sexta-feira, 22 de abril de 2011

Namoro

Na soleira da porta, estende-se uma manta de trapicalho grossa e garrida. Ambos lá estão, num contraste calmo e doce, sob o olhar atento da que costura um nadica mais abaixo, uns botões já mais do que pregados. Os óculos na ponta do nariz, espreitam de quando em vez, que a visão falta-lhe é ao de perto, que assim, ao de longe, nada do que aqueles dois seres façam lhe passa despercebido, por entre uns olhos verdes esbugalhados e vigilantes. O muro onde se senta é feito de pedras, muito duras e incertas, coladas grosseiramente com um cimento cinzento. Um desconforto, suportado apenas porque não quer excessos de aproximação aos dois, não lhes permitindo porém, o desvelo da sua ausência. É exactamente aquele o sítio onde deve estar. Sabe-se lá o que poderia ocorrer, se ousasse sair dali, e seu marido atentasse a esse desleixo, capaz de motivar, quiçá, algo de sério, como um beijo ou outro que tal. Eles olham-se ternamente. Olhos nos olhos, mãos nas mãos ou em algum sítio perto, sempre à vista, enquanto juram amor eterno, e se deliciam com as fatias paridas que a mãe costureira fritou previamente, em óleo quente, polvilhadas de açúcar e canela. Gosto de fatias assim, feitas a gosto com casca rija e quebradiça, regadas a café forte. Na porta ao lado, a vizinha velha e desdentada, de lenço preto a afagar-lhe o pescoço, entra e sai em desespero. Não suporta os Domingos, dias de perdição. Logo pela manhã, a missa abençoa-lhe o corpo e a alma, para depois, à tardinha, sua porta se ver invadida por tamanho apego, coisa nunca antes vista, assim, sob a luz clara do sol, e os olhos todos de quem por lá passa. O namoro de seu tempo era feito à distância, ela dentro e ele fora, quer chovesse, quer fizesse sol, que o pobre a isso se sujeitava, por meia dúzia de ditos carinhosos e por uns acenos fracos e assustados. A entrada, estava-lhe guardada apenas para as proximidades do casório, não fosse alguma desgraça ocorrer, e a honra da moça ficar comprometida para todo o sempre. Quem mais a quereria? Quem mais a desposaria, após alguém já lhe ter cobiçado o corpo e nele se deleitado, com afagos como os que por ora vê pela fresta da porta? Uma vergonha, tem a dizer.
O dia finalmente escurece. A manta levanta-se, a costura acaba, os dois afasta-se. Dentro da casa ao lado, a velha aconchega o lenço ao pescoço, está frio. Pode por ora sossegar. Só para a semana, será Domingo outra vez.

2 comentários:

  1. :):):) Essa descrição é de agora ou do início do século passado? :)

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  2. Pois, que te parece? :):) Ela era minha vizinha, e eu era muuuito pequena. É real, embora possa não parecer, e muitas outras das que por cá trago nem o sejam...

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