me num vestido rodado com folhos de renda e dancei sem fim: tu tinhas pedido. Acordei mais tarde na noite que me entrou fria pela janela da sala. Ouvi um barulho e abri os olhos ainda tontos das voltas do corpo. Mirei-te e balbuciei qualquer coisa a esperar que falasses mas tu ficaste calado. Deste-me um beijo e  roubaste-me o lenço que voou pela nesga levado pelo vento do Inverno que chegou muito cedo. Encosto-me rendida numa pausa da tua boca que me toca insistente da cabeça até aos pés e digo-te: só tu amor, só tu chegas tão tarde.             

quinta-feira, 23 de maio de 2013

bernardo e o padrasto das mãos nos bolsos

Havia muito tempo que ninguém me via e por isso fui-me guardando ainda mais no carapuço do casaco macilento que me tapava os cabelos. Olhava para o chão todos os dias e comecei a pensar que deitar-me nele era o melhor que eu fazia. Tinha dezasseis, maldita idade, muito embora em certos sítios me tenham dito que não é. É maldita, eu sei que é maldita, os meus dezasseis anos eram malditos e não conheço mais nenhuns. Os meus dezasseis anos cheiravam a vinho tinto entranhado no corpo do meu padrasto. Cheiravam a morte na pele da minha mãe viva e a leite azedo da boca da minha irmã pequenina. É tão linda a minha irmã pequenina. Tem uma pele cor de rosa e uma carne roliça que já não é minha, agora é só deles. Já tenho saudades do cheiro dela. E do riso dela e do sono dela, que espreitava tantas noites quando tudo dormia. Acho que também sinto falta do cheiro da Mariana. A Mariana dizia que gostava de mim e que eu era uma pessoa importante. Não sei, mas às vezes acho que ela mentia, outras quase acreditava. Acreditava quando ela me espreitava para dentro e me dava a mão e os olhos. Deixava de acreditar quando me diziam que eu não prestava para coisa nenhuma, é que se eu não prestava para coisa nenhuma também devia prestar para a Mariana que ainda para mais é doce. E diziam-me muitas vezes, era fazer-se noite a gritos e pontapés. A noite também era maldita, pelo menos a minha noite. A minha noite tinha uma cor demasiado negra, mesmo que houvesse lua, mesmo que houvesse estrelas, mesmo que houvesse céu. No chão não havia nada disso, havia lixo e eu confundia-me com ele em cada passinho miúdo que impelia ao corpo. Andava sempre muito devagarinho, nunca tinha pressa, pouca coisa me esperava e por isso não precisava de tê-la. As pessoas ralham porque correm, não percebem que se correm é porque querem correr para alguém que as quer esperar. No inicio eu também corria para a Mariana, mas agora já não me apetecia, andava cansado. Agora só me apetecia correr para a linha do comboio das dez da noite que seguia para Lisboa. Nunca falha, passa todos os dias e eu ouvi-o passar vezes demais. Estava farto disso, entrava-me o som pela cabeça em vez de me entrar o comboio pelo corpo para me matar de uma vez. Eu tinha algum medo, mas no fundo sabia que o fim tinha de ser este ou outro qualquer. Eu precisava de um fim, e este estava aqui tão perto. Então deitei-me e fiquei à espera até que o comboio chegasse à hora certa e me levasse com ele.
Agora andam todos a apanhar-me de joelhos no chão. Veio a polícia, os bombeiros, a minha mãe que chora e o meu padrasto que mete as mão nos bolsos. Não era filho, era enteado, diz ele. É verdade, eu não era filho, eu era enteado. Gostei muito de ver esta gente toda a correr para mim. Um corria para a minha perna, outro para o meu braço, outro para a minha cabeça. A minha mochila ficou inteirinha e só tenho mesmo pena de três coisas: de não cheirar mais a minha irmã, do meu casaco que me guardava do mundo e que matei comigo, e da minha mãe que morre devagarinho em vez de viver a correr para um lugar qualquer. Tu aí de mãos nos bolsos, bêbedo duma figa, também deves estar ligeiramente triste. Aquilo que te escrevi na carta é verdade, e por isso perdeste para sempre o teu passatempo favorito: a partir de hoje, nunca mais me chamas merda.

