quinta-feira, 23 de maio de 2013

bernardo e o padrasto das mãos nos bolsos

Havia muito tempo que ninguém me via e por isso fui-me guardando ainda mais no carapuço do casaco macilento que me tapava os cabelos. Olhava para o chão todos os dias e comecei a pensar que deitar-me nele era o melhor que eu fazia. Tinha dezasseis, maldita idade, muito embora em certos sítios me tenham dito que não é. É maldita, eu sei que é maldita, os meus dezasseis anos eram malditos e não conheço mais nenhuns. Os meus dezasseis anos cheiravam a vinho tinto entranhado no corpo do meu padrasto. Cheiravam a morte na pele da minha mãe viva e a leite azedo da boca da minha irmã pequenina. É tão linda a minha irmã pequenina. Tem uma pele cor de rosa e uma carne roliça que já não é minha, agora é só deles. Já tenho saudades do cheiro dela. E do riso dela e do sono dela, que espreitava tantas noites quando tudo dormia. Acho que também sinto falta do cheiro da Mariana. A Mariana dizia que gostava de mim e que eu era uma pessoa importante. Não sei, mas às vezes acho que ela mentia, outras quase acreditava. Acreditava quando ela me espreitava para dentro e me dava a mão e os olhos. Deixava de acreditar quando me diziam que eu não prestava para coisa nenhuma, é que se eu não prestava para coisa nenhuma também devia prestar para a Mariana que ainda para mais é doce. E diziam-me muitas vezes, era fazer-se noite a gritos e pontapés. A noite também era maldita, pelo menos a minha noite. A minha noite tinha uma cor demasiado negra, mesmo que houvesse lua, mesmo que houvesse estrelas, mesmo que houvesse céu. No chão não havia nada disso, havia lixo e eu confundia-me com ele em cada passinho miúdo que impelia ao corpo. Andava sempre muito devagarinho, nunca tinha pressa, pouca coisa me esperava e por isso não precisava de tê-la. As pessoas ralham porque correm, não percebem que se correm é porque querem correr para alguém que as quer esperar. No inicio eu também corria para a Mariana, mas agora já não me apetecia, andava cansado. Agora só me apetecia correr para a linha do comboio das dez da noite que seguia para Lisboa. Nunca falha, passa todos os dias e eu ouvi-o passar vezes demais. Estava farto disso, entrava-me o som pela cabeça em vez de me entrar o comboio pelo corpo para me matar de uma vez. Eu tinha algum medo, mas no fundo sabia que o fim tinha de ser este ou outro qualquer. Eu precisava de um fim, e este estava aqui tão perto. Então deitei-me e fiquei à espera até que o comboio chegasse à hora certa e me levasse com ele.
Agora andam todos a apanhar-me de joelhos no chão. Veio a polícia, os bombeiros, a minha mãe que chora e o meu padrasto que mete as mão nos bolsos. Não era filho, era enteado, diz ele. É verdade, eu não era filho, eu era enteado. Gostei muito de ver esta gente toda a correr para mim. Um corria para a minha perna, outro para o meu braço, outro para a minha cabeça. A minha mochila ficou inteirinha e só tenho mesmo pena de três coisas: de não cheirar mais a minha irmã, do meu casaco que me guardava do mundo e que matei comigo, e da minha mãe que morre devagarinho em vez de viver a correr para um lugar qualquer. Tu aí de mãos nos bolsos, bêbedo duma figa, também deves estar ligeiramente triste. Aquilo que te escrevi na carta é verdade, e por isso perdeste para sempre o teu passatempo favorito: a partir de hoje, nunca mais me chamas merda.

( É também por este fim, verídico e só mal baptizado porque assim me manda o respeito, que a funcionalidade é tão relativa como a vida e a obstinação de ideais quase tão besta como o padrasto das mãos nos bolsos.)


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