terça-feira, 31 de julho de 2012

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Baús

Perco-me com baús de coisas. Úteis ou nem por isso, sendo o nem por isso a realidade que acompanha a maioria das vezes, porque a serem realmente precisas não estariam por certo tão arrumadas. Não obstante, e no meio das inutilidades, encontro sempre qualquer coisa que me fazia uma falta tremenda no exacto momento em que resolvo remexê-lo. Ainda me lembro de uma saia encarnada muito curta e rodada, descoberta no baú de solteira da minha mãe, que eu vesti vezes sem conta. Ou do colar de pérolas do baú da minha avó. O baú da minha mãe tinha ainda outras coisas encantadas, nomeadamente fotografias do meu pai nos tempos de ultramar, e cartas de amor trocadas por ambos. São uma preciosidade as cartas de amor escritas em caneta num papel que fica amarelado com o tempo. Hoje as cartas de amor são mais rápidas na chegada, mas são por isso muito mais friáveis. Um delete faz-se em modo rápido, sendo que pode nascer de um impulso repentino, sem noção real da consequência. Rasgar uma carta ou deitar-lhe um fósforo requer intento, pensamento, consciência do que se vai fazer. Ainda para mais porque as palavras escritas trazem impressa a caligrafia de quem as escreveu, qualquer coisa que parece reunir na folha o cheiro, as mãos, a vida de quem resolveu rabiscar o papel com paixões, acto que merece respeito. A última vez que bisbilhotei um baú encontrei roupas do meu filho. Foi há pouco, diria que quase agora. Meia dúzia de fatinhos minúsculos rapinados sabiamente pela minha mãe, deveriam ser guardados a preceito, poderiam vir a fazer falta a alguém. Encontrei ainda uma colecção fabulosa, muito embora já danificada, dos meus livros de Sigmund Freud. Foram suficientes para que me sentasse no chão empoeirado e perdesse uma boa meia hora a sorver-lhe as palavras. Reiterei, como se necessário isso fosse, que sou uma profissional poucochinha. Nunca uma verdadeira curiosa do inconsciente poderá conseguir trabalhar de forma eficaz sem aquela obra bem perto.

Manias

Assim de repente, e já me parece que a derrota de Telma Monteiro deixa o País a falar mal. Uma parte, pelo menos. Não devia. Enquanto nação temos todos o direito à alegria e à tristeza, mas não deveríamos ter a presunção do orgulho ou da crítica. Seja o que for será sempre mais dela do que nosso. Foi ela que lutou, foi ela que se empenhou, foi ela que ganhou o que havia a ganhar, e é consequentemente ela que amarga a verdadeira derrota. Mania, pá.

domingo, 29 de julho de 2012

Tantas Lisboas

No ouvido escuta um som muito seu. Estou em casa, pensa para dentro. No palco a guitarra portuguesa desfaz-se em notas sofridas enquanto da boca do fadista letras iguais juntam-se em diferentes palavras num mesmo sentimento. Na sala enquanto se comem chouriços assados em lume e se bebem vinhos de cor púrpura em copos de pé alto, as vozes que não sabem do que falam acompanham o fado. É a melodia triste que alegra as gentes, que as deixa imersas num saber imaginado que exala da pele dos músicos, eles próprios ignorantes. Prossegue a noite. Lá mais para o final, pessoas idas, músicas cantadas, amores jurados e corpos cheios de tudo, saem para a rua. A calçada de Lisboa sustenta-lhe uns pés que caminham sem andar, que voam sob uma cidade de luzes, de becos escondidos, de encantos e de amarguras. Sobem o terraço. Cadeiras distribuem-se no fresco da noite que ainda assim permite a cor do relento. Do alto avista-se um rio iluminado pela clareza da lua que redonda e gigante faz crer a quem a vê que a beleza é verdade. Encostam-se um ao outro enquanto o tempo escorre pelos dois exactamente no mesmo compasso. Saem de ambos poucas palavras, apenas e só as precisas, ainda que nem essas parcas o fossem realmente. Ele adormece. Acorda uns minutos depois enquanto ela o afaga nos cabelos e lhe conta um segredo que ambos sabiam. Ele sorri, junta meia dúzia de letras e solta da boca uma palavra infinita.



sábado, 28 de julho de 2012

Magias

É simples... Umas nádegas são somente a parte acima de umas pernas, que não são mais do que dois pedaços de carne que fazem com que nos seja possível andar. Umas mãos são uma ferramenta magnífica no ofício da vida, que permitem zelar por nós próprios e pelos outros. Uma boca é uma abertura no corpo pela qual colocamos alimentos que permitem que nos mantenhamos vivos. A língua serve para falar. As palavras não são mais do que um meio de comunicação e fonte de entendimento entre humanos. Os seios são um local de alimento para todos os animais mamíferos. Sem eles não havia vida. Um ombro trata um sítio no corpo de um outro alguém. Ou no nosso. Tal como dois braços, ou quaisquer outros membros. Uma árvore é um simples pedaço de mundo com folhas e frutos necessários à nossa subsistência, entre outras virtudes práticas, e o mar, por exemplo, permite com que possamos continuar a ser gente, bem como os animais, as flores e toda a diversidade da natureza. Um cozido à Portuguesa é um conjunto de géneros alimentícios que fazem com que a fome passe e depressa. Como uma açorda, como o feijão ou o grão. Uma almofada serve para descansarmos, bem como uma cama, um sofá, um chão, e todos os locais onde nos possamos deitar. Deitar, por exemplo, serve para dormir e repousar o corpo. A família serve para gerar, para criar e amparar. Uma igreja serve para rezar, bem como uma mesquita ou qualquer local onde o silêncio nos deixe à mercê da entrega. Uns sapatos são qualquer coisa simples que nos protegem os pés dos caminhos, e uma mala um mero utensílio onde guardamos coisas das quais precisamos todos os dias e por várias vezes. Um café acorda-nos, um chá sossega-nos. Uma varanda refresca, um lume aquece e alumia. Uma manta leva-nos o frio. O vento varre-nos as ruas. A chuva humedece os terrenos e os rios, rega os campos, dá-nos água. O cérebro raciocina, o sangue transporta, o coração manda. O estômago separa para a posterior limpeza do corpo, que deverá em coerência funcionar. Os homens e as mulheres servem para se complementarem, tais como todos os outros animais existentes na terra.
E depois somos o resto... Posso pegar por mil, pego meia dúzia, dos que falei ou quaisquer outros. Um cozido à Portuguesa não me mata só a fome, mata-me a gula. O mar serve-me muito além da manutenção do meu corpo, e uns sapatos não só me protegem como me envaidecem. Engrandecem-me, compõem-me. Um ombro pode ser só mesmo um ombro ou pode ser muito mais do que um ombro, e umas mãos podem ser tudo ou podem não ser nada. Um livro pode ensinar-me a ler e a escrever como forma de comunicação, ou pode ensinar-me a viver, a imaginar e a sonhar. Um sonho pode não ser só uma projecção e ser uma forma de vida. Uma vida pode ser  só vivida, ou pode ser uma existência real. Um velho para além de um termo pode ser uma dádiva, e um amor interrompido pode não ser um fim, mas sim um caminho.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

...