( É também por este fim, verídico e só mal baptizado porque assim me manda o respeito, que a funcionalidade é tão relativa como a vida e a obstinação de ideais quase tão besta como o padrasto das mãos nos bolsos.)


é andar...

Martim é o miúdo empreendedor que anda nas bocas do mundo. Ou nos ecrãs dos computadores, desde que em directo falou e disse, na televisão. O que me espanta não são miúdos capazes, há-os por aí em toda a parte, é abrir os olhos e querer vê-los. Não me espanta sequer a senhora erudita, que ninguém lhe tire o mérito, também as há e ainda bem, sou acérrima defensora da competência do género. O que me espanta verdadeiramente é uma certa espécie de inocência tardia, que sujeita quem supostamente sabe mais a levar troco, vindo directamente da adolescência que nos permite dizer ao mundo o que é o mundo, sem embaraços ou análises de consequências. Isto passa com a adultez, normalmente responsável também por uma certa cautela em lidar com a liberdade desmedida e já quase esquecida, não vá ela atingir-nos. Por vezes, quando nos pomos ao jeito, reavivam-nos a memória, ora pois. O que é branco é branco, não é descorado. E se houver quem não goste, temos pena, é andar. 

quarta-feira, 22 de maio de 2013

palavras

O gato espreguiça-se no sofá enquanto duas carraças se passeiam no pêlo amarelo torrado, quase tão torrado como o do sofá. Um velho eleva a bengala e chama nomes a alguém que o acode nas horas aflitas. Esse alguém faz-lhe festas na testa a tentar acalmá-lo, sempre em vão. Perdida, sua perdida, grita-lhe. Outro velho que mal anda, levanta-se e resolve o assunto com duas palavras de mestre: as palavras podem ser uma arma tão boa como uma bengala. Se não forem vãs, podem ser a melhor arma do mundo. 

( São, não me desdigam. Algumas dão-me vida, outras podem matar-me. O gato não enfeita o texto, era a personagem principal, e as carraças comiam-no em silêncio, achei por bem referi-las. Para quem não sabe, são um bicho pequenino que se aloja nos animais e pode ser perigoso para os humanos. Os humanos correm perigos que nem sonham nos sonhos mais monstros. Soubéssemos nós todos, devidamente esmiuçados, e morreríamos só do medo.)  

domingo, 19 de maio de 2013

perspectivas

Dados como estes, deveriam ser suficientes para haver mais preocupação com o assunto. A mim, e mais do que as declaradas, preocupam-me as encobertas, latentes em corpos mais ou menos conscientes da sua existência. A saúde mental é um dos principais indicadores da qualidade de vida, mas continua a ser descurada tal e qual era no tempo das nossas avós, quando vinho e trabalho excessivos justificavam tudo com justificações plausíveis. Hoje temos uma crise generalizada responsável por tristezas e por quase todos os distúrbios que moram dentro dos corpos, muitas das vezes há tempo demais. A avestruz esconde e cabeça mas nós somos ligeiramente piores. Escondemos só a parte de dentro e faz de conta que está tudo bem, até ao dia em que nos habituamos ao estado inveterado do é mesmo assim e por isso é deixar estar, altura em que só o muito pior é que passa a ser mau. Errado, nada mais errado: A vida não é nem pode ser um estado de tristeza crónica. 

sábado, 18 de maio de 2013

adenda ao post abaixo

Ia hoje cedo para o meu lugar, quando a antena 3 me brinda com peças do Teatro Rápido do Chiado. Lembrei-me que há muito não vou ao teatro, um outro esquecimento imperdoável, mas esse assunto largou-me logo ali ao escutar debaixo de água um diálogo de dois irmãos abandonados pela mãe. Eles gostavam do iogurte que ninguém lhes guardava no orfanato, aquele cujo sabor preferido é para nós, assim haja aquela pessoa que nos dá sempre o que mais gostamos. Também me lembro dos vigor de morango que a minha mãe me guardava. Eram quadrados e realmente pouco aveludados, mas na época, há muitos anos, não havia nada melhor. 

sexta-feira, 17 de maio de 2013

...

