Gosto muito da revelação de certas pessoas, quando, num estado de um tanto ou quanto desespero, utilizam artimanhas para ver se atingem determinado sitio que pretendem, do qual estão a anos luz, mas que querem tanto. Já se tentaram outras coisas, é certo, mas na sua falência, vamos para estas. Nem bem percebem, as pobres, que ao invés de se enquadrarem num patamar mais elevado da existência, capaz, quiçá, de os colocar numa imagem de coerência e dignidade, se deixam escorrer de mansinho, quase invisíveis, ou então, pior do que isso, muito visíveis, mas muito ridículas. Vestem um fato com uma gravata apropriada para a ocasião, põem-se ao lado de quem sabem que alegra a fotografia, ou, que no mínimo, a coloca no âmbito das fotos bem vistas e harmoniosas, dizem-se umas frases feitas para a imprensa, daquelas socialmente aceites e que se querem ouvir, e espera-se pelo milagre. Tudo isto, envolvidas numa áurea muito ténue, que de resto, nem têm outra, e totalmente reveladora de um carácter frágil, de fácil deglutição por algum ser, que independentemente da competência, os engole num só trago. Porque sim, existe por aí quem saiba engolir pessoas, que as cheira ao longe para lhe estudar os handicaps, com os quais lida com uma mestria de quem já evoluiu. Pena que por vezes não se evolua em competência, mas enfim, não se pode ser bom em tudo. Estes últimos, revelam acima de tudo, uma expressa confiança nas suas capacidades. Sejam elas fortes e coesas, sejam elas umas míseras ninharias que ali se encontram albergadas, mas que ainda assim, merecem um lugar de destaque, como se de uma mais valia séria se tratassem, pelo que nos chegam com um discurso certinho e muito coeso, que seria quase credível, se sofrêssemos de amnésia. São bem vendidas, poderemos dizer. Claro que o que apregoo como alguma alternativa, nem seria este tipo de gente, e chego até a admitir, a possibilidade de existência de alguma boa vontade mais genuína, no que se quer vender, sem saber como. Mas ainda assim, e perante um País de gente com opinião, resta-me concluir que, ou se desenvolvem determinadas nuances, ou então o estado de um aquém morno e sem graça, poderá não desaparecer.
O que me confunde, confesso, é que ninguém apresente a estas criaturas frágeis, um qualquer outro caminho. Um projecto alternativo e menos quebradiço, que lhe eleve a presença a um patamar mais jeitosinho. É possível amigos, acreditem.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
sábado, 30 de abril de 2011
sexta-feira, 29 de abril de 2011
Azinheiras

Lá fora as azinheiras atropelam-se umas nas outras, nem bem se percebe a quem pertence o bocado do ar onde crescem, que nascem seguidinhas, em ordem e cientes do seu lugar, para depois se açambarcarem nuns ramos compridos e usurpadores de espaço, originadores de enfeixamentos sem fim, que se vêm ao de longe, num convívio ameno e próximo, e em perfeita sintonia. As folhas, muito secas e pequeninas, alternam entre uma cor verde mimosa, com uns tons mais a dar para o intermédio, para acabarem naquele amarelo seco, de quem vive em busca de uma água que pouco chega, e debaixo de um sol intenso e agreste. Por vezes têm dias destes, uma delicia, que conseguem beber umas pingas da chuva tímida, enquanto o sol lhes vai dourando as entranhas, devagarinho e sem forças demasiadas. Não que este as não tenha, nada disso. Deixa-as porém no descanso, apenas e só, mas capazes de acordar em prontidão, sob um qualquer chamamento divino. Chegam a temê-lo. Nos meses de maior calor, de ora em diante portanto, têm dias penosos e longos, que começam muito cedo e acabam muito tarde, quase não permitindo à noite inunda-las de frescor, motivo mais do que suficiente para iniciarem o dia já murchas e secas, pobres delas.
Por ali, e no meio de um feno alto e ressequido, as vacas malhadas pastam um pasto sem cor e sem cheiro, muito pouco dado a viços, enquanto se acolhem a preceito por debaixo daqueles árvores majestosas.
Por ali, e no meio de um feno alto e ressequido, as vacas malhadas pastam um pasto sem cor e sem cheiro, muito pouco dado a viços, enquanto se acolhem a preceito por debaixo daqueles árvores majestosas.
Na passagem, vejo tudo aquilo. Por momentos, sinto uma vontade estranha de me albergar também por ali, que as julgo poderosas, dada a grandiosidade com que se impõem, numa capa construída por mantos amalgamados, guardadores da chuva e do sol, compostos por milhões de folhas coloridas e espigosas. Apesar disso, segui.
quarta-feira, 27 de abril de 2011
Da produtividade. Uma pequena consideração...
Salários indexados à produtividade, parecer-me-ia uma catástrofe justa, se é que o termo tem algum sentido. Não considerando, obviamente, situações dignas de impedimento real, em que o trabalho não pudesse efectivamente ser realizado, encontrar-nos-íamos numa justiça, à qual duvido que conseguíssemos sobreviver. Levo ao extremo a ideia, que apenas se falou, segundo ouvi, relativamente aos magistrados. Parece-me tão deliciosamente coerente, que quase me apetecia generaliza-la. Com toda a inerência envolvente, da clareza dos métodos necessários para que o procedimento se efectuasse em correcção suficiente, facto que nos levantaria por certo outros sérios problemas, que não irei por ora abordar. Sei-a porém impossível, que num instante nos instalaria num caos, perante a amalgama de gente que trabalha sem produzir, ou seja, que ocupa determinados lugares, aos quais tem um estranho direito, sem obrigação consequente. Tudo isto, em diversas vertentes, incluindo cargos políticos.
E seríamos nós sobreviventes a tal provação? Tornar-nos-íamos mais competentes? Ou entraríamos no tal caos de revolta, de quem muito quer, mas pouco faz para tal, emergindo num ciclo vicioso de reivindicação crónico, totalmente condizente com o nosso povo, salvando, claro, as devidas excepções?
terça-feira, 26 de abril de 2011
Elizabete
Todos os Domingos ia à missa. Vestia a sua melhor saia, limpava devidamente os óculos que segurava na ponta do nariz, pegava no seu livro de cânticos de capa verde escura, e fazia o caminho a pé, pelo carreirinho talhado na beira da estranha, ao lado de sua mãe, também ela fiel devota. Mal entravam na igreja, e ainda o prior não tinha chegado ao altar, e já as suas mãos de suserana acendiam as velas que iluminavam a Santíssima Trindade, Santa veladora da terra, levada todos os anos enfeitada, em procissão, na festa da aldeia. À medida que o cortejo passava, as gentes iam depositando em seu manto notas em sinal de devoção, dádivas de oiro, ou outros bens doados à igreja, que alguma bênção deu, ou então, que algum milagre devia. Ambos serviam para louvar à Santa. Logo após a entrada do pároco, davam-se inicio às cerimónias religiosas, devidamente seguidas a rigor pelo missal, que utilizava apenas a jeito de preceito, que de tanta missa ter rezado, e já as palavras lhe saiam da boca no lugar devido, nem antes, nem depois da hora. Uma proeza.
Lá dentro do seu humilde ser, pedia sempre a mesma coisa. Não era de agora, já vinha de há muito, que desde cedo percebeu que a sua figura desajeitada, nem por isso jogava em seu abono, e que o seu exagerado tamanho, afugentavam algum partido mais tímido que pudesse deitar-lhe um olho, ainda que pouco interessado. O tempo passou, e a missa, nem por isso dava proveito, ao ponto de chegar a pôr em causa, vejam só, a credulidade divina, coisa essa que lhe tinha sido ensinada desde sempre, pelo que tal sentimento a deixou sorumbática, zangada consigo mesma, como poderia pensar tal coisa?
