Há dias em que esquecemos para nós o que damos ao mundo. Como se eu fosse uma mãe que ensina a andar sem me mexer e sem depositar confiança, como se eu fosse uma cozinheira que não sabe ao certo o que deveria colocar no tacho de barro, onde o coelho guisa devagarinho, na receita única e intransmissível do café da avó. Intriga-me e assusta-me, e é num ápice que toco o tormento do que me atormenta, o medo, o escuro, o corredor comprido que dividia o meu quarto do resto do mundo, na minha infância. Houve tempos em que me entreguei a ele. Percorria pé ante pé o que me separava dos meus pais, e sem que ninguém escutasse escutava eu, o som da televisão da sala, mortinha de frio, até que os dois resolviam recolher para mais perto. Nessa altura fugia de mansinho e enfiava o corpo de criança nos cobertores, certa de que os monstros teriam muito respeito à proximidade dos adultos lá da casa, os guardadores de todos os perigos, até dos imaginados. Soube fazê-lo, nunca ninguém deu por mim. Nem pelos meus medos. Houve outros tempos em que fingi que não o sentia cá dentro do meu corpo. Era hábil em escutá-lo só ao longe, numa distância de segurança que me protegia da realidade do aperto que aperta quando menos queremos, quando menos esperamos, invariavelmente, quando menos precisamos, porque tal como outras grandezas supremas de carácter inatingível, surge sempre na altura errada. Sempre sempre. Na sala de análise mais profunda,o diagnóstico foi de evitamento. Nada que me espante, nada que me atormente, nada que me tire o sono, ou não fora eu uma mestre em fingir que sou muito maior do que o que me alaga, muito mais forte do que um leão. E eis que de repente, num eco insistente e persistente, escuto por dentro do meu ouvido, e descubro que o que encaro no meu dia me ataca muito além do que eu consigo arrumar na minha noite. Me aniquila os pequenos passinhos que dou no caminho da escada, comprida, curta, estreita ou larga. E é nestas alturas, inconstantes no tempo e repetidas pela vida, que o encontro de frente no mais simples quotidiano dos dias. Nos olhos de uma amiga antiga. No cheiro de um livro descrito a preceito por quem o viveu. No corpo do velho que já se esqueceu de quem é. Um dia destes passa, claro, não sou dada a choradeiras demasiadas, aprecio mais uma serenidade. Estou errada, estou totalmente equivocada, vou no caminho totalmente inverso ao que sei ser a tábua do equilíbrio. Não serei burra, acho, demorarei a aprender, serei certamente a experiência pura da inércia de acção. E até lá, castigo, terei medo dos monstros e das bruxas medonhas que me levam durante o sono. É merecido, sim senhor.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
domingo, 26 de novembro de 2017
quarta-feira, 15 de novembro de 2017
lugares do mundo
Há sempre um momento em que a dúvida toma conta de um bocado exposto do nosso corpo. Aquele bocado que deambula entre um segredo e uma esconderijo, uma palavra inventada e uma traição, daquelas que se alojam no lugar onde os calos crescem à volta a doerem muito, sempre que um pé toca no chão. Nesses momentos, em que a pergunta assusta mais do que o breu de todos os breus, calamos a voz, na esperança de que as certezas que certificam a dúvida, não sejam mais do que uma imaginação fabulada de um conto ou de uma canção. Há histórias que retratam as nossas com a exactidão de um livro que só uma mulher sabe escrever. Nelas consigo sentir o cheiro do amor que se persegue com jeito de mansinho, discreto, doce e delicado, que nem todos sabem guardar. Consigo decifrar os segredos que engolem os homens que pensam que a única verdade do mundo, é a carne que os compõe. Consigo apanhar com uma mão cheia de letras as frases que contam as diabruras da incerteza, aquela maldita clandestina que bate até nas portas do céu. Nunca soube bem o que fazer com ela, admito, faz parte integrante do meu lado obscuro, cá bem dentro do meu peito. Já tentei várias coisas, posso