Este avanço, será eventualmente o melhor. Não demite a controvérsia, mas quantos casos não existiam já, não regulamentados? E quantas crianças não foram criadas, uma vida e até ser preciso, por uma mãe e uma avó? E isto citando apenas um dos inúmeros exemplos... É natural? Não, não é. É desejável? Pode ser. É que o desejável é um lar, feliz e sossegado. 

( Vejo o assunto mais como uma solução para a criança do que como um filho para o casal, e perdoem-me a franqueza. A vida são sempre opções, escolhas e consequências. No seguimento e no meu foco, impõe-se a efectiva remodelação da lei da adopção. Mais urgente do que qualquer outra.)

quinta-feira, 16 de maio de 2013

sarilho

Hoje por entre os papéis da secretária descobri-me num tom seríssimo, crescente até nos nós dos dedos que seguravam a bic cristal azul, continuo a gostar delas, para escrita escorreita não há nada melhor. Não preciso por norma de outras minuciosidades com detalhes insignificantes, chegam-me eu e ela e os óculos de massa preta e graduação significativa, que me transformam os olhos em qualquer coisa de útil e me deixam capaz para o dia. Não todos, claro, há dias e dias. Hoje por exemplo, não havia raminho de espiga naturalmente completo, malmequer, papoila (jamais dispensaria a papoila), oliveira, espiga, videira e alecrim, ou pássaro que desde ontem me debica o vidro da janela, que me fizessem nascer expressões no corpo. Ontem nada tinha sido assim, e foi agora, ainda ontem conforme disse. O animal primeiramente assustou-me, que seria a insistência intermitente cuja sonoridade vinha de longe, julgava eu. Depois percebi-o logo ali, enquanto o raminho do lado de dentro do vidro, levianamente mal posicionado, o atraia insistentemente, quase tanto como ele a meus olhos que o seguiam nos saltitos teimosos e débeis, como se a fragilidade se visse assim simplesmente. Foi um ver se te avias, é o que vos digo. Uma festa a três, festejada em coisíssima nenhuma para além de dois seres vivos e um ramo já morto, por tradições que acreditam na sorte sobre a qual não tenho fé alguma. Foi-me dado, atenção, nada de fabulações falaciosas de mim para mim mesma, era um dever aceitá-lo em sinal de gratidão. Eu a mim dou-me antes chocolates, tiras de milho, queijo ou outros acepipes salgadinhos, que se há coisa em que eu acredito piamente é no meu palato. 
Hoje, tudo igual. O raminho no mesmíssimo lugar, uns pingos de chuva que não molham ninguém e o passarito saltitante a bater na janela aberta aos dias. Nas camas dos quartos ainda havia quem dormisse. Nas ruas os candeeiros apagaram-se a horas e deixaram os dias alumiados sem sol. Havia luz, é o que nos basta. Eu aqui, sem tirar nem por, ou quase quase, num quase cá dentro movido a uma falta estapafúrdia, um grandessíssimo sarilho, num baptismo que agora me pareceu apropositado.