E então sossegou. Encaixou os seus sonhos, que ainda que ténues, lhe povoavam a mente, num compartimento escondido e nada acessível, e passou a visita-los apenas uma vez por mês, deixando os restante dias entregues à realidade, que a açambarcou com uma força de brutidade, contra a qual pouco ou nada podia.
Um dia, porém, algo mudou. Surgiu, donde menos se esperava, um amor para os seus dias. Primeiro, nem bem soube o que lhe fazer, que o desajeito era coisa séria, mas depois, devagarinho, tomou-lhe o gosto e agarrou-o junto a si, derrubando de uma vez a realidade cinzenta, e trazendo ao de cima a caixa dos sonhos. Num instante da vida, que mais não foi do que isso, deu à luz dois, e passou de uma a quatro.
Aos Domingos, continua a ir à missa. Pelo que reza agora, não sei.
Lá dentro do seu humilde ser, pedia sempre a mesma coisa. Não era de agora, já vinha de há muito, que desde cedo percebeu que a sua figura desajeitada, nem por isso jogava em seu abono, e que o seu exagerado tamanho, afugentavam algum partido mais tímido que pudesse deitar-lhe um olho, ainda que pouco interessado. O tempo passou, e a missa, nem por isso dava proveito, ao ponto de chegar a pôr em causa, vejam só, a credulidade divina, coisa essa que lhe tinha sido ensinada desde sempre, pelo que tal sentimento a deixou sorumbática, zangada consigo mesma, como poderia pensar tal coisa?
E então sossegou. Encaixou os seus sonhos, que ainda que ténues, lhe povoavam a mente, num compartimento escondido e nada acessível, e passou a visita-los apenas uma vez por mês, deixando os restante dias entregues à realidade, que a açambarcou com uma força de brutidade, contra a qual pouco ou nada podia.
Um dia, porém, algo mudou. Surgiu, donde menos se esperava, um amor para os seus dias. Primeiro, nem bem soube o que lhe fazer, que o desajeito era coisa séria, mas depois, devagarinho, tomou-lhe o gosto e agarrou-o junto a si, derrubando de uma vez a realidade cinzenta, e trazendo ao de cima a caixa dos sonhos. Num instante da vida, que mais não foi do que isso, deu à luz dois, e passou de uma a quatro.
Aos Domingos, continua a ir à missa. Pelo que reza agora, não sei.
Lufada de ar fresco

No meio da crise, do défice e dos cortes no orçamento, surge o casamento. Lembro-me perfeitamente do dia em que a mãe do príncipe se casou com o pai, numa cerimónia grandiosa, à qual assisti em companhia de Dona Maria Carmina, minha avó, uma apaixonada por estas histórias. Também ela tem uma, de plebeia é certo, mas que ainda assim, não deixa de ser uma história de amor, válida por si só. Recordo especialmente o vestido, de cauda compridíssima, e o rosto sereno e calmo de Diana. Hoje, nem me perco em buscas rebuscadas de uniões do género. Não me causam curiosidade ou cobiça, respeito-as apenas, como a todas as outras. Não deixa porém de ser essa a notícia que anima os jornais. Não deixa de ser um conto de príncipes e de princesas. Não deixa de ser um mundo à parte, ao qual gostamos, de quando em vez, de deitar um olho, quanto mais não seja para ver o vestido da noiva, ou as entradas, já notáveis, do noivo. Escolheram bem o dia. A não ser isso, a nossa imprensa estaria totalmente entregue a umas letras pretas, que nos dariam números sem graça, ao lado de caras feias e carrancudas. Arrisco dizer que temos mais para dar, embora possa nem parecer. Nos entretantos, que venha o casamento real, a matizar a desgraça e a salpicar-nos de cor. Precisamos tanto, mas tanto dela.
A taverna
Na taverna, coisa antiga mas ainda existente em diversos escaninhos da verdadeira aldeia portuguesa, os homens bebericam cervejas com tremoços e carapau frito, num acepipe próprio de quem gosta do petisco, mas que nem se aventura em grandes abundâncias. O tempo é de crise bem sei, mas ainda assim, e na hora do pitéu, que até pode ser raro por mor da dita, quem me tira uma ameijoa à bulhão pato regada com branco, tira-me tudo. Mas aceito e entendo quem de outros gostos se mantém, que cada um reserva a si o direito de escolher o que lhe faz lamber os beiços, luzir o olho ou estalar a língua. Poderão até julgar-me imprudente em tal comparação cometer, como se cerveja e tremoço, e ameijoa com vinho, fossem dignos de comparação, coisa que poderei ripostar docemente, que vai-se a ver, e ainda os julgo com razão. O melhor, será pois nem ripostar o que quer que seja, e avançar. Por detrás do balcão de mármore sarapintado a negro, uma mulher magra de cabelo ensebado, atende os homens que se ali chegam numa prontidão de serviçal, e numa simpatia altiva, não vá algum toma-la de abuso e tentar algum dito mais atrevido. Nestas coisas do avio de taverna é necessária alguma prudência, que vai-se a ver e num instante, os homens falam do que nem deveriam, e a pobre ali se fica, envergonhada e entregue à sua sorte, de ser sabedora de vidas alheias com pormenores que dispensava de todo, se tal coisa pudesse. Não pode, que a afastar-se deixaria o balcão sem guarda e atenção, motivo esse mais do que suficiente para que seu patrão a pusesse fora, e a tal luxo não se pode dar. Pelo que todas as manhãs ali ferra às oito em ponto, com a função de servir bem quem dali se abeirar, e abeiram-se muitos, fiquem disso a saber. Enquanto retira tremoços do balde de plástico tapado a água e a sal, abana os cabelos que lhe tapam os olhos com uns sacudires de esgar, deixando transparecer um estado de inquietude interno considerável, mascarado para quase todos. Se pudesse, fugia dali. Atrás de si, lá dentro da cozinha, a filha dos donos vigia-lhe os passos. Chega a jurar que a dita lhos sabe contadinhos, tal a atenção com que a olha fixamente, incumbida da tarefa de aprender como se faz. Alta, muito cheia e possante, tem ar de quem ambiciona aquilo tudo, e o que lhe escapa dos olhos é a inveja da distância que tal sítio lhe apresenta. Um tormento. Ainda não tem idade que chegue, diz-lhe o pai, que a manda apenas ver. Um dia porém vai ter. Todos aqueles olharão apenas e só para ela.
segunda-feira, 25 de abril de 2011
domingo, 24 de abril de 2011
Das palavras
Chegas-te ao amanhecer. O dia, no lusco fusco da aurora, ainda nem bem tinha nascido, mas tu, impaciente, deixaste a espera e vieste, quase como se, e se a tal agrura te sujeitasses, pudesses desfalecer em desespero, que cada hora, cada minuto ou segundo, pareciam uma vida durar. Nos teus olhos, muito pequenos e expressivos, li umas tantas coisas que nem me querias dizer, tal qual como se as letras por eles passassem, e me construíssem frases certinhas, arrumadas umas nas outras, num sentido de crença tal, que bem podia tua boca dizer-me o contrário, utilizando para isso todas as palavras do mundo, que nunca os desmentiria, a pobre. Julga-los fracos, bem sei. Julgas ainda as palavras fortes, como se as verdadeiras, as que te saem da boca proferidas a intento, fossem muito mais poderosas do que as outras, que te escapam dos poros, quer tu queiras, quer não queiras, e mesmo que as arrumes com força, julgando por isso que as negas. Ignorância essa, à qual nos sujeitamos por vezes. Pudéssemos nós controlar o que nem dizemos, pudéssemos nós engendrar em nosso corpo tamanhos segredos, e constituiríamos um poço sem fundo e sem fim, onde o acesso estaria vedado à envolta com umas chaves tamanhas, entrouxadas num cadeado. Nada disso temos, se é que nem sabes. Dispomos talvez de algum aconchego, um arrumo interno que resguardamos em jeito de rigor, mas que vai-se a ver, e se esbanja de dentro, como um luz que nos sai de uma fresta, que poderemos tentar tapar, mas que não conseguiremos nunca expulsar totalmente.