O valor do que nos é dado é sempre relativo. Tal qual é relativa a generalidade das coisas, vividas, sentidas, experimentadas. Já me deram coisas significativas no sentido de valor às quais não dei uso. Já me ofertaram outras pequenas utilíssimas, e outras que na altura da oferta não me deram qualquer préstimo. Do género de eu ficar a olhar e agradecer por educação. Por vezes faço coisas por educação. Corrijo, faço muitas coisas por educação e também faço muitas por respeito. Raramente me arrependo, ainda mais agora que já não pertenço, e isto orgulhosamente, ao grupo dos excessivamente frontais, ou verdadeiros, ou o que lhes queiram chamar. As intenções dos outros podem ser muito boas mesmo quando nós não vemos, e devemos sempre ter isso em consideração. A Maria, por exemplo, encheu-se de intenção da boa quando me ofereceu um búzio redondinho, banal, ao qual nunca liguei por aí além. Há tempos peguei-lhe e descobri-lhe a essência. Esta coisa das descobertas das essências também tem que se lhe diga. Exige dedicação, tempo, disponibilidade, ou até, posso dizê-lo, necessidade. As superfícies lisas e polidas hoje dão-me calma. A Maria já me tinha dito, e eu nem sequer a ouvi. Porque para além de tudo nem sempre ouvimos o que nos dizem, ainda que seja verdade. E também porque o que precisamos não é sempre a mesma coisa. 
Agora já pode ser natal outra vez que não me vai pesar o pano bordado à mão, religiosamente oferecido pela Dona Preciosa, em todos os natais. E sim, admito que me fazia algum peso. Não arranjava sítio, nem sequer na mesa do chá. Ainda bem que fui sempre muito educada e grata com ela. Felizmente tenho coisas das quais não me arrependo. Não gosto de arrependimentos. Deixam-me num desassossego exacerbado, como se cá dentro de mim algo se agitasse em soluços fortes e intermináveis. Mas tenho de facto mais das outras. Das que fiz e voltaria a fazer uma e outra vez, mesmo que em consequência o meu corpo possa ter pago por isso. O nosso corpo é feito para conseguir sobreviver a muitas coisas. E ainda para ver o que antes não víamos ou para sentir o que antes não sentíamos. Nascem-nos novas capacidades com o tempo. Não é mito, é realidade.

Alive


- Ouves?
- Uuuiiiii, tanto.
- E sentes?
- Quase sempre... Às vezes... Bom, há dias...

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Casa



Aquilo a que deliciosamente chamamos casa é um espaço que é nosso. Nele deveremos conseguir  morrer no constructo e nascer na essência, sendo exactamente por isso que lá permanecemos tão sossegados. Julgo que haverá gente com dificuldades em cessar de vez a ideia do que se quer ser perante a ideia do que se é. Não me parece nada prudente, não permite descanso, pureza, não nos deixa emergir de nós mesmos, o que deverá constituir com o tempo um desgaste sem fim. Em casa devemos poder andar desarrumados. Despenteados, sujos, indecentes ou até mal dispostos. Deveremos também e se for caso disso, pincelar as imperfeições de cores, muito embora a casa saiba que ali, naquele exacto local, existe uma deformidade camuflada que se esconde apenas porque nos apetece, mas que ainda assim nos pertence, é parte integrante e constituinte do nosso ser. Deveremos poder cair sem querermos levantar, sorrir até ao infinito sem motivo algum, fazer greve de fome ou comer muito além de nos sentirmos saciados, porque sim. Os olhos da casa nunca são críticos ao ponto de nos anuviar as vontades. São cúmplices, pertencem-nos exactamente como nós lhe pertencemos a eles. As casas também têm cinco sentidos. Não nos olham apenas. Sentem-nos no paladar, no toque, no cheiro, e ouvem-nos como mais ninguém nos consegue ouvir, ainda que por vezes nada digamos da boca para fora. Arrumam-nos exactamente onde cabemos e onde queremos caber, que não é um sítio qualquer isento de tudo. É um local construído para nós, connosco e também por nós, maleável ao ponto de crescermos ou ficarmos mais pequenos, porque a verdade verdadinha, ainda que cruel, é que não temos sempre o mesmo tamanho, vejo isso por mim, nem sequer preciso de ir longe. 
A nossa casa se nos soltar deixa-nos saudades. Os locais, as coisas, as pessoas às quais pertencemos ao longo da vida fazem-nos sempre muita falta. Quando desaparecem levam bocados que guardaram  no tempo e deixam-nos outros. Pensando bem, até talvez seja este um dos motivos da continuidade do mundo. Nada morre definitivamente. Se tudo morresse de todo, de morte sentida, provavelmente as coisas seriam diferentes. Os cortes levariam por certo as maravilhas da evolução.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

...

( Sapatos altos fazem-me sentir grande. Ainda que eu seja infinitamente pequena.)