garantir. Encará-la de frente foi uma delas, mas morri de morte matada. Escusar-me à sua entrada, fechar-lhe a porta, fingir que a não sinto, dar-lhe com um pau seco que apanho no caminho. Até abatê-la com um tiro, à traição, quero lá saber das honras quando o assunto me come as entranhas mais longínquas do meu ser. Nada feito, tende ao pior. A malvada adensa-se, aloja-se, cresce sem ser regada, rebenta sem ser querida, vinga, mesmo quando o meu desejo é que se esvaia já ali, numa poça de lama, numa toca de um bicho, numa maré de azar. O desejo, há, essa palavra fugidia que pertence ao vocabulário do prazer. Disse prazer? Mas que tremenda ousadia a minha, falar de um assunto que pertence ao território dos medos, de muitas mulheres em relação às vontades de todos os homens. Mas por quem me tomo eu? Continuando. Outro dia li um destes, muito apaixonante. Contava a história de uma mulher entre tantas mulheres, esposa de um homem como tantos homens, que a deixou em dúvida, como tantas dúvidas. No silêncio do quarto ela chorava lágrimas como tantas outras, enquanto aquecia um lugar vazio, como tantos vazios, cheio de nadas, como tantos espaços. O lugar aberto para a imaginação do pior era povoado por todo o mundo dos vivos, desde cobras a mulheres, desde despojos e toda a poluição. Preferiu, como tantas outras preferem, amansar o cheiro do lixo. Perfumou-o com violetas lilás do quintal de uma certa senhora, também ela na incerteza do cansaço. E na ânsia de cobrir o grito, chorou baixinho, como só uma mulher sabe chorar. Ninguém a escuta, ninguém a vê, ninguém a sente. Na verdade, ninguém sabe de quantas lágrimas vive cada uma delas. Em cada lugar, como tantos outros lugares do mundo.
domingo, 22 de outubro de 2017
conto
Não sei ao certo se me viveste ou se me imaginaste. Nunca descobri se faço parte da tua vida ou dos teus sonhos, que uma qualquer tempestade externa um dia pudesse acordar. Confesso que nunca me preparei muito a sério para a desconstrução do que seria o nosso amor. Muni-me, também eu, de um livro de capa dura, muitas páginas, uma espécie de mil e uma noites impossíveis de terminar, nem no mundo real, nem nos contos das fadas, nem na ideação do teu corpo. Talvez por isso me tenhas apanhado desprevenida, incauta, entregue à sorte de um despertar clandestino. A culpa foi minha, foi inteiramente minha. Nestas histórias de encantar o permitido é lê-las com muita atenção, monitorizar os pontos, as vírgulas, os parágrafos, as páginas, não saltar letras nem fingir que não se percebe uma entoação. Não se pode descansar dele, é para ler um bocadinho de cada vez, dia após dia, nem que na folha em questão esteja escrito um qualquer conto que nos pique e que faça sangue, porque o sangue que corre é sinal de vida, enquanto o sangue que pára, será sempre sinal de morte. Nesse livro as lágrimas deveriam ser secas sem cair, morrerem no caminho entre o rosto e o papel. As folhas das flores deveriam perfumar sem partir, e a leitura deveria ser marcada com uma delicada fita de cetim, sem dobrar folhas de história que possam ficar vincadas para todo o sempre. Para os ingénuos desprevenidos, estes são uns livros perigosos, muito além do entendimento, muito mais velozes do que a velocidade do meu coração, parvo, pequeno, que bate ingénuo no meu corpo já triste. Não sei ao certo se me viveste ou se me imaginaste, repito. Nunca descobri se faço parte da tua vida ou dos teus sonhos, que uma qualquer tempestade externa um dia pudesse acordar, relembro. Talvez por isso quando adormeço e sei que dormes, enrolo-me com cuidado nos meus sonhos, não vão eles tocar os teus e haver então um encontro. Neles coloco o livro imaculado do conto das fadas, mesmo ao lado da cabeceira da minha cama, imediatamente antes do copo de água que serve para me refrescar neste verão tardio, um cansaço. O verão cansa-me o corpo, já sabem. A minha sorte é que os contos de fadas, me devolvem sempre à realidade.