Nem sei se muito se pouco tempo, que a relatividade das horas, é coisa para me turvar as ideias. Mas falas-te numa imensidão sem tamanho, coisas certas e com muito sentido. O teu corpo, pobre de ti, disse-me tudo às avessas.
Nem sei se muito se pouco tempo, que a relatividade das horas, é coisa para me turvar as ideias. Mas falas-te numa imensidão sem tamanho, coisas certas e com muito sentido. O teu corpo, pobre de ti, disse-me tudo às avessas.
...
Para além do marido, não tenho nada conta a Senhora que nos julga cheinhos de talento. Tinha portanto pena se a digna explodisse. Hoje, especialmente, parece-me em sérios riscos.
sexta-feira, 22 de abril de 2011
Namoro
Na soleira da porta, estende-se uma manta de trapicalho grossa e garrida. Ambos lá estão, num contraste calmo e doce, sob o olhar atento da que costura um nadica mais abaixo, uns botões já mais do que pregados. Os óculos na ponta do nariz, espreitam de quando em vez, que a visão falta-lhe é ao de perto, que assim, ao de longe, nada do que aqueles dois seres façam lhe passa despercebido, por entre uns olhos verdes esbugalhados e vigilantes. O muro onde se senta é feito de pedras, muito duras e incertas, coladas grosseiramente com um cimento cinzento. Um desconforto, suportado apenas porque não quer excessos de aproximação aos dois, não lhes permitindo porém, o desvelo da sua ausência. É exactamente aquele o sítio onde deve estar. Sabe-se lá o que poderia ocorrer, se ousasse sair dali, e seu marido atentasse a esse desleixo, capaz de motivar, quiçá, algo de sério, como um beijo ou outro que tal. Eles olham-se ternamente. Olhos nos olhos, mãos nas mãos ou em algum sítio perto, sempre à vista, enquanto juram amor eterno, e se deliciam com as fatias paridas que a mãe costureira fritou previamente, em óleo quente, polvilhadas de açúcar e canela. Gosto de fatias assim, feitas a gosto com casca rija e quebradiça, regadas a café forte. Na porta ao lado, a vizinha velha e desdentada, de lenço preto a afagar-lhe o pescoço, entra e sai em desespero. Não suporta os Domingos, dias de perdição. Logo pela manhã, a missa abençoa-lhe o corpo e a alma, para depois, à tardinha, sua porta se ver invadida por tamanho apego, coisa nunca antes vista, assim, sob a luz clara do sol, e os olhos todos de quem por lá passa. O namoro de seu tempo era feito à distância, ela dentro e ele fora, quer chovesse, quer fizesse sol, que o pobre a isso se sujeitava, por meia dúzia de ditos carinhosos e por uns acenos fracos e assustados. A entrada, estava-lhe guardada apenas para as proximidades do casório, não fosse alguma desgraça ocorrer, e a honra da moça ficar comprometida para todo o sempre. Quem mais a quereria? Quem mais a desposaria, após alguém já lhe ter cobiçado o corpo e nele se deleitado, com afagos como os que por ora vê pela fresta da porta? Uma vergonha, tem a dizer.
O dia finalmente escurece. A manta levanta-se, a costura acaba, os dois afasta-se. Dentro da casa ao lado, a velha aconchega o lenço ao pescoço, está frio. Pode por ora sossegar. Só para a semana, será Domingo outra vez.
O dia finalmente escurece. A manta levanta-se, a costura acaba, os dois afasta-se. Dentro da casa ao lado, a velha aconchega o lenço ao pescoço, está frio. Pode por ora sossegar. Só para a semana, será Domingo outra vez.
Do entremeio...
Tenho alturas em que os encaixo, outras porém, em que me apetece fugir-lhe até à exaustão, quase numa afronta, diria até, eu que nem sou dessas coisas. A carne hoje não se pode comer. As flores, levam-se na penumbra e enfeitam as campas, mesmo as que no resto do ano se deixam entregues, apenas e só, ao frio do mármore que as abraça. As velas, ainda que ténues, arrumam-se em potes vermelhos que as cobrem, e dão uma luz que ilumina os mortos, que nesta noite, especial, devem carecer dela como em nenhuma outra. No Domingo, como no dia 25 de um mês de Dezembro próximo, ido ou futuro, almoça-se em família, quase aguardando este pretexto, como se outros, nem fossem dias dignos de o serem, e o calendário nos ditasse o que fazer, num mando e desmando poderoso como só ele sabe ser. Nem que as julgue impróprias, que vai-se a ver e necessitamos delas, que ao senão já as teríamos banido de vez, e nos teríamos encaixado nos dias sob nossa própria vontade, sem data disto ou daquilo, incorrendo, quiçá, numa monotonia exacerbada e completamente intransponível. Ainda para mais, muitos destes, trazem de arrasto um descanso merecido, que se fica em casa, acorda-se tarde, bebe-se café amargo e comem-se torradas quentes, enquanto se escuta música de fundo e se olha os pássaros na varanda. Mas poderíamos nós aproveitar os outros, era isso, que também podem constituir pretexto não raras vezes esquecido, para unir ao almoço só porque apetece. Dispensar-se-iam amêndoas e rabanadas, claro, que nos alimentaríamos de laços, capazes de nos fazer as vezes da calda de açúcar. O vinho, poderia vir moderado, tinto, forte e encorpado, decantado a rigor por quem a tal preceito se dedicasse. Eu, ficaria na cozinha, e faria um arroz de pato com mel. Chego a julgar, habitar um qualquer mundo estranho, celebrado à hora marcada, com especial valor às datas da vinda e às datas da ida. Nós, que nem bem sabemos, de onde vimos e para onde vamos, e que nos entremeios por cá vivemos.
quinta-feira, 21 de abril de 2011
quarta-feira, 20 de abril de 2011
Do Chico Espertísmo
Somos um Pais de Chicos Espertos. Uns Chicos meio atabalhoados, o que nos encaixa na perfeição, que vai-se a ver e no fim, quando o cerco aperta, ficamos nas lonas e gritamos Ó tio Ó tio de forma patética e ignorante, à espera que nos peguem ao colo e nos salvem da merda onde nós próprios nos encaixamos ( ufa, escrevi merda. Aplaudam, pff, que não é todos os dias). Nem se trata de fenómeno direccionado, utilizado em prol de nos socorrer em momentos de aflição, mas sim de uma postura diária, já um hábito, que chego a julgar, cometermos até quando não precisamos dele, tal é a naturalidade com que o assumimos. Deve ter-se entranhado na pele, é o que é, fazendo já parte até, quiçá, do nosso código genético, fiel apropriador de características nas quais nos especializamos, tal e qual um dente que surge ou desaparece, conforme a necessidade. Ele é nos serviços públicos, onde tentamos passar à frente na fila com a utilização de um conhecimento ganho, daqueles mesmo muito bons, capaz de nos fazer aquele favor, naquela hora, naquele sítio exacto. Ele é na boa da cunha, que vem mesmo a calhar e que pode ultrapassar aqueles trâmites legais que são um aborrecimento do pior, do envia curriculum, vai a entrevista, enfim, uma canseira, quando se pode ir directo ao amigo de fulano, que por sua vez conhece sicrano, que podemos nem sequer saber muito bem quem é, coisa que nem importa nada, pois pode ser que ainda assim nos salve a pele. Ele é na fuga aos impostos, que agora são mais do que muitos, mas que quando eram menos também era bom fugir deles, que pagar ao estado e morrer, quanto mais tarde melhor. Ele é abusar de regalias como atestados ou outros que tais, que se solicitam ao Médico em caso de necessidade de férias não previstas, mas às quais nós temos mesmo de ir, e que por isso, a chegada fulminante de uma dor de garganta cortante vai dar um jeito fenomenal. Ele é o baldarmos-nos ao nosso trabalho, que aquilo lá há sempre quem pegue, e se nos pudermos encostar um bocadinho naquela bacana da Felisberta, ninguém dá por nada, ela faz, nós passeamos no facebook e no fim assinamos. Um mimo. Ele é no suborno detestável, do toma lá um almoço para me perdoares a multa das normas de higiene do restaurante, e se quiseres, para o mês que vem, almoçamos outra vez, que sempre fica mais em conta do que as multas pesadas que passarias se cá pusesses os pés mesmo a sério, e não assim, a brincar e à vontadinha.