terça-feira, 24 de julho de 2012

Ouvi dizer


Entregas

No salão dos cabelos uma mulher muito gorda envergava uma saia de flores rodada que fazia com as suas ancas dançassem alegremente enquanto andava de um lado para o outro. O cabelo de corte irrepreensível dava-lhe um ar ligeiramente arrumado, completamente contrastante com o resto do corpo desproporcionado mas ainda assim vaidoso, uma péssima combinação. Existem coisas que simplesmente não combinam. Nada poderemos fazer para mudar isso, muito embora continuemos permanentemente a fazer questão na insistência, o que se traduz num mundo muitas vezes incoerente, desarmónico, esquisito, levando este conjunto de palavras muito além do externo, do visível, do atestado a olho nu. Na mesinha da entrada uma outra arranjava unhas compridas de mulher, pintando-as de cores fortes e adornando-as com flores, brilhos e outros enfeites que deixam a classe feminina na beira do delírio. No cesto das revistas inúmeros livros apresentavam cortes cuidados que nos deixam bonitas por fora, emolduradas, cuidadas, suportadas por um conjunto de circunstâncias que nos constroem aos olhos de um mundo centrado no ar, na graça, na harmonia que deveremos conseguir sempre e a qualquer custo, airosamente, deixar emanar. No secador uma velha de rolos na cabeça lê numa revista o fulado que casou com sicrana, o homem que trocou de mulher, a mulher que se retoca sob as mãos de alguém a quem entrega o corpo na esperança de renascer. As suas palavras posteriores são de satisfação. Está mais bela, desejável, sem rugas, o que a deixa segura. Detesta a velhice, não sabe como um dia lá vai chegar. A velhice é de facto assustadora. Introduz-nos a alma dentro de um corpo acabado, leva-nos a pele lisa, as carnes rijas e apetecíveis, os cabelos fortes e resistentes. Tira-nos por vezes os movimentos, a capacidade de escolha, a independência, e deixa-nos subjugados ao cuidado de outro alguém que cuida, ou que pode até, eventualmente, nem cuidar. O cuidado alheio do qual precisamos pode efectivamente ser mesmo assustador. Não é por nada, é pela entrega. Entregarmos o corpo deve ser quase tão perigoso como entregarmos a alma.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Nós

A sociedade está repleta de acções que se têm porque se devem ter. Dizemos muitas vezes o que temos de dizer na altura exactamente certa para o fazer, sem termos qualquer compromisso no que foi dito. Comprometimento, vontade, atenção. Percebo exactamente o porquê de o fazermos. Não tem nada a ver com o outro, tem tudo a ver connosco próprios. Não suportamos minimamente aquele sentimento árido de não estarmos presentes se por ventura precisam de nós, cai-nos mal, azeda-nos o estômago. Por isso soltamos frases compiladas a dedo, lidas e ouvidas em cada recanto, correctas, é assim que devem de ser. E depois seguimos caminho sossegados, completamente esquecidos de que para dar colo são precisos braços.

( Somos extraordinários nestas coisas. Adaptáveis, atentos ao nosso corpo e bem estar como nenhuma outra espécie. Diria mesmo que somos verdadeiramente inteligentes, coisa que é pior do que uma faca de dois gumes exactamente iguais.)

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Olhem aqui uma ideia cheia de graça.

Atentem nisto

Sempre fiquei tremendamente enojada com a vontade que o ser humano tem, na sua generalidade, de reprimir as ânsias dos corpos alheios. O corpo é um invólucro onde encerramos gritos, sorrisos, desesperos e alegrias, e que precisa por isso de libertá-las quando as mesmas são em excesso. Gargalhadas sonoras, choros amargurados, dores sentidas ou felicidades declaradas, têm o direito de ser expelidas quando vivenciadas cá dentro de forma extrema. Existe em nós um auto controlo já por si só suficiente para que mossas ou grandezas se encaixem onde podem e onde não podem, que faz com que a consistência nos transborde do corpo mesmo quando nos abandonou. Por isso, julgo que seria importante e organizador para quem sente, deixar sorrir quem sorri, amar, mesmo que sonoramente, quem ama, e chorar quem chora.

( Um dia destes destruí um castelo de peças à martelada, juntamente com um menino cheio de frestas e lugares repletos de horror. No final sorrimos os dois. Ainda bem que ninguém nos viu.)

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Sempre gostei de analisar caras, gestos e reacções. Não para invadir, mas para perceber. Abuso, bem sei, e entretanto conclui que também é engano. Nas caras das gentes encontram-se muitas vezes construções, meras transmissões de expressão enganadora que podem não dizer nada do que lhe vai dentro. Trata isto eventualmente a nossa individualidade. Um self essencial que reside nos locais que nunca conseguiremos ver, a não ser que nos dêem de bandeja o acesso.

domingo, 22 de julho de 2012

Lavadeiras

Havia um sítio onde as pessoas matavam a sede mesmo ao lado do local onde as mulheres lavavam a roupa. Os tanques eram grandes e levavam quantidade suficiente para lavar os lençóis brancos das camas, os panos onde se limpava o corpo, as vestes pretas com que se trabalhava e que ficavam guardadas para o fim, não fossem tingir a água e o resto. O trabalho era feito com esmero e cuidado. Tapava-se o ralo com uma rolha de cortiça ou com um trapo amassado, deixava-se correr a água fresca e esfregava-se a roupa com força e genica, para que a brancura imaculada e  a devida limpeza das roupas voltasse a povoar as camas, os corpos, as casas. Das bocas saiam cantigas que libertavam as mulheres que tinham sido presas pela vida que as escolheu. Elas sorriam para fora, enquanto por dentro cresciam ninhos onde nasciam dores de alma, farrapos de tristezas, livros reunidos de palavras vãs que se construíam dentro, e que nunca por nunca ser veriam a luz do dia. Há coisas que não vêm nunca a luz do dia mas que não deixam por isso de ser reais no nosso corpo, como se fosse sensato vivê-las e deixar que a alma se entregue à distância de uma vida. De vez em quando paravam e bebiam água. Uniam as mãos em concha, deixavam-na cair até constituir uma pequena quantidade, e posteriormente faziam com que escorresse para a boca seca e cansada de sol. Mesmo ao lado existia um local onde se podia aliviar o corpo dos excessos, constituído por buracos redondos e solitários, para os quais era necessária uma sustentação considerável a  fim de haver equilíbrio suficiente para que o corpo não caísse em falso no chão. Julguei sempre o local amargo. O excesso de proximidade entre a felicidade e a amargura, entre a sujidade e a limpeza, entre o que nos apoquenta e o que nos alivia. No final da tarde, já o sol ia baixo, subiam todas a longa ladeira que as separava do mundo próprio, e deixavam para trás o outro. Debaixo do braço seguia o açafate cheinho de roupa fresca, de cores revigoradas, de água que escorreria e as voltaria a deixar secas e tísicas no arame do quintal.