quarta-feira, 18 de outubro de 2017
terra molhada
Os livros ensinaram-me a teorizar os sentimentos como quem matematiza o impossível. Explicaram-me que na mente humana existem doenças e faculdades, desejos e vontades, disseram-me que a empatia terapêutica é a melhor arma contra o terrorismo da solidão, logo a seguir ao amor de quem gosta mesmo muito de nós. Aprendi tudo sem grande dificuldade. Decorei compêndios enormes, recito-os de uma lado para o inverso, canto de cor mnemónicas que me auxiliam a memória, não vá dar-se o caso da dita me atraiçoar na hora das provas finais. Mas o pior, o grave, a mais complexa dificuldade de todas, é a inexistência de quem me tenha ensinado a fixar alguém que olha de frente para a morte, todos os dias que lhe restam de vida. Alguém que sabe com uma exactidão lúcida do que padece, que conhece, muito melhor do que eu conheço o DSM, os sintomas do fim. Alguém que conta pelos dedos de uma mão os meses nos quais vai poder continuar a respirar todos os dias, quem sabe até ao Natal, quem sabe até ao ano bom. E então o que me acontece é que eu olho para estas pessoas muito devagarinho, como se o tempo tivesse parado num lugar onde a vida não acaba nunca, e onde os minutos podem ser vividos com a calma quente da eternidade. Olho com um sentir de esperança vã, que me guarda muito mais a mim do que a ela, porque se eu não fizer assim desfaço o corpo num mar de impotência que me colheria a voz, os gestos, os sorrisos e a direcção. Olho com uma dificuldade de quem bate muitas vezes de frente com a dor, aquela que engole pessoas num trago maior, rápida, certeira, capaz de vingar até o mais forte de todos os fortes de todos os fortes. Nestes dias, em que a minha profissão me pesa mais do que os anos, os quilos, os sonhos ou os desejos, encolho-me um bocadinho e regresso a casa mais veloz do que um pássaro que se esconde da caça. Abro a porta, espreito, e se a fechar com jeito deixo tudo no vão da escada. Tudo menos o que insiste em vir comigo. Que chega a ser muito, que chega a ser demais.
Felizmente chove. O cheiro da terra molhada sempre me deu colo, desde o dia em que eu nasci.
domingo, 9 de julho de 2017
somos sempre todos
A família fala dos seus mortos como quem fala dos seus vivos. Tal como se eles ali estivessem, sentados à mesa, a comer da mesma panela e a beber do mesmo vinho. A magia da memória reside na narrativa das histórias que contamos à mesa, e que guardamos dentro de nós enquanto crescemos e nos lembramos de quem nos contou as vidas da família, que vão morrendo à medida que a terra engole as vozes da sabedoria. Hoje era migas com bacalhau, e Albertina comeu-as de faca e garfo, regadas a um gole de tinto. Israel preferiu a carne, o peixe não puxava a carroça dos homens da família, servia apenas para dar trabalho aos pescadores e às senhoras da praça, e ainda à minha avó, que amassava bolinhos de bacalhau sempre que havia uma sobra pequena, envolvida a ovo, salsa e batata moída no passe-vite. Ela esteve descalça, como sempre. Cortou fatias de pé duro com uma faca do mato, que o pobre crescia além da conta, muito mais grosso do que qualquer cardo ousasse espetar. Ele esteve avinhado, cor de rosa, e não sei se já tinha partilhado que o meu maior sentido é o olfacto. Conheço de cor o cheiro de todas as pessoas da minha história, e o cheiro dele era inconfundível, acre, meio adocicado, um misto de gosto e não gosto que nunca mais na vida me vou esquecer. O meu tio, já velho, esteve também em novo, à mesa connosco. Vestiu-se de calções e chinelos, arrancou os dentes da frente e voltou à escola, no dia em que, chumbado de ano, fugiu de casa, não fosse chover. O aviso era: - se estiver tudo calmo acenem-me com um lenço, no depósito alto da aldeia. Se não aparecer ninguém, desapareço. Apareceu, claro, a minha mãe, que hoje vestiu um vestido branco florido, cortou o cabelo à tigela, agarrou numa fronha de lençol e foi ao depósito da água combinado, acenar para o vazio. Eu estive também pequena, lá no mesmo depósito, no tempo em que os garotos não caiam nos poços nem nas alturas, podiam brincar nos cemitérios e andar em bandos soltos pela estrada, a comer azedas e outras flores que não envenenavam barrigas. Ia sempre lá ver a alvorada, na noite de São João, altura em que Israel me dava uma bola de serradura colorida, atada a um elástico, que saltitava na minha mão até se partir pela força do cansaço. Hoje, posso jurar-vos, estivemos todos ali. Os novos, os velhos, os vivos e os mortos, os de longe e os de perto. É assim que uma verdadeira família permanece no tempo: somos sempre todos, somos sempre todas as idades. Mesmo que a realidade teime em contrariar-nos, e insista na falsa teoria de que se pode morrer para sempre.