E depois, o ciclo constrói-se e torna-se de tal forma vicioso, que o desgraçado que queira respeitar a sociedade e usar de cidadania, vê-se na necessidade de esperar duas horas no centro de saúde enquanto o Chico Esperto lhe passa à frente. E respeita a obrigação de pôr o lixo no caixote, enquanto pisa a casca da banana alheia e bate com o rabo no chão. E vê-se ainda na necessidade de lavar o sapato que pisou o cagalhoto do cão do vizinho, enquanto leva o do seu dentro do saco transportado para o efeito. E depois começa a pensar, no que é que ganha com tanta canseira e respeito ao próximo, senão uma noite sossegada, que vai-se a ver, e já nem é tão sossegada assim, que a injustiça às vezes, já invade as entranhas, e já faz questionar as acções. E pensa ainda, e aqui muito, como explicar ao filho que ele tem de cumprir quando ninguém cumpre, que ele tem de esperar quando ninguém espera, que ele tem de pagar, quando ninguém paga, e que ele tem de ser o João, quando o resto do País se chama Chico e é Esperto. Porra pá. Acho que não sei andar nisto.
E depois, o ciclo constrói-se e torna-se de tal forma vicioso, que o desgraçado que queira respeitar a sociedade e usar de cidadania, vê-se na necessidade de esperar duas horas no centro de saúde enquanto o Chico Esperto lhe passa à frente. E respeita a obrigação de pôr o lixo no caixote, enquanto pisa a casca da banana alheia e bate com o rabo no chão. E vê-se ainda na necessidade de lavar o sapato que pisou o cagalhoto do cão do vizinho, enquanto leva o do seu dentro do saco transportado para o efeito. E depois começa a pensar, no que é que ganha com tanta canseira e respeito ao próximo, senão uma noite sossegada, que vai-se a ver, e já nem é tão sossegada assim, que a injustiça às vezes, já invade as entranhas, e já faz questionar as acções. E pensa ainda, e aqui muito, como explicar ao filho que ele tem de cumprir quando ninguém cumpre, que ele tem de esperar quando ninguém espera, que ele tem de pagar, quando ninguém paga, e que ele tem de ser o João, quando o resto do País se chama Chico e é Esperto. Porra pá. Acho que não sei andar nisto.
Amêndoas doces

( Vitrine de Páscoa decorada por Pierre Hermé, em Paris)
Gosto de cestas de amêndoas doces. Hoje, adoro as de chocolate de leite, mas já preferi as de açúcar em forma de morangos, e com um ligeiro sabor a licor.
Posso nem entrar, posso até ficar do lado de fora do vidro, como resguardo efectivo a alguma tentação diabólica que me leve à aquisições de tal gulodice, para ingestão compulsiva imediata. Mas se há montras que gosto, são as das amêndoas.
Vou ver umas, num instante. Concentro-me afincadamente, para bons comportamentos.
terça-feira, 19 de abril de 2011
Cá dentro somos muitos, ou de como eu vejo pontos fortes e pontos fracos...
Cá dentro somos mais do que muitos. Nem sei ao certo se tal coisa se avizinha boa, má, ou no meio termo, local onde se diz encontrarmos a virtude. Tenho-a procurado com afinco, não pelo nome, ou pelo que a apregoam, mas porque de facto, se me afigura como algo que deve ser satisfatório, uma vez que o mau não se quer, e o bom, muitas das vezes, quase nos escorre das mãos em contragosto. Pudéssemos nós guardar o que queremos do que nos circunda, e seríamos por certo um qualquer ser semelhante a Deus. Creio então que tal nunca nos poderia ser possível, que em tamanho risco ele não incorreria. Deixaríamos de imediato o criador num papel secundário, pois por certo mais não faríamos, do que subjuga-lo à nossa superioridade (?), que nem nos julgo capazes de mais. Por esta hora, governaríamos nós. Ora nem precisamos de análise afincada, para detectar a ameaça onde o Mundo se entregaria se tal se desse, provavelmente, maior ainda do que a que sofre actualmente, pelas mãos de quem se acha capaz de governar a Natureza, mas sem qualquer tipo de dom supremo. Mas e eis que cá dentro somos muitos, tal como disse. Nem sempre os mesmos, é bem que se entenda, ao se não, nem de nada nos valeria a versatilidade, apenas prudente pela nossa capacidade de assumir o corpo que queremos, na hora que bem entendemos. Outras vezes, porém, subjugamo-nos internamente quase sem querer. Encontro de tudo, dentro de uma só gente. Montes e vales, uns abastados, outros sinuosos. Alguns dos seres que nos povoam crescem qual árvores a cada dia, com ramos que parecem nem querer parar de trepar, como se ali, naquele sítio, encontrassem um alimento forte o bastante para que nem abrandassem, pelo que se dão em sobejo. Noutro sítio, porém, tal e qual na mesma gente que atrás refiro, encontro ervas daninhas que crescem também, como que detentoras de uma vontade própria que invade o resto, e quase o deixa mortiço, perante tal selvajaria. Chego a julgar que nisto nem temos poder algum, que as malvadas chegam a envolver-se em ninharias, e a formarem pântanos, que nos engolem devagarinho. Poderão existir mais gentes cá dentro, que por obra da sorte ou de qualquer uma outra grandeza, nos coabitem o espaço, e que permitam um resgate das já quase perdidas, que se afundavam a pouco e pouco, e nos tragam de volta.
O que nos divide as gentes internas, o que as rege ou orienta, é que nem bem sei concretamente. Tenho umas ideias, mas quando toca a mentes, pessoas de fora e pessoas de dentro, e tantas que elas são, a coisa tem que se lhe diga. E posto isto nem me arrisco em teorias, mais do que rebatidas, e sempre incompletas.
O que nos divide as gentes internas, o que as rege ou orienta, é que nem bem sei concretamente. Tenho umas ideias, mas quando toca a mentes, pessoas de fora e pessoas de dentro, e tantas que elas são, a coisa tem que se lhe diga. E posto isto nem me arrisco em teorias, mais do que rebatidas, e sempre incompletas.