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A dimensionalidade das coisas é qualquer coisa encerrada dentro das horas do mundo, que vieram e que hão-de vir. Hoje o mundo pode parecer-me imenso, infinito e sustentado e amanhã parecer-me pequeno, mirrado, ínfimo e frágil, e vice versa. Não deixa de me ser estranha esta realidade circunscrita aos desígnios exteriores do nosso ser, relativamente a grandezas suficientemente capazes de nos colocar em sítios opostos num segundo. A volatilidade da existência deveria chegar-me, mas eu, inquieta e insatisfeita, anseio mais. Reúno então questões de fundo para as quais não encontro qualquer resposta possível de me sossegar o espírito, de me aquietar a alma e o corpo, de me permitir existir saciada. Não sei muito bem onde me levará esta busca incessante e geralmente inglória, mas honestamente, e enquanto houver caminhos, deambulo perdida na existência já quase sem medo do que possa ainda descobrir. O medo, sim, esse sentir restritivo, abandona-me a cada dia que passa. Como se fosse sendo destruído por forças que se uniram para o derrubar do meu caminho e para me deixar livre.
A liberdade é outro sentir peculiar. Ambiciono-a, venero-a, mas só até a um determinado local específico. A realmente plena talvez seja uma das coisas que ainda me resiste reunida ao temor. A libertação total e desmesurada assusta-me, a existência terrena carece de pertenças e identidades.
O ponto de equilíbrio será eventualmente o cerne. O sítio exacto onde conseguiremos ficar sustentados neste mundo desconhecido, seguros pela verdadeira existência, ainda que enquadrados nos meandros da realidade terrestre. Aonde é que isso fica, é a questão para a qual eu necessitava de uma resposta clara, neste exacto momento.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

...

Para quem queira ouvir-me falar do assunto, fica a informação...







( A vida é irónica que chegue. Cabe-nos a nós geri-la e vivê-la.)


Riquezas

Já tinha sabido de fonte segura que a tristeza poderia vir a ser a casa das gentes. Poderia nascer-nos no fundo da alma, ocupar-nos o corpo e o espírito, apoderar-se de todos os recantos internos, dos órgãos, do corpo, e instalar-se como se estivesse no local exacto onde pretende subsistir para todo o sempre. Tinham-lhe também já dito que esse sentimento poderia ser uma estranha companhia, uma história construída por alguma coisa francamente boa, que só as coisas francamente boas podem dar origem, e em sequência, a coisas francamente más. Não tinha qualquer razão para duvidar do que lhe foi dito. Quem o fez, expulsou as palavras da boca com uma clareza irrepreensível e com um conhecimento dos factos digno de registar e guardar para sempre no livro dos ensinamentos que todos temos recolhido algures no corpo, ao qual recorremos de quando em vez, esquecendo-o outras sem conta. Sabe porém que há ensinamentos vãos. Palavras que ainda que sabias só adquirem o valor do sentido quando se transformam em acontecimentos vividos, caminhos feitos, sorrisos ou choros, gritos ou abandonos, pertenças ou desilusões.
Mas hoje sabe que de facto tal coisa é possível. Apreendeu de uma fonte mais segura, a sua, única verdadeiramente válida nos dias que a vida nos dá, que a tristeza pode ser um sentimento que se aloja e se aconchega, sem que por isso a alegria nos abandone. Pode dar-se em alternância de tempos, aquela coisa que por vezes parece que deixa de fazer sentido. O tempo, sim, por vezes não faz sentido. Estanca, corre, foge-nos das mãos e regressa quando não o queremos sentir e não queremos que ele nos sinta, nas alturas em que precisamos de existir suspensos na crueldade do mundo, à margem de tudo.
Há horas em que lhe caem umas lágrimas que quase desconhecia, porque o choque dos sentires emerge-lhe de dentro do corpo e instala-se para a lembrar do bom e do mau, do ganho e da perca, da pertença e da ausência. Vale-lhe, digo eu, mera curiosa dos recantos das almas, a supremacia da felicidade, a permanência do já vivido, a certeza e intensidade do que se conheceu. Deixou por ora de apregoar o presente, muito embora não viva no passado. Não quer, não pode, não deve, seria uma pura perca de tempo, inútil, inglória. Vive-lhe um desejo de vida igual ao que sempre conheceu, povoado agora por um novo membro, que irá provavelmente acompanhá-la nos dias, nas noites, nas horas de todo o sempre.
Se morreu uma parte dela? Morreu, e como qualquer morte, morreu definitivamente, mas quase que estranhamente não sente revolta. Não lhe ocorrem aquelas ideias comuns do porquê a ela e não a outra, do porquê assim e não de outra forma, do porquê da ingratidão da vida que leva e traz quem bem entende, sob critérios desconhecidos. Não adiantava sequer senti-la, nada lhe explicaria, nada lhe daria, nem nada lhe tiraria. Sente sim e com força, um profundo reconhecimento pelo privilégio que a mesma vida lhe deu em sentir o que sentiu no tempo que foi vivido, e que poderia eventualmente, e se assim o entendesse, nunca lho ter oferecido ou dado a conhecer. E aí, sim, seria verdadeiramente pobre, coitada, infeliz e sofredora. Ou só eventualmente ignorante.


( E desta feita, vá lá saber-se porquê, também eu já estou convicta de que a vida é mesmo assim. Nosso, não é nada, ou será simplesmente o que vivemos, quando o vivemos e enquanto o vivemos.)

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Fim

Acredito profundamente nos vossos desejos de boas férias. Não foram, não tinham de ser. Falo agora de momentos. Os momentos são instantes que podem ser tudo e podem não ser nada. Que podem valer uma vida ou uma morte, sendo que deveríamos por isso respeitá-los. Eu, levianamente, desrespeito-os vezes sem conta. Julgo-os pedaços de nada, meros segundos insignificantes na imensidão de uma vida. Erro crasso. Podem, sem esperarmos, ser um inicio ou um fim.

domingo, 15 de julho de 2012

Descanso


Este blog por esta altura costuma ir a banhos. Sou esquisita, prefiro os banhos de Julho aos banhos de Agosto. Agosto é bom para trabalhar, enquanto grande parte do País descansa o corpo e o espírito.

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O meu filho é aquele rapaz que para além de me dar pelas orelhas, agora quer uma popa no cabelo semelhante a um Tim Tim, versão cabelo preto. O boné passou de repente do bem mais precioso para o bem mais odiado, coisa que me fez pensar seriamente nesta nossa faculdade extraordinária de transformarmos grandezas extremas em outras completamente opostas.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Bolo de nozes e passas de uva