(Eu sei, eu sei, o ramo é atrás da porta e até para o ano. O meu está à janela e até que eu queira. Os acepipes são para o futebol, mas agora não se fala mais nisso. E o sarilho, esse, nem queiram saber.)         

quarta-feira, 15 de maio de 2013

maus agradecimentos

Raramente oiço os ensinamentos que me pespegam com vozes sabedoras daquilo que é "o certo". Estou-me nas tintas para as verdades absolutas vividas em corpos que não são o meu, oiço com o respeito que devo aos que me são próximos e me têm zelo, ainda que eu não queira o excesso. E não quero vezes sem conta, manias, oiço por aí dizer. Desde há muito que me convenci que as coisas acontecem e desenvolvem-se em mim num ritmo certo e sem demais impaciências, não havendo lugares a prévios avisos do que é certo ou errado, não há nada mais frágil no mundo do que a ferocidade das próprias certezas. Acolho as minhas, a meu tempo e a meu modo, e não trata esta aprendizagem nenhum desdém pequenino por consciências alheias. Valem o que valem para quem as sente no lugar exacto onde devem de ser sentidas: no corpo e no tempo de cada um. 

(Saber esperar é realmente uma virtude. Saber esperar pelos outros, é uma virtude ainda maior.)

...

A patologia é sempre um desvio à normalidade, mas não retira excelência ao visado. A patologia mental in extremis estende-se ao mundo e a cada Homem, desde o primeiro ao último que habite um mundo real. E era tão bom que a abrangência desta verdade, também. 

terça-feira, 14 de maio de 2013

(...)

O miúdo sobreviveu aos exames e eu sobrevivi a uma semana maior do que o meu corpo. O meu corpo não chegava só para ela, quanto mais para ele e para os exames dele, quanto mais para os quereres dele, quanto mais para os meus. Um dia esqueci-me de mim e tento sempre que isso não se repita, assim muito à séria, mas a verdade é que se repete todos os dias. Um engano assumidíssimo com custos elevados para os meus quereres, que quase morrem de desgosto, na consumpção do esquecimento. Quase que me morreu o meu querer sair para passear, o meu querer comprar livros para ler até de madrugada, isto porque deixei de querer madrugadas, passei antes a querer dormir sempre que posso e enquanto posso, em horas intercaladas, logo eu que aprecio completar ciclos sem interrupções e sem saltar preciosas fases de sono R.E.M. Passei a comprar só uns poucos para as também poucas férias, que deixaram de ser tranquilas para passarem a ter banhos de água fria de manhã cedo e assim de repente. Uiiii, não funciono nada bem com repentes que envolvam água fria e salpicos salgados com areia incluída. Ainda para mais de manhã cedo. Deveria, eu sei disso, mas que se faça, não funciono. Esses poucos no inicio eram lidos nos intervalos em que a sesta dele me dava uns minutos que eu aproveitava ao instante, poucos segundos até que as letras se começassem a misturar dentro dos olhos, nunca percebi, sei que a seguir adormecia sempre e acabava por não pensar seriamente o assunto. Calculo ser um qualquer fenómeno sem explicação exacta, mas que justifica por exemplo eu ter demorado uns meses a ler a máquina de fazer espanhóis, não mais me esqueço, um livro delicioso de Valter Hugo Mãe que sorvi com extrema parcimónia, não fosse acabar depressa. Sim, deve ter sido também por isso, quero que tenha sido também por isso. Também me esqueci de ir ao cinema e por isso perdi filmes premiados que nunca mais acabam. Às vezes tentava vê-los em DVD, numas noites que pareciam maiores do que as outras, mas que ia-se a ver e afinal tinham o mesmo tamanho. Tinham sempre todas o mesmíssimo tamanho, ou seja, muito pouco tempo. A esplanada foi outro dos esquecimentos. Soa mal vindo de uma senhora, eu sei, mas sabe bem e eu não sou dada a cuidados excessivos com a sonoridade das questões. Não preciso de grandes apanágios, mares ou imperiais com tremoços salgadinhos, nem sequer preciso de sol. Contento-me com a frescura matinal ou de final de dia, desde que o silêncio apareça pelas redondezas dos meus ouvidos e me deixe escutar pouca coisa ou coisa nenhuma, um som raríssimo na minha vida, mas possível, mesmo no meio de gente. Não me incomodam as folhas nem as conversas das senhoras do chá das cinco, mas gritos para que eu compre gelados ou jogue basquetebol sem cesto, são qualquer coisa capaz de me escrutinar o cérebro vezes sem conta e dias a fio. Não me lembro muito bem da cor do silêncio, mas deve ser branco. Há mais coisas que eu estou esquecida, mas vamos ficar por aqui, até porque não pretendo que achem que me lamento, não é o caso, eventualmente precisava de me esvair em letras no meio de horas que me fazem falta ao trabalho que se estendeu noite afora, malvado. Nunca quereria trocar os sentimentos pelos esquecimentos, é somente uma questão de retrospectiva. Os dias deveriam ter mais tempo, será eventualmente a misera verdade que concluo de tanta coisa, e prometo não falar mais no assunto. Umas obrigações a menos, incluindo ainda umas dedicações, que isto de me esquecer que existo levou-me com certeza bocados que não resistiram. Quereria eventualmente um tempo que me permitisse arrumar dentro dele os sentimentos e os esquecimentos que me fizeram falta e que de novo fariam, caso regressasse. É que nunca inverteria o ciclo de prioridades, vividas em sua época, e continuadas hoje em dia. Gostaria ainda que me deixassem dormir os vinte seis minutos que a NASA recomendou ainda ontem. Desculpem-me mas isto é importante, foi a NASA que disse. Vinte seis minutos por dia, nem que fossem só mais esses. Vinte seis minutos por dia, é o que mais falta me fazia, por volta das catorze, se houvesse o direito à opção. E se eu não dormisse lia um livro ou escutava o silêncio, ou então andava de bicicleta a pedais ou cheirava papoilas ao sol. Ou fazia qualquer outra coisa, que o tempo quanto mais há mais nos desaparece da frente dos olhos que o cobiçam por entre as frestas do tanto que queremos fazer. Podia também jogar basquetebol com o meu filho ou lamber um gelado de pau, enquanto ele me pergunta perguntas de história de Portugal e se indigna com a minha ignorância. E  podia ainda namorar, faz-me tanta falta tempo para namorar. Devagar e em silêncio.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