Vidas
Espero na fila alucinante de gente, munida de cheques para levantar. Bem à minha frente, uma mulher de cabelo comprido e baço, dos que se dispensava, mas nos quais se parece ter um orgulho supremo, enverga uma camisola branca transparente, que deixa antever uma roupa interior de cor forte, que tenta arrumar um corpo grande e deformado. Na sua volta, umas crianças salta-lhe ao pescoço, enquanto ela me profere um discurso tamanho sem eu nada lhe ter perguntado. Nem por isso gosto disso, de entradas forçadas em vidas que não são minhas, mas que quase parecem querer ser. Quase como se a minha não me chegasse, e alguma entidade suprema resolvesse dotar-me de mais pormenores sobre os quais me debruçar. Ainda um dia, hei-de arranjar forma de os fazer saber, que no meu dia a dia, enquanto pessoa, para nada preciso de saberes assim. Ainda tento desviar o olhar, e banir do meu rosto o sorriso inicial que me emergiu da simpatia, mas de nada me valeu, que as palavras saiam-lhe da boca seguidinhas, sem interrupção, e num som suficiente para que eu as ouvisse claríssimas, apesar do irritante barulho de fundo que se fazia sentir. Agora, os subsídios não vêm em vale, vêm em cheque. Uma maçada, que ao invés de ir aos correios levantar, necessita de ir ao banco e assinar por trás, porque ao senão terá de o depositar. Ainda para mais, ao fazer a assinatura no caixote do lixo perto da caixa, não fosse perder a vez, resvalou-lhe um dedo e o rabisco não saiu direito. Vamos a ver se passa. Para além disso, estas modernices nem são para ela, que não percebe bem estes assuntos. Já tinha passado tempo considerável nos correios, pois nem tinha reparado a alteração, e agora estava ali, a perder mais tempo, ainda para mais com os garotos que estão em férias da Páscoa, e não se podem aturar. Como não chovia quando abandonou o posto dos CTT, esqueceu-se lá do chapéu e agora chove a potes, vai ter de esperar. Uma dose considerável de dissabores matutinos, que se toleram apenas e só pela recompensa esperada. É a vez dela. Levanta os euros que lhe cabem dada a numerosa família, e vai-se embora. Sorri-me na passagem, enquanto arruma o dinheiro na carteira. Os miúdos continuam a saltar.
segunda-feira, 18 de abril de 2011
Ele e elas
Saem de casa manhã cedo, e ela está lá. Não em casa, que aí, a presença física resume-se aos quatro, mas de fora, mesmo na porta ali ao lado. E pior ainda, também por dentro, perdida no corpo que lhe tinha jurado amor para todo o sempre, para agora olhar de soslaio para a moça, ainda gaiata, que lhe calhou em vizinhança. Não raras vezes, da janela da sala, encontra-a a espreitar por entre as cortinas, para de imediato fugir ao perceber que quem ali está, não é ele, mas sim ela. Naquele dia chegou a crer, e por mais algum tempo também. Vestida de branco, e perante os olhos das gentes, proferiu e ouviu da boca do seu amor as preces devotas do matrimónio. A jura da companhia, na saúde e na doença, à qual o Padre rematou, e bem, que "o homem não separe o que Deus juntou." Esse ajuntamento era ele e era ela, que se depositou nele para todo o sempre, encaixando o seu rosto em suas mãos, como se de uma fusão se tratasse. Nem bem sabe o que ele sentia, que aos Homens, os sentimentos ficam-se no revés, pelo menos aos com H grande, que aos outros, de h mais pequenino, é-lhes permitido tudo, até o choro. Ainda assim, julgava mutuo. Não lhe cabia na cabeça, ou até no coração, que aquele magno sentimento pudesse ser só de um lado, até porque, nem crê em unilateralidades, incapazes de fazer crescer a essência pura de um amor a dois.
Nasceram crianças. Primeiro ele, depois ela, e ao invés de a descêndencia abençoar a união, tal e qual o Prior tinha apregoado no altar, deixo-os num amor sem sustento, não dela, mas dele. Para ela, ao invés, a dimensão aguçou-lhe as entranhas do sangue que lhe corria nas veias, e unificou em si toda a grandiosidade dos momentos. Julga porém que ele não foi capaz. E diz-me então em abono dele, que o seu grande corpo não conseguiu absorver tal imensidão, pelo que se ficou no frívolo e no frágil , pela incapacidade de mais. "Nós, somos pequenas por fora, mas grandes por dentro. Eles não sentem com nós. Não porque não querem, mas porque não conseguem."
Debrucei-me na conclusão efémera de quem sente que lhe foge o amor. Centra-se na incapacidade dele para lhe perdoar os desaires, e excluí-se automaticamente de culpas. Um bálsamo interno abrangente, que só pode fazer milagres.
domingo, 17 de abril de 2011
Batalhas
Oiço-a e entro no crasso erro onde incorro vezes de mais. Tem a ver com a realidade, bem sei, que a sermos honestos, coisa utópica, ou seja, nunca atingível, e nada disso me aconteceria, mas assim, nem me restam mais remédios. Ao invés de lhe ouvir as palavras, leio-lhe os sentimentos. Fico a perder, claro, que os encaixo à luz do meu ser, fugindo-me por vezes a real sensação que se atafulha dentro do ser que se me apresenta, para emergir uma moldada a mim. Fosse eu crente, fosse eu desprovida de conhecimento sobre as malícias da vida, e conseguiria reunir esta pureza que por ora me falta, para leituras claras e em nada subjugadas. Mas a culpa não foi minha. Nem bem me lembro dos pormenores do caminho, extenso, nem que me debruce com afinco. Recordo apenas algumas particulares, detentoras de algum carácter mais forte, que por tal se cravaram cá dentro, para não mais me largar, mas tratam a excepção, não a regra, que se construiu no dia a dia, no escutar, no analisar. Fosse o Homem coerente, e deixar-me-ia numa posição fácil, ao invés de me colocar em artimanhas danadas, capazes de me baralhar. Ouvir gente, pode nem ser fácil. Entende-la, nem tento, que seria demais para mim. Destrinçar realidades de ambições ou falsidades, afigura-se hoje como batalha atroz. Mas em momentos, juro que estou lá.
Mudanças
Centrei-me nos eléctricos que se extinguem, que estou farta de politicas. Estou talvez mais farta dos protagonistas, o que no fundo, será mais ou menos a mesma coisa. Nem percebo bem o motivo da extinção. Ou até percebo, que segue a lógica da moda, dos cortes com o que de antigo nos cerca, como se apenas e só as tecnologias nos embalassem o corpo, e tudo o que vem de outrora se devesse banir, sob estranha pena de nos deixar na margem da modernidade. Muitas cidades ainda o usam como meio de transporte eficaz, mas nós, deixamo-lo morrer aos poucochinhos, numa ingratidão manifesta por quem tanta gente transportou, Graça acima, Belém abaixo. São dos poucos que ainda existem, esses dois, ao contrário de antigamente, onde seria possível percorrer a cidade de Lisboa, coisa que por ora se faz por terra, em túneis, onde a maravilha da tecnologia já permite até, vejam só, rede nos telemóveis. Mas são precisos, diz-se. Eles, ou algo semelhante. Eu, votaria neles, sem dúvida alguma. O da Graça era o da minha paixão. Transportava as velhas de sacos floridos e cabelo armado, às quais, invariavelmente, dava assento. Levava a tiracolo os catraios, que se seguravam nos ferros traseiros de paragem em paragem, prestes a esquivarem-se num ápice, perante algum aviso ameaçador. Abria as portas aos velhos, de bengala e jornal debaixo do braço, que chegavam a tirar-me a boina em cumprimento, eu já era dali. O tilintar dos fios, e o restolhar dos carris, compunham um cenário de uma Cidade antiga, com tanto de magia, como de encanto. Ir à Graça, de outra forma, nem me faz qualquer sentido. Que preservem esse, que se criem mais. Não será na valorização do que de bom cá temos, que nos afastaremos da modernidade, até porque, para além das vantagem, alia-se a tradição. Pena que muitas das vezes, a evolução se perca nestas nuances, que deixa nas gentes a sensação ignorante, de que para haver avanço, é preciso tudo mudar.
sábado, 16 de abril de 2011
Pertenças
Chama-se reverso da medalha, mas, honestamente, aqui com em tanto nem bem me importa o nome que se dá, importa-me o que sinto. Olho a envolta e revejo-me nela. Fosse eu capacitada de mecanismos suficientes para que se desse a troca, e ali ficaria, mas não. Somos uns estranhos seres que nos auto denominamos de livres, quando no fundo, vai-se a ver, e somos presos, se não a uma coisa, a qualquer outra, que de resto, e a não ser assim, nada faria sentido. Mais ou menos como o que escrevo, dirão por certo. Por isso explico. Apraz-me a pertença, a envolta, a zona de conforto. Chama-me o outro lado, as outras gentes. Gosto de tanto do que cá tenho. Ambicionava, com uma ambição desmesurada, muita outra coisa. Por certo nem posso. Nem conseguirei de forma tranquila, juntar junto a mim tudo o que queria e transportar, e por isso vou ficando.