Não te canto os parabéns a sair de um bolo porque não sou a Marilyn e ainda por cima não sou loira. Deus quis que eu fosse morena, sabes, encaixou-me na normalidade terrena e deixou-me assim, solta aos lobos num mundo onde os espertos, as loiras e os políticos, se safam às mil maravilhas. Nada tenho contra nenhum deles, atenção. Mas é que como eu não sou nada disso a coisa complica-se sinificativamente para o meu lado, mas olha, vai-se andando. Não simpatizo muito com esta expressão, muito embora numa incongruência daquelas tamanhas a use muitas vezes. Nem que me importe de assumir que estou mal se o estiver, ou bem se for caso disso, acho que é mais por hábito do que outra coisa, e quiçá também por cansaço, dado que cabe lá tudo quanto te possa passar pela cabeça. Se estou triste vou andando, que mais remédio, se estou contente também, só que um bocadinho melhor. Se andar adoentada, mal há-de ser se me estorvar seriamente o andar, e se vender saúde ando que me farto. Vou sempre andando, pronto, e é por isso que a expressão me dá tanto jeito. Neste mundo de correria são uma maravilha estas expressões onde cabe tudo e mais alguma coisa, nas quais nunca nos comprometemos mas respondemos sempre, não falhando por conseguinte as regras da boa educação que é uma coisa primordial na nossa espécie. Eu, por exemplo, não suporto gente deselegante, deseducada, que faz barulho excessivo ou que não me responde a um cumprimento. Ainda outro dia um homem escuro de mãos encardidas e ásperas falava comigo enquanto roía um palito, e no meio da conversa teve a bela ousadia de cuspir para o chão. Passei-me. Não suporto gente que cospe para o chão enquanto fala, e que por causa disso coloca fora do corpo partes que não interessam nem ao menino jesus. Bem sei, somos assim, não podemos atafulhar cá dentro a imensa mescla que nos povoa, todo o  enchimento que nos nasce das vísceras que teimamos em entupir com tudo e mais alguma coisa que nos saiba bem ao paladar e ao espírito. Mas a verdade verdadinha é que há coisas que são para expulsar em prudência. Em sítios onde não sejamos vistos, olhados, cheirados, que o interior de cada um é um terreno muito pessoal, seja ele de que ordem for. É interno, pertença do nosso self, logo, e pelo menos na essência, deve permanecer escondido, recatado, apenas exposto de forma criteriosa e delicada. Não muda nada, eu sei. De nada nos vale o esconderijo das ânsias que nos povoam a mente, o abafamento das sofreguidões da carne e o recalcamento das malvadezas que nos espicaçam a alma. Tal como de nada nos vale fingir que não somos gente inundada de matéria orgânica e consequentemente sujeita ao apodrecimento e à decomposição. Continuamos a ser exactamente iguais ao que seríamos se manifestássemos tudo a céu aberto e não resguardássemos minimamente as cavidades que possuímos no corpo. Mas agora só terminando e para que conste hoje, eu, pessoa educada e recatada, se fosse loira e muito bela cantava-te os parabéns saída de um bolo de nozes e passas de uva, num sítio onde ninguém nos visse.

( Isto foi escrito há muito mas ficou guardado. É que depois, para além do sítio, também há aquela coisa do momento. Bhá, tanta merdice.)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

:)

( Gosto de muitas, sem ser apaixonada por aí além por nenhuma delas. Ainda assim aprecio-os porque são grandes e entretanto também porque estão a conseguir ficar velhos, o que, convenhamos, não é para qualquer um, por motivos de ordem diversa. Só a titulo de curiosidade, e caso vos interesse para alguma coisa, existem muitos que eu gostaria de ter conhecido aos 50 de carreira. Elvis, Jackson, Freddie, Cobain, são só exemplos, mas há muitos mais.)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Ninna Nanna


Tempos de uma vida

Sou do tempo em que as crianças têm de estar, ou pelo menos todos ou quase acham que têm, ocupadas nas férias. Em coisas que as divirtam, em coisas que as preencham, em coisas que as desenvolvam, em coisas, apenas para que não parem muito tempo, desocupadas.
Sou ainda do tempo em que passava três meses perdida numa pequena aldeia, com umas idas à praia pelo meio. No resto do tempo, cerca dos dois meses restantes, andava perdida no meio das árvores e dos bichos, das lagoas secas e dos rios sem água, dos baloiços à sombra e das bicicletas com cesto onde se punha o lanche. Ninguém ou poucos me ocupavam a não ser eu mesma, a natureza, os animais e algumas outras crianças iguais a mim.

Memórias

Lembro-me sempre de o ver a chupar rebuçados do velho sentado no banco. Os olhos apresentavam uma expressão alucinada, como se dentro daquela cabeça existissem histórias de outros mundos impossíveis de compreender, que lhe escorriam para fora do corpo e deixavam a envolta curiosa sobre o que lá iria dentro. Não me acontece muitas vezes. Não gosto de invadir espaços que me são vedados quer seja por vontade ou por medo, por salvaguarda, pelo que for. Da boca não lhe saía grande coisa a não ser a expressão de alguma dor sentida nos ossos dos joelhos que já não eram bem osso, eram um qualquer substituto que lhe cravaram na parte articulada das pernas. Em tempos contava esse dia com uma clareza de quem viu e sentiu que o escarafunchavam com força e empenho com um martelo e um escopo, tal e qual ele fosse uma pedra pronta para lapidar. Num instante colocaram-lhe qualquer coisa no lugar que lhe permitiu continuar a movimentar-se nas ruas da aldeia em direcção ao cemitério batido pelo vento. O cemitério era um sitio muito querido e pouco povoado, onde o silêncio lhe permitia uma proximidade relativa com o sossego que nunca conseguiu alcançar. Por vezes era estremunhado. Impedido de continuar no embalo dos ciprestes altos e magros e obrigado a regressar à vida, ora por Violeta, também ela já finada, ora por Florinda, uma mulher detestável que enterrou um braço e uma filha muito cedo. Mesmo assim, combalida de corpo e de alma, reunia velhacaria suficiente para empestar os locais onde entrava com um ar pesado e feroz que assustava as crianças da aldeia. Eu às vezes fugia dela. escondia-me com o meu primo Luís numa esquina de um muro quando ela passava, numa crença ingénua de que não éramos vistos. Éramos. Éramos sempre vistos, mais ou menos como o meu filho hoje é visto agachado no fundo da escada onde me espera no meio das flores que ele julga que o tornam invisível. Luís está longe. Descobriu-se uma doença malvada, acromegalia, que lhe faz crescer as extremidades do corpo devagarinho. Não o vejo há muito, mas disseram-me que a doença está controlada, uma boa notícia, sem dúvida. Vera também está longe. Chegava-me sempre com o verão e com o irmão Miguel que entretanto casou com uma mulata roliça de quem tem dois filhos loiros e de olhos azuis, vi nas fotografias trazidas pela avó. Há muitas pessoas que vou perdendo com o tempo. Falo aqui de uma ou duas, nem por isso as mais significativas, ocorreram-me estas. Sinto-me amiúde na iminência de perder muitas outras. Deveria ser válida aquela regra que regia algumas famílias em tempos, onde por cada morte deveria haver um nascimento. Não perdemos as pessoas sempre pelos mesmos motivos. Perdemos porque tem de ser, perdemos porque vão embora do mundo, ou então do País e da terra, ou ainda porque não foram suficientemente válidas para nós e por isso não continuaram. E vice versa. Não importa muitas vezes os motivos, importa que perdemos, até porque o lugar para todos é qualquer coisa de inexistente. Não temos lugar para toda a gente, temos lugar para algumas pessoas. Ou melhor poderemos ter para muitas, mas mais ao longe, nas nossas memórias. A minha memória é o sítio que eu conheço mais povoado do mundo. Dizem que pode trazer tristezas e outras afinidades. A mim normalmente traz-me pertenças, bocados, mundos que já foram e já não são. Ou são mas já não estão, sendo apenas porque ainda os sinto.