de volta

Olha, olha, quem voltou. Gosto, gosto muito que escrevas e que eu possa ler-te, dear T. De hoje em diante, de olhos bem abertos.

...

( até em separado, quanto mais. ide para longe, ide, que eu corro atrás. correr faz bem à saúde...)

domingo, 12 de maio de 2013

enfermeiro


O corpo físico não é um lugar bonito. Nem pensamos sobre isso quando nos embrulhamos em farpelas coloridas adornadas a pormenores cuidados com requinte e bom gosto, um sapato, um lenço ao pescoço ou na lapela do fato, o cabelo, um exterior nosso por direito que nos permite a existência enquanto ser social, eu aqui, vocês daí, a pele cobre o que ninguém precisa ver. Raramente nos lembramos do que nos escorre cá dentro. Nunca perdemos tempo a pensar no sangue que nos percorre as veias, na bílis que escapa do fígado, das mucosidades que nascem nos brônquios e nos excrementos que libertamos do corpo para que este funcione sem mazelas de maior cuidado, somos quase perfeitos, não haja dúvidas quanto a isso. Em funcionamento e em alheamento. Quando muito, consciencializamos as nossas próprias e as de quem nos está perto, com mais ou menos repugnâncias imiscuídas na panorâmica, por vezes demasiada para quem sente, depende de várias factores. Eu, por exemplo, já vi muito boa gente fugir com os olhos e com o resto ao doente que vomita sangue, ao que tomba numa morte que se vê chegar a olho nu, ao que deita da fralda um cheiro nauseabundo, como se a podridão em vida fosse possível. E é, eventualmente limites da perfeição. É essa a realidade, mas nem todos podem com ela. Não por falta de mérito, mas só porque não somos todos iguais. Eles podem. Eles desapossam-se da segurança e integridade do self para deitarem a mão à desgraça, para cuidar feridas, para limpar corpos, para acariciar peles empestadas de degenerações, bactérias e outras moléstias que nos podem desfazer aos bocados num par de horas. E para dar caminho aos corpos que não aguentam e morrem no caminho. É por isso que o dia deles me faz tanto sentido. Porque não existem muitas profissões onde a capacidade de entrega vá além do razoável. É por isso também que me repugna o desvalor que lhes dão, como se fosse pouco a integridade que repartem por toda a gente que dela precisa. Os menos bons não serão para aqui chamados, haverão, como em qualquer profissão. Mas os bons, esses de que falo, merecem muito mais do que um dia. Merecem um reconhecimento efectivo em diversos domínios, porque são grandes enquanto pessoas e pequenos enquanto classe. O mundo gira ao contrário, mas oxalá haja sempre um para nos socorrer na aflição.