Olho a janela e respiro com força. Tu estás, há tanto que está. Eu estou também, mas vezes, muitas vezes, estou de corpo e não estou de alma. Julgo ser assim que se sente, quem pertence a tanto, e a lugar nenhum.
sexta-feira, 15 de abril de 2011
Por cá
Estava submersa num frio de cortar. O chão de calçada, larga ou estreita, cala a boca a quem refila contra a Portuguesa, que vai-se a ver, e é Europeia ou algo do género. Toda a cidade é de uma imponência inigualável. Desde a chegada, até à partida, calcorreei ruas e monumentos impressionantes, de uma riqueza histórica fenomenal. Pela positiva, quase tudo, destacando os pormenores arquitectónicos, a beleza, a organização dos povos nórdicos. Pela negativa, apenas algum excesso de rigidez nas caras de quem vive em ordem.
Recomendo vivamente. A poder, voltarei com toda a certeza.
domingo, 10 de abril de 2011
sábado, 9 de abril de 2011
Dos sítios e das gentes...
A casa é grande e caiada de branco. Ao longe, ainda vacilo, mas ao perto, encontro camadas inteirinhas que caem ao chão, juntas em montinhos alvos que se aumentam a cada dia. Ainda me lembro, das ofertas que se faziam em tempos de tal bem, a fim de manter os muros das terras imaculados de meter cobiça, mas julgo ser acto já esquecido, pelo que a cada ano, menos encontro as mulheres agachadas, de lenços salpicados, a caiar ao sol. Poderão também ser as evoluções dos tempos, mas ainda assim, em aldeias perdidas, as velhas de outrora ainda lá moram, duradouras que são, os muros ainda são de cal, e alguns deles, ainda serão brancos.
Aquele não é. Pertence com um orgulho decadente às instalações da Junta de Freguesia, encabeçada por um homem coxo e cabelo grisalho, que deixa antever uma considerável falha de dentes na boca. Sorri-me quando chego, estende-me uma mão, enquanto me interroga sobre a família. Retribuo os cumprimentos, e subo em cuidado os degraus de pedra polida pelos passos, não vá um salto resvalar e deixar-me estendida no fundo da escadaria, nem me parecendo este, local digno para tal descuido. Ao lado da porta, e sob o calor que se fazia sentir, chega-me um cheiro a urina forte, que suspeito vir de um canil de animais sujos e gordos que ladram enquanto correm, parecendo que de mim algo esperam, pobres deles, que nada lhes dou.
Entro no edifício, e lá dentro, encontro a Senhora administrativa que paga pensões, elabora ofícios, lavra actas e sela cartas, que ali, também se trata o correio. Enverga uma camisa às flores de gosto duvidoso, por baixo de um casaco de malha largo e roçado, enquanto um gancho com um brilhante lhe segura o cabelo mesclado e pouco lavado. Sorri-me de olhos grandes e verdes, merecedores de um outro corpo, não tenho disso qualquer dúvida, e trata-me de tudo com uma prontidão irrepreensível. Na saída, deseja-me bom fim de semana. Quando desço, os cães ladram outra vez.
sexta-feira, 8 de abril de 2011
A ler e a reflectir...
http://jonahsjustbegun.org/portuguese.html
( Tomei conhecimento no Blog Cocó na Fralda, sempre bem atento)
Coisas que não deveriam existir...
O programa da manhã do Manuel Luís Goucha e da Cristina Ferreira, que dantes, até era gira.
Noite
Sentada na varanda beberica um café forte, nem deveria, que o malvado desperta-lhe no sangue fortes solavancos, enquanto a conduz noite dentro para as entranhas do seu ser, parecendo até que são íntimos, e que se fundem na imensidão de cada um deles, que ambos o são. Um, em carácter maior, que nos corre no corpo e nos sustenta, o outro, menor, mas que ainda assim nos desperta num abraço sentido e forte. Ela gosta de abraços sentidos. Chega a haver vezes, muitas vezes, em que os sente numa dimensão tal, que quase os julga só seus, numa vaidade tamanha e imerecida, como se o resto do mundo, nem digno fosse a tamanhas grandezas, e apenas seu corpo elas desposassem. Porque se daria a escolha? Qual critério lhe deixaria a cargo tanta responsabilidade, de reunir em seu magro ser tal honra? Fosse ao menos ela digna e pura, ou então detentora de algum mérito ou casta divina, e ainda compreenderia, mas assim, humilde pessoa, porque haveria de ser prendada dessa forma? Nem percebe, e esquece o assunto. Acende um cigarro. Entre a aurora da água preta e amarga, e o sossego do fumo adocicado, inunda-se de sorrisos largos e delicia-se na fresquidão da noite que a ela escolheu. Poderia ter escolhido outra, mas não, foi a ela, tem isso por certo. Talvez seja por lhe conhecer a entrega, que ao invés de lhe fugir como as demais gentes, ao invés de se rebolar no desespero, em busca do sono que não chega, entrega-se-lhe toda, e partilha com ela tudo o que tem.
Em troca, numa generosidade inigualável, recebe o desvelo do embalo à luz da lua.
quinta-feira, 7 de abril de 2011
Escolhas...
Pudesse eu ter escolhido em consciência, e teria nascido noutra época. Nem bem sei qual, nem me importa, julgo até, que qualquer uma outra servia. Talvez tivesse também nascido um pouco mais ao lado, embora mantendo os diversos intervenientes no processo. Nem sou de me subjugar a desígnios externos, como se o meu livre arbítrio fosse uma ninharia de nada, e de nada mesmo me valesse. Ainda me apraz, quanto mais não seja ao inconsciente ilusório, julgar que em minhas mãos detenho a força da qual necessito para me impelir, e que o fado é uma coisa melancólica que se canta a gosto por vozes penosas, que a ele se dedicam numa tristeza sem fim.
Ainda assim, e numa pequena análise diária, na qual me obrigo a entrar por ausência de escape, sou de imediato perseguida por uma sensação de alguma dependência conjuntural, que de todo me desagrada. Mas poderei, dirão por certo vocês, ainda assim, produzir mudança. Poderei, claro, mas com um gasto de energia considerável, e com uma dose de risco quase incalculável. Nestes caminhos que por ora trilho, nem me agradam riscos desmedidos, julgando-os até, se os cometesse, reflexo sério de alguma imprudência que por descuro meu, me tivesse atingido, coisa pouco própria à minha pessoa. Minha avó dizia em tempos que estávamos em crise, a pobre, que já não viveu para realmente vê-la. Viu outras, dentro e fora de si.
Será por certo, daqui a alguns anos, um privilégio figurarmos nos livros de história, numa época de carência severa, bem resolvida, ou quiçá mal. Ainda assim, preferia a discrição da normalidade.
quarta-feira, 6 de abril de 2011
E se eu não souber andar nisto????