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Percebi pelo que já li hoje em vários blogs que muita gente viu ontem a reportagem sobre a Leonor e a mãe da Leonor. Estendo a outros âmbitos. A doença ou diferença suficientemente limitativa terá sempre um efeito semelhante na vida da mãe, seja ela raríssima ou não. Houve tempos em que eu arriscava pensar, inundada de uma ignorância imperdoável, que imaginava o que seria passar por uma situação de carácter assim tão dramático. Não imagino. Não posso imaginar. Não consigo conceber o que é o desejo, ainda que trémulo e dúbio, de desejar que um filho parta para lhe acabar com o sofrimento. Já senti isso com muitas pessoas. Já me encostei a velhos e novos para que partam mais tranquilos, desejando que a morte os leve depressa e lhes permita a libertação (?). Mas isso são outras pessoas. Um filho é um filho, e o simples facto de ter de sentir no corpo essa vontade, deverá por certo constituir uma dor imensurável e impossível de viver por quem nunca a precisou de sentir. São situações limite e de uma delicadeza extrema, que deveriam obviamente ser acautelada pela sociedade. Uma Mulher quando é mãe é acima de tudo mãe. Mas nunca deveria ser obrigada a deixar de ser tudo o resto, como se a sua vida fosse deixada a repousar até ao dia em que poderá, eventualmente, e num estranho golpe inundado de sorte e de azar, ser vivida outra vez porque o filho partiu. Exige-se uma maior cautela com estas mães que quase deixam de ser pessoas para se tornarem numa forma de suporte de vida da qual depende o seu bem mais precioso. Existem muitas formas de aligeirar e apoiar. Assim o nosso sistema social avance nesse e em outros sentidos tão carentes de intervenção urgente, que preencha minimamente as falhas da própria vida.

terça-feira, 10 de julho de 2012

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O meu filho cresce a cada dia, o que é normal e delicioso. A anormalidade reside na incapacidade das mães crescerem à mesma velocidade. Nós crescemos com eles, mas sempre com uns tempos, consideráveis, de atraso. O meu hoje cresce atá ao alpinismo, o pólo aquático, a exploração. Eu parece que ainda o vejo a brincar com um moinho de areia para o qual deita pazadas cheias, enquanto eu olho deliciada.

Bosão de Higgs

No cerne da discussão estava a descoberta da partícula de Deus. Enfim, a possível descoberta, que as certezas segundo consta ainda estão para vir, não se sabendo quantas ou quando.
Os filósofos debruçam-se sobre as teorias da descoberta, assumem uma existência paralela e possível entre Deus e a ciência, falam uma língua muito próxima da que eu conheço. Ainda assim, fiquei ofendida. Bem sei não haver lugares para mais, mas faltou-me o sentir. Tínhamos a razão e o pensamento mas o mundo não é só isso. A partícula que segundo consta será a base de todas as coisas, o pensamento abstracto e filosófico, que nos explica o que a ciência nas suas limitações não consegue comprovar experimentalmente, dão-nos uma visão muito abrangente do mundo, mas que só é possível imersa no nosso sentimento. Estou habituada a que seja desvalorizado. Nem sequer ponho em verdadeira questão a ausência dele nas discussões, digo ficar ofendida por mera brincadeira. Mas ainda assim julgo que me cabe por exemplo a mim, como caberá a tantos outros, exaltar o nosso sentido como parte integrante da história e da evolução do Homem. Não entra em choque com nenhuma ciência ou dogma da existência, introduz apenas a nossa capacidade de existir no mundo tal e qual ele é, conectados com as visões diversas que se afiguram possíveis, experimentadas, ou apenas credíveis.
Valorizo imenso estas descobertas. Permitem explicações diversas nos mais variados domínios que possivelmente nos permitirão o avanço em novos caminhos e em outras direcções. Novas possibilidades, novas ambições. Mas e agora pergunto, haverá também a consciência, se a dimensão do nosso interior, cônscio ou mais incônscio, aguenta os embates a que a ciência nos sujeita todos os dias? Estará ele capacitado a resistir enormemente às alterações que advém do aprofundamento da sabedoria cientifica, e suas consequências? Será então eventualmente mais segura a epistemologia, enquanto filosofia do conhecimento? Poderão elas efectivamente coexistir em conjunto, em explicação complementar das limitações de cada uma? E conseguiremos nós, seres que vivem e que sentem interna e exteriormente, fazer essa junção de forma saudável e evolutiva, ou, e ao invés, caminharemos para um caos existencial por incapacidade de adaptação capaz?
A nossa vivência no mundo enquanto matéria parece-me, e de acordo com o que conheço, a base de onde efectivamente deveremos partir. Enquadrá-la no pensamento e nas explicações que precisamos de ter será eventualmente o passo seguinte. Como existimos enquanto seres pensantes e intelectuais, talvez seja uma grandeza transversal a ambas que não devemos nunca descurar, sob pena de incorrermos em riscos maiores do que aqueles que conseguimos suportar.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Remédios