( e um sorriso, muito especial, à enfermeira do meu coração.)

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Os romeiros amontoam-se nas madrugadas desassossegadas do País, é cedo e o treze está à porta, no mês cinco do calendário, é preciso chegar antetempo. Chegarão? Até hoje, nunca consegui perceber de forma concreta a minha fé, impunha-se, ainda que trate invisibilidades. Nem mesmo quando a minha avó me trauteava a história dos pastorinhos, que tinham visto com os olhos o que mais ninguém viu. Acende-se quando calha, vinda de incertezas que esperam respostas viáveis pouco explicadas em lugares terrenos, como por exemplo os peregrinos que percorrem distâncias impossíveis em cima de dois pés calejados e coxos, para rezarem terços, novenas, encomendarem trintários ou só orarem a Nossa Senhora, o que não é nada pouco, convenhamos. Haverá o que os mova, e não será somente vontade. Já os vi a chegar em romaria cansada e inquieta, enquanto chovia água fresca nas trovoadas de Maio, e para que à noite se acendessem velas que alumiam caminhos, santos e almas, e mais tudo o que se quiser alumiar. Não há chuva que mate a luz. Olho-os normalmente com uma distância que me permite ver a fé que paira, que talvez não visse tão claramente, se estivesse crente apenas nos santos. Assim, e na minha vasta fé, creio numa superioridade que me justifica o mundo. Jamais lhe chamaria alienação, a fé enquanto entidade nunca nos tirará o que quer que seja, isso são más línguas. Pelo contrário, dá-nos o que nos faz falta, no preciso momento em que precisamos de explicar, de acreditar, de compreender, de justificar. 

quarta-feira, 8 de maio de 2013

artes

Hoje encontrei dois namorados na escada do prédio. Ele falava. Ela sacudia-o enquanto ria e saracoteava os cabelos compridos, que lhe tapavam os olhos. As pernas estavam visíveis debaixo de uns calções muito curtos, deveremos esconder apenas o que não precisa de ser visto. Abrandaram quando me viram, mas ainda assim percebi perfeitamente a insistência dele e o evitamento dela. Haverão pouquíssimas outras coisas que caracterizem tão afincadamente cada um dos géneros. Juntando ainda no feminino, a plena consciência do efeito da graça esquiva e sorridente, numa astúcia precoce. Ser mulher, é toda uma arte.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

amore


(Quando me agarraste no queixo, começaste a tirar-me tamanho. Simplesmente quem sente amor não está  inteiro, e nem nunca está só. Ninguém respira como se nada fosse, ninguém vive como se não fizesse parte, ninguém anda como se anda quando não se é de ninguém. Não se acorda com os mesmos olhos, nem se adormece com os mesmos medos, e a liberdade da qual se fala são sempre só palavras. Quanto mais sentimos mais provimos, e o constructo do discurso que parece soar correcto, anuncia-se só em bocas, sabedoras de que assim não é: vaidosas, mentirosas, marias vão com as outras. Quando perdemos, ganhamos, e tudo se opera no mesmíssimo compasso. É por isso que o mundo funciona e que o amor vale o que vale: por pequenos que fiquemos, tornamo-nos sempre maiores; e inteiros.)