Mãe - Filho, ajudas a mãe a levar as coisas para cima?
Filho - Eu? Já tenho os cromos para levar. Temos pena... Haverão dias melhores!!!
(Resta-me dizer-vos, que sob pena de lhe deixar o Magalhães à vista dentro do carro, em noite de feira, e com sério risco de roubo, logo após um olhar de reprovação, o sacaninha repensou e alombou com o pc minúsculo e azul. Sim, fiz chantagem com a peste. Sim, não se deve. Mas eu fiz.)
Do medo
Em tempos teve medo. Nem bem sabia de quê, era de coisas, suficientes para passar a vida num constante sobressalto, não fosse perder isto ou aquilo, que tanta falta lhe faria. Com o tempo, vindo das entranhas do seu ser, nasceu-lhe uma tranquilidade inigualável. Uma sensação de acalmia, como se nada do que pudesse existir a perturbasse, e nada do que pudesse acontecer, lhe pusesse em causa a existência. Entrou então num estranho pânico assustador, de que aquela calma a abandonasse. Nunca antes, em qualquer momento da sua vida, tinha sentido um medo assim.
Indignações
Concentra nela um conjunto significativo de doenças psíquicas. Vive lá dentro, numa intrusão forçada pelo medo da saída, ou então, nem será bem um medo, será uma ausência de capacidade, que vai-se a ver, e no crescimento, nunca saiu. Parecem minhas palavras soar a estranho, pensarão por certo, que se há coisa que se admite como certa, é a nossa aptidão à comunicação, o nosso intercâmbio com o mundo que nos rodeia, e que nos pertence a nós, tal e qual nós lhe pertencemos a ele, numa fluência coerente e natural de tão intrínseca. Porém, nem existe esta linearidade, que aquando do crescimento, aquando do nosso aparecimento por cá, necessitamos de quem nos impulsione, ou seja, de quem nos apresente a envolta, e nela nos insira, sob uma pena atroz e eterna, de nos ficarmos num corpo apenas nosso. E neste campo a posse, em nada nos apraz, que somos seres que em plenitude, somos pertença externa, que ao se não, ficaremos assim, tal como Aurora, dela e de mais ninguém.
Esta pequena introdução subjugada a algumas teorias desenvolvimentistas, tratou apenas de situar quem as desconheça, no incrível mundo do crescimento Humano, a fim de compreenderem Aurora, um digno ser, tal e qual qualquer um outro, que se encontre poisado nesta bola redonda a que chamam terra. Na altura devida, o mundo nem lhe ecoou a jeito, deixaram-na lá, dentro dela, sem que se conseguisse enquadrar cá fora, pelo que se recolheu, para as suas sensações, que constrói à luz do que a satisfaz, ou seja, à luz dos sentimentos primários do corpo. Nem se situa dentro de uma patologia autística, que a esses, não foi sequer proporcionada qualquer tipo de experiência prazerosa vinda de fora, sendo que se encontram num estado borderline, onde a totalidade do que se vive, se encaixa em lugar nenhum. Na patologia esquizofrénica, já houve um contacto à realidade, ainda que mísero, que permitiu algum conhecimento do que nos envolve, o qual capacita a quem sofre a patologia, para a construção de uma realidade interna, crescida com a interferência da envolta que se conhece, embora inundada de fantasia. É frequente a construção de identidades fictícias, onde rainhas surgem em esplendor, e onde a mentira se assume como a mais pura das verdades, tudo, inserido num cérebro deficitariamente desenvolvido, mas numa harmonia interna que deveremos respeitar. Não nos adianta de nada, de resto, pôr em questão tais realidades absolutas, que o mais que conseguiremos, será sermos apelidados de loucos, nós, que nem temos acesso aquele mundo interno e perfeito, pertença apenas e só de quem o vive.
Compreendo-a. Entendo-lhe as limitações, e gostaria, num sentimento naife que ainda me cerca, de sentir a envolta cooperante com estas gentes, que por azares do desenvolvimento se situam aquém, e que de loucas, têm apenas um nome carregado de carga negativa, imposto por uma sociedade que ao invés de respeitar, continua a discriminar, aqui, como em tantos outros, quem por algum motivo, foi esquecido em tempos.
terça-feira, 5 de abril de 2011
Dêm-me música, que eu oiço...
Oiço de momento Virgem Suta na Comercial. Ainda à pouco, escutei os The Gift, num excepcional álbum que vai andar em digressão gratuita, por algumas Fnacs do País. Não pode ser impressão minha, o facto de que na actualidade, temos boa música Portuguesa. Hajam sectores em expansão. Quantos mais fossem, melhor seria.
segunda-feira, 4 de abril de 2011
Pastilhas e rebuçados...
Em tempos idos, ouvia-se muito a fenomenal expressão, de que o que não matava, engordava, atribuída normalmente em situações específicas, como criancinhas que comiam terra, ou qualquer outra similar. Confesso que, primeiramente, nem bem encaixava tal dito, sendo que devo ter passado tempos consideráveis, a tentar decifrar o que quereria aquilo dizer. Centrava-me na engorda e no crescimento, e nem bem percebia, como determinadas substâncias poderiam assumir essas funções, normalmente detidas pela sopa de espinafres, mas enfim, adiante. De facto, e ainda há pouco, enquanto instruía o pequeno para não apanhar o rebuçado do chão e voltar a come-lo, vieram-me à memória peripécias inéditas, que aposto nunca ninguém ter pensado, com excepção, claro está, desta estranha cabeça que em tempos, era consideravelmente mirrada. Como tal, e dado que a Gorila produzia umas pastilhas deliciosas, às quais chamavam de super, e que faziam enormes balões, era frequente a pedinchice, satisfeita por norma, apenas e só, ao fim de semana. Como nunca se podia antever com certeza, a dádiva de novo pacote, nada mais me ocorria em termos de poupança, do que colar a dita debaixo da carteira da escola, sendo que a voltava a mascar na hora do próximo intervalo, e assim em diante, enquanto ela não mudasse a cor, o aspecto ou o sabor. Julgo que muitas tenham transitado para o dia seguinte, mas disso, não estou bem certa, que de resto, nem me apraz pensar muito em tal época, pela capacidade de revelar facetas questionáveis do meu ser, situação essa, nada abonatória. Numa atitude de mínima inteligência, poder-me-ia ter ocorrido efectuar a colagem no papel que a resguardava, ou em qualquer outro local apenas de meu acesso, e com o devido asseio, mas não. A parte de baixo da carteira arcaica, já vinda do tempo do meu pai, cravejada de pó e de outras substâncias imundas, parecia-me um sítio prudente e deveras prático, pelo que nenhum outro me ocorria, ou chegava sequer, a merecer a minha atenção. Nunca Dona Maria José descobriu tal local, e se o fez, deve ter julgado o sítio um depósito, por preguiça de ir ao lixo, e nunca uma dispensa, onde se armazenam os restos que se comem daqui a um bocado.
Lavei-lhe o rebuçado e dei-lho outra vez. Ele ficou contente e eu também. Se eu não estivesse, não duvido que tinha marchado directo.
E só num remate, caros leitores, isto passou-me. Hoje, e numa poupança acérrima, própria dos tempos de crise, masco pastilhas Pingo Doce ou Continente, sendo que Trident, só mesmo em dias de festa. Gorilas, não vejo há muito. Todas vão directinhas ao lixo.