terça-feira, 20 de junho de 2017
falhou tudo
Falhou tudo, como falha há décadas. O resto das considerações e críticas, parecem-me francamente irrelevantes.
sábado, 17 de junho de 2017
cigano
Arminda perdeu-se de amores pelo cigano. Compreendo-a perfeitamente, é muitíssimo mal amada, ninguém a vê, passa pelo mundo demasiado depressa, por entre umas palavras aceleradas e uns gestos ansiosos, que denunciam a necessidade de impacto exteriorizada muito para fora daquele corpo farto. Outro dia perdi uns bons minutos a olhar para ela, deve ter sido em tempos uma linda mulher. Possui uns olhos verdes que não desaparecerão com o tempo, uma cintura comida pelas carnes, uns caracóis mesclados de chocolates, ainda doces, e uma boca carnuda, demasiado bem delineada para o resto do rosto desorientado. As sardas dão-lhe um ar de miúda que muitas de vinte não encontram. Ela não percebeu que eu a mirava daquela forma, implicou-se na razão do seu contacto, barafustava com as mãos e a voz, abanava-se muito enquanto eu acenava com a cabeça como se escutasse tudo aquilo que ela me dizia ( posso lá eu ouvir tudo o que me querem dizer com atenção, sem eu própria enlouquecer). Hoje soube do cigano, e fiquei muito feliz por ela. O cigano é moreno e bonito, com uma barba que faz jus à tradição e não se corta nos primeiros meses de luto, pelo patriarca da família. É pouco falador, ligeiramente envergonhado, de sorriso fácil e de ar sério e confiante. Imaginou-se nos braços dele desde que o conheceu, pois só ali, disse-me por fim, sentiu que poderia desembaraçar o emaranhado do seu cabelo. Só ali poderia descansar os olhos que não mudam de cor, mas que turvam com a velhice, e só ali a sua meninice poderia despertar de novo para os dias da existência, por entre uma cintura de excessos e umas rugas de expressão. Fico mesmo muito feliz por ela, volto a dizer, encontrou o amor num dos melhores locais onde se pode encontrá-lo: o sítio onde a sociedade condena, a inveja mata, e a paixão triunfa.