Ao deparar-me com uma reportagem que fala dos filhos de mães reclusas relembro uma experiência longa que já vivi, perto de algumas delas. Não é fácil a realidade. Trata invariavelmente um reconhecimento público de que a figura que deveria constituir um exemplo, não o constitui, porque cometeu um qualquer crime que lhe rendeu o encarceramento, durante um determinado período de tempo. Falham um conjunto de situações e o crescimento não se compadece com falhas. Adapta-se, resigna-se, resilia-se, mas sente-se. Mais com umas coisas do que com outras. Sente figuras de referência frágeis, que normalmente se defendem com unhas e dentes, provavelmente porque lhes sentem a fraqueza, tentando, num acto heróico e poucas vezes reconhecido pela envolta, desculpá-los. Sente um mundo um tanto ou quanto estranho, que lhe nega a pertença confortável a um local concreto, onde estariam pessoas que lhes guardariam a existência, mas que não estão, nem guardam. Sente um misto de emoções fortes relativamente ao que está certo e está errado, e aqui, arrisco dizer, é talvez das dificuldades mais difíceis de ultrapassar. Limam-se caminhos, tenta-se criar estruturas de apoio que por muito que sejam boas não correspondem nunca ao mínimo exigível. É uma pena esta constatação, mas não correspondem de facto, é preciso reconhecê-lo. Nem digo que seja por falta de investimento, será mais pela impossibilidade de substituir tudo o que uma criança necessita de ter para crescer em consonância com o mundo. E que pretendo eu com tal constatação? Pretenderei chorar problemas sem solução? Não é o caso. Pretendia apenas uma sensibilização para o assunto, dado que encontro mais indignações pouco produtivas, do que debruces sérios sobre o assunto, e consequentes medidas de acompanhamento e compreensão. Não está tudo bem no que toca ao assunto. Está tudo muito longe de estar bem. E os culpados, se é que os há, não são os indisciplinados, os maus alunos, os que roubam o que podem para aniquilar vazios de alma. Que nunca enchem, claro, a alma não enche dessas coisas. Enche de outras que eles muitas vezes não conhecem, porque nunca tiveram.

( Sim, o mundo também são situações sem grande solução e sem remédios capazes. É uma pena, mas é. Falar do assunto talvez não seja demais, por pouco que nos traga. Trará ao menos a consciência.)

O Não-Assunto, de MST

Continuo a achar um piadão às pessoas que dizem o que acham sem medo de represálias. Indicam-me a existência de uma consistência rara, diria que quase sublime. Eu própria tento ser assim vezes sem conta, mas confesso que estanco perante determinadas máximas, não por medo, mas por protecção. Família, amores, amigos, despoletam em mim um qualquer síndrome que me trava a língua e me faz procurar o jeito. É uma fraqueza da minha existência, que não aguenta como deveria os embates sentidos por quem gosto, e nada a ver com mais nada.
Alargando, aprecio muito quem consegue vir a público, por ser uma figura de destaque, assumir com palavras certas e directas, ou seja, sem qualquer tipo de ajeitamento, a nojeira que povoa a nossa classe política. Como o fabuloso "Não-Assunto", de Miguel Sousa Tavares no Expresso desta semana.

domingo, 8 de julho de 2012

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E é sempre mais ou menos por esta altura que me começa a faltar o Inverno. As manhãs frias e chuvosas, o cheiro da terra molhada e do vento frio. Sim, o vento também tem cheiro, sabiam? Tudo no mundo tem cheiro, até a nossa imaginação. Revigora-me o Inverno, contrariamente ao Verão. Este último cansa-me, mói-me o corpo e o espírito. Perco a clareza e ganho uma languidez infrutífera e desprezível.


sábado, 7 de julho de 2012

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Aquela história das licenciaturas só me parece mal porque agora sinto-me obrigada a explicar às pessoas que estudei mesmo a sério e durante cinco anos, não vá perder a credibilidade. E olhem que eu também já tinha alguma experiência em escutar e em opinar, nem que fosse ao desbarato, e é por isso que eu não consigo perceber como é que a ideia não me bateu. Na hora do desenrasca, ia-se a ver e eu queria lá saber era da legitimidade do papel enrolado.


Children of the bad revolution


Escolhas

Aquela sensação de que temos poder de escolha é de facto fantástica. Somos dotados de livre arbítrio, não haja duvida, mas existem dias em que me pergunto a mim mesma se sou eu que escolho a minha vida, se é a minha vida que me escolhe a mim. Soa um tanto ou quanto a estranho, se é minha, já o deveria ser à partida, logo não necessitaria de escolher-me, mas isto são meras trocas de palavras, erros de escrita, frases sem nexo. O que tem nexo é o resto, a história das escolhas. Há coisas que eu não posso escolher e queria muito poder fazê-lo. Não sei se carecem de exemplos, mas julgo nem serem precisos. No oposto as tais opções. Posso escolher onde moro, posso escolher os amigos que tenho, posso escolher o trabalhos, e isto encarando um leque opcional que nem sempre é assim tão simples. Mas e mesmo que o seja, nada me garante a mim que essas minhas escolhas não trazem de arrasto predefinições vindas de longe, de um sitio onde alguém coloca no meu caminho determinadas opções ao invés de outras, que poderiam ser exactamente aquelas que eu quereria para mim, caso pudesse considerá-las. Encaixa isto no destino, pode ser isso, nas  oportunidades, na sorte. Não somos todos dotados da mesma, cada um tem a sua, e são mais distantes umas das outras do que o caminho que me separa da lua. Talvez seja por isso, para além de outras coisas das quais já cá tenho falado, que nunca me sinto totalmente livre, o que é algo que me faz uma falta do caneco. Ou talvez nem faça, não posso sabê-lo, nunca o senti verdadeiramente. Nunca pude escolher ser livre, é isso, não me foi dada a opção. Nasci presa ao mundo, às coisas e às pessoas. Se um dia me soltam, se calhar posso perder-me, e julgo que a vida, sapiente, sabe disso.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Má lingua


( Segue um post escrito por mim há muito, que ainda me parece actual.  Ainda para mais porque agora cá na terra os fenómenos são levados ao extremo nas redes sociais, coisa que permite o acesso a estas modas quase em directo e com o rabo alapado no sofá. Uma maravilha não ter de sair à rua para meter os olhos nestas verdadeiras lições de bom gosto que eu preciso muito, não fossem elas e não sei o que seria de mim. Mantenho o nome do post. É má língua, pura má língua, e só me lembra o programa do Serrão, da Blanco, do Zink e ainda outros, em versão unicamente feminina e por conseguinte muito piorada.)



