terça-feira, 24 de julho de 2012

Entregas

No salão dos cabelos uma mulher muito gorda envergava uma saia de flores rodada que fazia com as suas ancas dançassem alegremente enquanto andava de um lado para o outro. O cabelo de corte irrepreensível dava-lhe um ar ligeiramente arrumado, completamente contrastante com o resto do corpo desproporcionado mas ainda assim vaidoso, uma péssima combinação. Existem coisas que simplesmente não combinam. Nada poderemos fazer para mudar isso, muito embora continuemos permanentemente a fazer questão na insistência, o que se traduz num mundo muitas vezes incoerente, desarmónico, esquisito, levando este conjunto de palavras muito além do externo, do visível, do atestado a olho nu. Na mesinha da entrada uma outra arranjava unhas compridas de mulher, pintando-as de cores fortes e adornando-as com flores, brilhos e outros enfeites que deixam a classe feminina na beira do delírio. No cesto das revistas inúmeros livros apresentavam cortes cuidados que nos deixam bonitas por fora, emolduradas, cuidadas, suportadas por um conjunto de circunstâncias que nos constroem aos olhos de um mundo centrado no ar, na graça, na harmonia que deveremos conseguir sempre e a qualquer custo, airosamente, deixar emanar. No secador uma velha de rolos na cabeça lê numa revista o fulado que casou com sicrana, o homem que trocou de mulher, a mulher que se retoca sob as mãos de alguém a quem entrega o corpo na esperança de renascer. As suas palavras posteriores são de satisfação. Está mais bela, desejável, sem rugas, o que a deixa segura. Detesta a velhice, não sabe como um dia lá vai chegar. A velhice é de facto assustadora. Introduz-nos a alma dentro de um corpo acabado, leva-nos a pele lisa, as carnes rijas e apetecíveis, os cabelos fortes e resistentes. Tira-nos por vezes os movimentos, a capacidade de escolha, a independência, e deixa-nos subjugados ao cuidado de outro alguém que cuida, ou que pode até, eventualmente, nem cuidar. O cuidado alheio do qual precisamos pode efectivamente ser mesmo assustador. Não é por nada, é pela entrega. Entregarmos o corpo deve ser quase tão perigoso como entregarmos a alma.

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