domingo, 11 de junho de 2017
medo
Descobri há pouco tempo que os nossos maiores medos podem acontecer. Não aqueles que abraçam os sonhos no meio das noites, em que caímos de nuvens macias, corremos em fuga sem nunca sair do lugar, somos engolidos por ondas gigantes ou por buracos infinitos que nos fazem acordar num salto, para logo no minuto seguinte nos encontrarmos na nossa cama a sossegar o corpo atordoado. São medos daqueles que nos perseguem a raiar a loucura, mas que bem vistas as coisas acontecem no mundo onde vivemos, para nos lembrar que nos dias da existência, pode mesmo mesmo, morar o abandono. Uma criança morreu de fome agarrada à mãe, que faleceu de doença súbita, e ninguém deu por falta dela. Ou melhor, deu, mas não se procurou o suficiente para a encontrar, e ela, agarrada a uma mãe morta, morreu também, sem nunca a largar. Fiquei aflita, engoli em seco, respirei muito fundo e trouxe à minha memória aquele que talvez tenha sido o meu maior medo, desde que fui mãe. O meu maior medo durante muito tempo foi estar sozinha com o meu filho, e ruminar insistentemente no que lhe aconteceria, se algo súbito me ocorresse a mim. Hoje os anos serenos ensinaram-me que eram delírios exagerados de uma ansiedade mórbida, quiçá originada na inexperiência e no stress materno da primeira viagem. Aquela mãe aprendeu de outra forma, bem mais violenta, outra coisa completamente diferente. Por esta hora, alguém já lhe deve ter dito que os medos maiores podem não ser delirantes, que a vida é um imprevisto duvidoso, e que não há medo de mãe que seja maior do que a realidade.
terça-feira, 6 de junho de 2017
silêncio
Escorreguei numa piscina e espalhei-me ao comprido no chão do hospital. A culpa foi da vaidade, escovava o cabelo com muito jeito, entre uma água no chão, um casaco no braço, um batom na mão, o objectivo era mesmo estar linda quando saísse para a rua. Não consigo, já não sou capaz. Já não há rimel que me erga as pestanas ao infinito, penteado que se segure firme, blush que me torne as maças do rosto salientes o suficiente, e corrector de olheiras que me aligeire os papos dos olhos, construídos uma noite de cada vez, devidamente adensados pelos dias, esculpidos pelo Inverno e corados pelo verão, que acaba sempre por me ir passando sorrateiro pelas frestas das janelas. Olhei em volta e percebi que estava sozinha. Não havia vivalma que por ali estivesse, certamente alguém tinha tomado banho no lavatório e tinha ido à sua vida, quem sabe era uma armadilha devidamente elaborada por algum ser descontente. Sendo assim levantei-me depressa, sacudi as vestes do corpo, sequei as pernas e os pés e fui andando pelos corredores, direita, como se nada me tivesse acontecido, muito embora as dores se instalassem devagarinho como uma praga, no meu pé esquerdo. Foi há quinze dias, e o dito lembra-me a toda hora que a vaidade custa caro. De cada vez que dou um passo, tremelico. Se ouso colocar um salto, grito. Se os ato num atilho elegante e fino, abano para todos os lados, e de momento, a única coisa que me permite com a placidez do seu orgulho é um ténis jeitosinho, com umas risquinhas douradas, discreto, invisível, sossegado. A senhora amorosa da fisioterapia já me informou que vou ter uns meses penosos, mas pela parte dela, estamos quase despachadas. Fiquei muito feliz ao ouvir isso, nem imaginam quanto. Ela não sabe, mas eu tolero bem a dor residual. Consigo abandonar a vaidade, teimosa e já inglória, consigo encontrar no conforto de um calçado baixo, o suficiente para me sentir segura e satisfeita. Neste preciso momento, só não suporto mais os desabafos das senhoras que bondosamente me afagam os pés. São monótonos, monocórdicos, pouco interessantes, centram-se nas receitas da cozinha, nos arrufos com o marido, nas dificuldades de gerir os velhos da família. Há locais, como por exemplo estes, nos quais deveria ser proibido conversar, sob pena de morarmos num mundo profundamente desequilibrado: ela precisa de falar, na exacta medida em que eu preciso de silêncio. O silêncio não é de ouro, o silêncio é de vidro, parte-se a cada instante, morre em quase todos os locais que eu conheço, debaixo de umas palmas ensurdecedoras. Com todos de pé, altos e elegantes, a gozar o prato do meu pé torcido, dorido e inchado. Barulhento que só visto.