Oiçam Sakamoto, espreitem o mar e sintam, andem. Palavras, levas o vento, e eu ando pouco nessa.

domingo, 5 de maio de 2013

filhos

Um dia nasceu-me um filho. Cresceu cá dentro e prosseguiu cá fora, mas como se continuasse em mim, no espaço do corpo. Falou, andou, disse mãe e disse não, ganhou forma enquanto pessoa, mas a verdade é que será sempre meu. Ninguém consegue idear um filho antes de ser mãe. Ninguém imagina a dicotomia entre a integridade e o desespero, que nos ganha forma no corpo no exacto momento em que os sentimos, antes disso até. A minha mãe dizia-me coisas que eu ainda não sabia e ela já. Soavam-me só, o que convenhamos, vale o que vale e não vale tudo. Palavras belas tem o dicionário aos molhos, mas o corpo, esse é que sabe. Nos olhos, nos gestos, nos sítios que ninguém vê e nos espaços livres, que nos separam as distâncias que nos ligam: para sempre. 

sábado, 4 de maio de 2013

(...)

(Franchement, como fui capaz de esquecer as pérolas?) 

sexta-feira, 3 de maio de 2013

tarot

Hoje um taróloga atribuiu-me uma carta muito próspera, aproxima-se uma semana maravilhosa, com frescura e perfume de flores. Um dia destes, ainda me vou conseguir entregar a presciências. Será um descanso merecido, numa atribuição que sempre justifica alegrias ou desgraças, sem que o nosso intento e capacidade sirvam para coisa nenhuma. Nesse dia tudo será uma questão de sorte, azar e destino, nada mais externo, e poderei finalmente deitar-me a dormir a sesta sossegada. É que estou mesmo precisada. 

quarta-feira, 1 de maio de 2013

pressa

Há dias em que me sento à espera porque os lugares de pé estão demasiado cheios de gente com pressa. Como naquela fila do centro de saúde que parece fervilhar na frente da moça que dedilha teclas calmamente, sem se incomodar nada com os atropelos dos dedos impacientes de pessoas que guardam uma senha com o número que chegaria à mesmíssima velocidade, caso estivessem sentadas e quietas num banco a ler o jornal. Todos os dias há notícias de interesse nacional, há que aproveitar e cultivar o saber que não ocupa lugar. Admito, há alturas em que me encontro quase igual. Fico muitas vezes da maneira errada consciente disso, o que não me revela propriamente fraqueza, antes natureza, eventualmente descompasso. Brandamente falando, continua aprendizagem. Usualmente, imponho-me esforço de contrariedade, sei ser o que é certo fazer. Acendo uma voz de comando, respiro devagar a ver se obedeço, bebo um gole de água e fecho os olhos, tudo com o claro objectivo de consciencializar que quando as coisas me são externas, não me pertencem o suficiente. Pouca coisa me pertence o suficiente para que a influa o bastante, e talvez também por isso eu goste tanto de escrever. Usualmente, nem gosto de pressas. Sinto-as muito quando mas tentam impor. Ainda agora, por exemplo, enquanto engolia colheres de arroz doce, alguém ousava incomodar-me insistentemente. Um pedido expresso de vinho tinto alentejano, eu percebo o desespero, não fossem as garrafas ficar perdidas algures em local distante e a refeição tivesse de se fazer acompanhar de água mineral, poderia lá ser uma tal coisa. Pedi desculpa com educação e ausentei-me para longe. Não muito, o suficiente, por vezes o pouco é exactamente o quanto me basta. Sentei-me no banco da rua, com uma vista soberba para as videiras do lado, respirei o fresco da mata que se estende lá atrás e engoli uma colher de cada vez, demoradamente. No meio do mundo exterior, alvíssaras, ainda há coisas que me pertencem o suficiente para que eu possa mandar nelas. Nunca na vida deixo fugir uma tacinha de barro, se esta contiver arroz doce lá dentro, e nem que à volta haja pressa. Até porque pressa e vagar não são mais do que constructos ideados, coisa pouca, quando comparados com o paladar forte e encorpado do arroz doce.  

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