Em incursões nocturnas, nem muito habituais em mim, não posso deixar de reparar num fenómeno, que nem sendo de hoje se encontra por ora acentuado, ou no mínimo, mais abrangente. Em épocas de minha adolescência, já há uns anitos, portanto, as jovens vestiam-se de calça de ganga Chevignon ou Uniform, polo Benetton, camisola Levis atada na cintura, e blusão de ganga, também ele de marca, fosse ela qual fosse. Os ténis eram All Star ou Keeds, das mais diversas cores. Eram todas iguais ou muito parecidas, mas aquilo passava, por volta dos 20, vinte e poucos. Hoje o fenómeno alargou em dimensão.
As adolescentes usam calça de ganga roçada, Salsa ou Zara, camisa, normalmente branca Saccor ou Zara, com um cinto castanho, normalmente largo, por cima, sandálias castanhas de cunha ou salto muito alto, da Forever, ou da Fly, brincos e colares gigantes, da feira ou da Natura. As de 20, usam calça de ganga roçada, Salsa ou Zara, camisa, normalmente branca Saccor ou Zara, com um cinto castanho, normalmente largo, por cima, sandálias de cunha ou salto muito alto, da Forever, ou da Fly, brincos e colares gigantes, da feira ou da Natura. As de 30 usam calça de ganga roçada, Salsa ou Zara, camisa, normalmente branca Saccor ou Zara, com cinto castanho, normalmente largo, por cima, sandálias de cunha ou de salto muito alto, da Forever, ou da Fly, brincos e colares gigantes, da feira ou da Natura. As de 40, usam calça de ganga roçada, Salsa ou Zara, camisa, normalmente branca Saccor ou Zara, com cinto castanho, normalmente largo, por cima, sandálias castanhas de cunha ou salto muito alto, da Forever ou da Fly, brincos e colares gigantes, da feira ou da Natura.
Com jeitinho e nos locais certos, conseguiremos algumas de 50, e, já na loucura, meia dúzia de 60, neste propósito.

A necessidade feminina de se parecer jovem para sempre leva as Mulheres para um terreno perigoso, a tocar muitas vezes o ridículo. Tendo encantos em qualquer idade, diferenciados, obviamente, nem percebo porque não os utilizam devidamente, e se atafulham todas (ou quase) no mesmo, sem a mínima adequação ao que são. Bem sei da importância de cada uma vestir o que a faz sentir bem. Duvido, mesmo, é que todas (ou quase), se sintam bem com calça de ganga roçada, Salsa ou Zara, camisa, normalmente branca Saccor ou Zara, com cinto castanho, normalmente largo, por cima, sandálias castanhas de cunha ou salto muito alto, da Forever ou da Fly, brincos e colares gigantes, da feira ou da Natura.


Cansaço

Chego a pensar amiúde sobre os lugares do mundo. Concluo quase sempre que não nos pertencem, não passam de uma mera situação que atravessamos sem qualquer direito a posse, mas que ainda assim tentamos agarrar com fúria de leão. Poderão haver algumas excepções, não duvido, mas mesmo nessas os lugares poderão ser frágeis, questionáveis, discutíveis. Faz parte da nossa natureza tentar que nos pertençam, que passem a constituir uma parte da nossa vida, sítios sob os quais vivemos redondamente equivocados até ao dia em que percebemos que aquele lugar ou não é nosso, ou não é pelo menos verdadeiro, na forma como o concebíamos. Esses enganos desiludem-nos. Colocam-nos num terreno delicado e por vezes novo que tentamos preencher com outras coisas, outros lugares, outras pessoas. Precisamos deles para nos sentirmos inteiros, porque o nosso corpo não basta só por si. Carecemos de sair e de procurar confortos, palavras, sentimentos. É nessas alturas que vagueamos e deambulamos na busca incessante e por vezes pouco selectiva, daquilo a que queremos pertencer. Ou que queremos que nos pertença, não sei bem, talvez se misture. Aligeiramos sonhos, descascamos ambições, criamos alternativas que podem nem ser bem aquilo mas que são qualquer coisa. Qualquer coisa assume-se então como uma resignação quiçá inconsciente, uma alegria morna e sensaborona que muitas das vezes arriscamos viver. Mas mesmo ai estamos enganados. Não é nossa, não nos pertence, apenas traz de acréscimo o facilitismo que nos coloca um sorriso nos lábios e um descanso no corpo já cansado. Não deveríamos cansar-nos. Constitui um estado de conformidade extremo e perigoso, até porque provavelmente não dura sempre. Por tudo e também por nós, que não ficaremos por certo cansados a vida inteira. Existem muitos nomes para apelidar o cansaço. Uns mais doces outros mais crus, mas todos capazes de nos sossegar, pelo simples facto de terem nome. É ali que pertenço, nada posso fazer. Estou cansado, abatido, fatigado, é isso. E sendo assim posso dormir tranquilo.


quinta-feira, 5 de julho de 2012

Walk Away


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No recinto inúmeras pessoas sentavam-se no chão como se o mesmo pudesse ser considerado um poiso divino. Por certo lhes doeria as pernas, os pés, o corpo e a alma de tanto caminharem num mundo que as prende a cada passo e as deixa cansadas. Precisam pois do sossego. A pedra é quente debaixo de uns quarenta graus secos e quase irrespiráveis. Não obstante, o sorriso brota dos rostos cansados. Um casal loiro e claro com uma criança pendurada no colo sobe as escadas enquanto fotografa o mundo que vê à volta. Existem sítios que parecem o mundo. Existem grandiosidades feitas por mãos humanas que nos fazem crer que a dimensão simboliza a riqueza, o poder, a razão. Metem-me respeito essas obras, fascinam-me ao mesmo tempo que me repugnam, um sentimento místico que sinto também em relação a outras coisas. Fascinam-me pela arte, repugnam-me pelo simbolismo, pela excessiva presunção, pela pequenez que incutem em tanto do que as rodeia, quiçá sem culpa ou intenção. Deveríamos ser todos do mesmo tamanho. Não somos, bem sei, mas deveríamos. Não falo em idealismos, ambições, falo em seres e em vidas. As vidas deveriam ter todas os mesmos direitos. Há sítios, quase todos, onde se vê claramente a diferença das vidas. Como se umas fossem as de dentro e outras fossem as de fora.  As vidas de fora são vidas normais. As vidas de dentro são vidas guardadas, protegidas, proclamadas. O que são capazes de dar por tal lugar não ponho em questão. Por certo darão o que terão de dar, assumindo aqui um destino que não gosto, mas o qual por vezes me apetece considerar. Descansa-me, sossega-me, deixa-me como que num sítio à espera que algo aconteça e que acontecerá, se tiver de acontecer. E se não tiver de acontecer não acontecerá. Depois farto-me de estar quieta, à espera. Ganho uns bichinhos no corpo que começam nas pernas e me percorrem por dentro, muito depressa. Incomodam-me e por isso costumo matá-los. Parei um pouco a observar. Subi um sítio muito alto e espreitei a envolta, realmente pequena. Eu estava ali no alto, muito no alto. Não é nada difícil sentir a grandeza quando se olha de cima. Os olhos transformam o mundo de uma forma diferente, quanto mais se houver louvor. Um pódio é sempre um pódio, uma montanha, uma montanha, um púlpito, um púlpito, um altar, um altar.



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