domingo, 14 de maio de 2017
importâncias
Eu e o meu marido hesitamos muito em ir comer sushi. Ouvimos dizer que as larvas podem crescer dentro das pessoas, e na verdade nem um nem outro aprecia esse tipo de parasitas a comer-nos o intestino, é qualquer coisa de muito assustador, mesmo que as ditas sejam selectivas e se abasteçam apenas de uma pequena parte. Ainda assim arriscamos, o Benfica tinha sido campeão, deveríamos celebrar, e não há nada melhor do que peixe cru e vinho branco, devidamente equiparado a pizza e vinho tinto. Percebemos logo à chegada que a rotunda estava invadida por adeptos, um dia perderei uns minutos do meu precioso tempo a perceber o fascínio do meu País pelas rotundas, um circulo, muitas vezes miserável e esquecido, à volta do qual usualmente circulam carros, e que se torna um monumento de culto quando alguma grandiosidade acontece, no campo futebolístico, e eventualmente noutros territórios de orgulho nacional ou parcial. A festa da vitória vivia-se muito a sério, com saltos, gritos, foguetes, foi difícil caminhar lá no meio mesmo pertencendo à equipa vencedora, a euforia estava ruidosa, ligeiramente histeriónica. De resto o dia para nós ainda não tinha acabado, faltava saber de mais uma grande proeza, o festival da Eurovisão, o Salvador, o Amar pelos dois. À medida que engolimos devagar os peixes molhados com soja e Wasabi, fomos dando palpites sobre a canção que se dedica a convencer o público de que alguém pode amar por duas pessoas, e fizemos até questão de nos incluirmos nesse processo. Concluímos ser um dispêndio de energia desnecessário, amar por um é complicadíssimo, pelos dois deve ser uma tarefa impossível, com exigências fortes em termos emocionais, capaz de matar de vez fora dos contos e das poesias. Mais lá para o fim da noite, já a mousse de chocolate tinha aninhado o estômago no conforto do sossego, eis que somos vencedores, e o 13 de Maio assiste a mais uma festa, desta vez muito abrangente. Considerações finais dignas de realce: as ténias não nos impedem de comer suchi; o país é maioritariamente benfiquista, e consequentemente, fortemente efusivo e excessivo; o Salvador, o Benfica e o Euro são muito importantes porque vencemos, sendo que o valor real de cada um deles é simplesmente subjectivo; ao fim do dia, já ninguém se lembrava do Papa, das normas de segurança, da fé e da humildade; somos um seres particulares, eu incluída, pois a única coisa que realmente me apetecia era brindar a todas as vitórias; a humildade, a bondade, o espírito de sacrifício e a derrota, são enormidades que realmente cansam muito, não deveremos perder muito tempo útil com elas, é muito mais satisfatório desta forma: primeiro o banho espiritual, depois os prazeres da carne, da gula, do orgulho e da vaidade.
quinta-feira, 11 de maio de 2017
Guronsan
Está patente na sociedade actual a franqueza aberta do sentimento. Neste paradigma quase devemos a obrigação da honestidade extrema, e sendo assim sentimos-nos no direito de dizer o que pensamos, como se fosse uma regra de conduta que subjuga os humanos que se cruzem uns com os outros, no dia a dia. Sou absolutamente conta esta realidade desde sempre, e à medida que o tempo passa chego a considerá-la como um crime que deveria ser punido por uma lei legislada e devidamente registada, na Constituição da República Portuguesa. O meu pensamento é meu e pertence-me, e não, eu não posso nem devo, dizer tudo quanto penso. Porque muitas vezes penso várias coisas sobre uma mesma pessoa, exactamente a mesmo tempo, totalmente contraditórias, entre o abonatório e o menos bom. Porque seja quem for que está do outro lado, próximo ou distante, parente ou confidente, a obrigação de ouvir os meus esgares opinativos é nenhuma. Porque por dentro tenho o direito de chamar nomes a quem eu entender, como por exemplo acontece quando espero na fila do talho