Benfica
Sou do Benfica. Julgo até nem ser o melhor dia para dizer tal coisa, mas sou. Nunca fui, porém, uma adepta ferrenha, que atira postas de pescada aos outros quando os mesmos perdem, ou que fica capaz de colapsar quando os outros ganham. Nem tenho nada a opor a quem o faz, que o corpinho de cada um a si pertence, e se alguém julgar o motivo nobre o suficiente, para subjugar-lo a tal facto exterior, que de si nada depende, faça o favor de seguir em frente. Não gosto muito porém daquelas ofensas usuais dos adeptos mais fervorosos, que se julgam numa superioridade tamanha quando ganham, e que proferem à boca cheia que eu só não ligo muito ao futebol porque o meu clube perdeu. É que eu não ligo muito ao futebol, quando perdeu ou quando ganhou. Julgo até que sou do Benfica, porque em pequena ( e em grande) gostava da cor, embora também goste muito de verde e de azul. Coisas para me causarem fanicos de alegria séria, serão outras, onde eu ou alguém próximo tenham papel activo, motivo para me despertar o orgulho. Na perca, exactamente o mesmo, mas no sentido inverso. Quanto a quem rejubila, façam o favor, que cada um entretém-se com o que entender, pelo que devem saltar à vontade, que nada tenho a opinar. Respeitem apenas que as minhas emoções se rejam por outros fenómenos, e não me atribuam estados de espírito subjugados a lides futebolísticas. Nada têm a ver comigo.
domingo, 3 de abril de 2011
O porco
Sempre foi assim, quando o porco se estendia na banca de pedra mármore, num ordenamento rigoroso e tradicional, inundado a grandes alguidares de barro envernizado, pintados a riscas de cores. Era previamente lavado, coisa que nem gostava, ou não fosse badalhoco, imediatamente antes de lhe ser espetada uma faca no coração, a fim de por fim aquela vida suja e porca, talvez até fosse castigo divino, que quem assim se chafurda em lama, nem será por certo digno de respeito.
Na desmancha, era-me explicado tim tim, por tim tim, cada órgão do animal, tendo-me sido dito constituir em tudo, semelhanças ao nosso corpo, coisa que confesso, me manifestava enorme desagrado. Comparassem-me com um qualquer elegante cavalo, ou com um potente elefante, e poderia eu ainda julgar em graça, mas com os porcos que urravam, e que corriam desinsofridos atrás das marrãs frescas e gordas, era coisa para me deixar escandalizada. Ainda assim, ouvia com preceito e atenção os ensinamentos, mais por respeito do que por qualquer outra coisa, sendo que vos posso garantir, saber com exactidão a localização da grande maioria dos órgãos do animal, ou seja, quase que sei dos nossos. Aos bocados, era depois levado pelas mãos das mulheres que lhe davam o melhor caminho. Alguma febra era assada logo ali, a fressura e o sangue cozido iam para a panela das sopas, as carnes gordas iam indrominar-se de colorau, para gerarem o chouriço, e por aí fora. Era empreitada para durar uma tarde, escolhida criteriosamente para que toda a família pudesse dispensar braços e mãos, que quantas mais houvessem, melhor a função se cumpria, coisa que por norma, nem constituía dificuldade da séria, que o convite para a festança incluía a patuscada, motivo mais do que suficiente para que a reunião de gentes fosse considerável.
Não mais esqueço o cheiro pestilento que me inundava as narinas, coisa asquerosa, que ocupava o pódio dos meus ódios de matança, logo após os guinchos do animal, que se situavam, como devem calcular, no topo da tabela. Normalmente, escondia-me atrás de um portão verde, e tapava os ouvidos, que julgava eu que se o fizesse, e talvez porque o não visse ou ouvisse, o bicho nem sofreria. De inocência inundada, nem bem entendia que tal coisa, ou seja, o que vulgarmente chamamos de esconder a cabeça na areia, tal como a avestruz, é padrão típico de acção das gentes adultas, e não apenas e só uma mísera forma de defesa infantil, que a usa em receio e em evitamento, num instinto de protecção que se lhe perdoa pela idade. Não detenho portanto em memória, e dada a alta artimanha, a pura atrocidade do momento, que no final de tudo, e mal o porco se finava, o meu corpo sossegava.
Evoluções
A cada dia mais me convenço, que as acções que praticamos devem valer por si. Em tempos, cheguei a julgá-las como um meio, como caminhos para metas, sendo que as realizava estudadas e direccionadas, com poucas falhas, que o rumo certo sempre me constituiu prazer. Julgo terem sido as defraudes, às quais me sujeitei sem esperar, que me moldaram a postura e me deixaram nesta estranha forma de vida, pouco dada a sonhos obsessivos ou a objectivos rígidos e inalteráveis. Sou deles detentora, como Mulher que sou, mas apenas os persigo na medida do razoável. Perderam-me sentido as lutas desmedidas em direcção ao vazio, os percursos sofridos com vista a lugares incertos, os sonhos sonhados num ror de desencontros. A ambição surge-me agora inundada de uma estranha prudência, que me resguarda o bem estar do presente, com vista a um futuro que não sei qual é. Nem por isso luto menos, mas luto de forma diferente. Cada dia, cada hora ou minuto, importa-me por si mesmo, e tanto como nunca houvera sido. Não noto que atinja menos. Noto sim, sem qualquer sombra de dúvida, que quando não atinjo, vivi até lá chegar.
...
Oiço-a com um gosto aguçado pelo que me fala, que trata um sentimento sublime, uma nobreza inigualável. Segura-o nos braços, pequeno, calmo, apenas com meses, e nasceu-lhe aos quarenta. Diz ela que carrega naquele pequenino corpo uma família, que lhe ronda a existência, lhe acolhe os sorrisos, o segura e o ampara. Nos meandros dos golpes da vida, o pequeno, na ingenuidade dos seus minúsculos olhos verdes, nem bem enxerga a sua importância, fosse ele a saber, fosse ele a consciencializar a dimensão, e sentir-se-ia por certo no centro do mundo, lugar onde de resto, todos os bebés deveriam estar. E diz-me então que foi mãe na hora certa, que a ter sido mais cedo, por certo a calma que lhe domina a existência, nem teria ainda construída, que é necessário tempo para que nos cresça cá dentro. Faz parte de uma das grandezas da vida, e quiçá por isso, foge-nos a toda a hora, fossemos nós detentores de lhe chegar sem esforço, e tudo nos seria mais fácil. Julga ainda, que essa calma dela o atinge a ele, e o deixam na pele de um bebé doce e risonho, que ouve em sons baixos o que a mãe lhe quer dizer. Nem me apraz por cá dissertar sobre idades certas ou idades erradas, que a ter em conta o relógio biológico da mulher, deparamos-nos com uma abrangência significativa dentro da qual nos poderemos reger, e como tal, cada uma deverá escolher a, ou as idades certas para si. Ainda assim, e logo após apanhar, por coincidência, um programa alusivo ao tema, com opiniões diversificadas, reiterei o que há muito já sinto, e que trata o facto de julgar a serenidade mais tardia, uma mais valia à maternidade. Não quero com isto dizer, que as vantagens das idades mais precoces, nem existam, que existem, e são imensas, pelo que nem me perco a enumera-las, eu, que tão bem as conheço. Julgo apenas que quem é mãe tardiamente, nada perde em termos de sentimentos, evolução e reciprocidade.
Qualquer dia, ainda sou mãe aos quarenta. Depois então, vou mesmo saber do que falo.
sábado, 2 de abril de 2011
...
Nunca a tinha visto assim, talvez até distracção minha. A banda que antes só tinha Homens, alberga duas Mulheres. No meio do pavilhão minado de gente, empestado de cheiro a vinho e chouriço, velhos pegam nas novas e dançam a gosto. Assisto à distância, não vá ser pegada ( tolice a minha, que me julgo de nova...). Diz o nome que são da alegria. E são. Eles e a envolta.
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