que a D. Maria compre as salsichas, escolha os bifes da vazia, encomende um coelho cortadinho ao jeitinho para guisar, e um entrecosto fatiado a direito, mesmo pronto para ir para o forno. E claro, no último minuto de direito de antena costuma lembrar-se ainda do chouriço e do queijo fresco, da marmelada caseira e de uns ovinhos de codorniz, que fazem sempre falta lá em casa. Mas a D. Maria não tem rigorosamente nada a ver com isso, é só o que eu penso sobre ela, não é ela. Porque há dias em que acordo ligeiramente mais feminina do que o habitual, e um lápis colocado direito pode fazer-me tanta espécie como um lápis colocado torto, como um lápis colocado no chão, como um lápis roído na ponta por uns dentes ansiosos, tudo porque naquele dia, a confusão vem de dentro de mim e não do exterior. E como isto é a mais pura das verdades, como na essência das coisas o que nós pensamos é nosso e não pertence ao mundo, vem das nossas conclusões, das nossas considerações, dos nossos azeites e dos nossos azedumes, e como felizmente temos o direito de pensar até à exaustão do sentir, da loucura, do ridículo ou da maldade, a instituição da máxima de todos dizermos o que pensamos, está profundamente errada. Nós não devemos nem podemos dizer tudo o que pensamos, sob pena de enfartar os outros de material indigesto, sob o desígnio da frontalidade absoluta. É preciso ter cuidadinho: eu já penso tanto impropério, já mastigo tanta má língua, já engulo tanta impertinência externa, tenho lá agora ainda digerir os impropérios dos outros, mascarados de boas intenções, daquelas que moram algures lá para o inferno. Só se for a Guronsan.
domingo, 7 de maio de 2017
invisível
Fui mãe muito mais cedo do que aquilo que o meu corpo sabia e dizia. A maravilha da natureza é que há funções para as quais se automatizam os gestos, como se fossem um respirar, e no minuto em que o coloquei cá fora fui aprendendo, a seu tempo e a nosso modo. Aprender a ser mãe não é como se lê nos livros, não há livros, não há saberes, não há palavras sábias de quem já foi. Aprender a ser mãe é um processo dual sem fim, que se aprende em cada dor, em cada caminho, em cada vitória e em cada medo, enorme, de que o passo tenha sido maior do que as pernas que Deus nos deu. Não é, nunca é, Deus dá-nos as pernas que precisamos para andar sempre um passo ao lado de quem vemos crescer. Nunca demasiado perto, sempre numa distância segura onde o voo se equilibra na medida exacta do conforto de um colo, onde não se cai senão quando tem de ser, onde se avança, onde se olha para trás, onde se espera, sempre sempre a alcançar qualquer coisa de grande, em nós e nos nossos filhos. Não sei muito bem qual será o objectivo final de todos os caminhos desde que comecei a perder as minhas segundas mães, desde que elas me deixaram sem elas numa estrada que me liga à sua história com um traço continuo, mais grosso do que uma corda de marinheiro. Nesses dias percebi que as pessoas que amamos podem deixar de estar aqui, mas que na verdade a memória do que guardamos pode ser o bem mais precioso das raízes que nos seguram à terra, e que enquanto houver memória e narrativas de história, nunca ficarei sem colos onde me deitar. É também nesta ausência de corpo presente que preciso de me sentir, o amor também se faz na ausência física do quem nos quer todo o bem. Porque só sabendo que estamos quando não somos vistas, só sabendo que voltamos quando não estamos ali, só dando a segurança do adeus que sabem ser sempre só por um bocadinho, damos aos nossos filhos a possibilidade de crescerem num mundo onde podem ir até ao infinito, quer saibam para onde seguem, quer procurem para onde vão. O amor das mães tem tanto de visível quanto de invisível. Por isso é único, por isso é eterno, por isso acompanha os filhos num colo impossível de explicar, nas imensas palavras que a minha mãe me ensinou.
quarta-feira, 3 de maio de 2017
papoila
Hoje encontrei a Joaninha nas redes sociais a agarrar uma papoila muito perfeita, enquanto olhava com dedicação para o seu novo amor. Este baixava a cabeça ao nível do seu olhar, e sorriam um para o outro, moderadamente, para a fotografia. Lembro-me muito bem da Joaninha há uns anos atrás. É impossível não lembrá-la, Joaninha fazia questão de se dar a conhecer, de ocupar o seu espaço de rigor, de mostrar sempre que a razão era a erudita deste mundo, e que qualquer fraqueza de menina era uma leviandade. Gostava muito de elevar a voz a uns gritos muito estridentes, de primar pela ordem, pelo exagero, o politicamente correcto, o perfeito. Com ela por perto não havia lugar para sentir o que quer que fosse além do protocolo, escolhido a dedo para a ocasião, nascido e criado para cumprir, repetir, elevar à exaustão do caderninho de duas linhas onde antigamente os pobres desajeitados escreviam cópias sem parar, em tamanho reduzido, nem que a maleita estivesse nos olhos e a cura morasse numas armações de massa grossa. Ao deparar-me com ela naquele propósito, criteriosamente desmanchada, despenteada, significativamente envaidecida e adornada a flores do campo, fiquei um tanto ou quanto desorientada. Olhei-a insistentemente à procura do rigor do camiseiro, do olhar sério e carrancudo, do ar espartano dos cabelos, e mais, da pose concisa e precisa da sua casta posição. Qual não foi o meu espanto, quando não encontrei nada disso. Qual não foi a minha surpresa, quando vejo uma Joaninha apaixonada, a mesma que há uns bons anos matava com o olhar as pobres das raparigas que se aventuravam a sorrisos e beijos discretos, como se as ditas cometessem um pecado capital, ao sentirem sem vergonha o amor adolescente. Fiquei feliz por ela, finalmente sorriu e olhou para tudo o que uma paixão pode fazer. Deve ser grande, deve ser enorme. Só assim percebo o pormenor da papoila entre os dois, de pétalas delicadas, batidas pelo vento ao entardecer, tudo isto sem morrer. O amor é o que move o mundo. O que mata o ódio maior, o que engrandece as flores menores, o que ridiculariza as almas embrutecidas que se engolem a si mesmas, num só trago. Deve ser neste exacto momento que alguns não suportam e perecem, engasgados.
segunda-feira, 1 de maio de 2017
pombos
O meu marido disse-me hoje que finalmente se desfez da magia do nosso sexo. Agora era como se ali pudesse estar uma qualquer mulher em vez de eu própria, como se de repente o que significasse o amor fosse um bocado de carne com pernas e coxas, como se a minha cara e a expressão do meu rosto fossem um pormenor secundário, que se dispensa na hora de dar azo às vontades. Não fiquei mesmo nada surpreendida. Não me atingiu em lugar nenhum, foi como se aquelas palavras quisessem dizer exactamente o contrário, foi como se da boca dele saísse um inverso, que me desse o conhecimento do seu amor por mim, e do que eu lhe represento nos dias da existência. Passado umas horas fiquei a analisar o sucedido. Fiquei sorumbática, taciturna, qualquer coisa entre o angustiada e o pensativa, tudo enquanto o vizinho da frente, gordo e de bigode farto, alimentava os ratos voadores a pão duro, uma migalhinha de cada vez. Demorou uns bons minutos, e eu fiquei-lhe tão grata pela paciência. O sol mal nascia, e a passarada barulhenta voava ao redor das suas pernas, enquanto ele retirava de um saquinho de supermercado as bolas de pão retardado e as desfazia entre as duas mãos, a olhar para o ar, como se aquele pão não significasse coisa nenhuma. E não significava. Pão é pão, mas aquele era duro, bolorento, esverdeado, já não satisfazia as necessidades da casa, nem torrado com boa manteiga, nem de açorda, nem em quadradinhos para a sopa de tomate fresco. Passados uns minutos, já o sol ia mais alto, já os pombos voavam, já as pessoas esticavam as pernas na pista escura do rio, o meu marido acordou. Apareceu-me de mansinho por detrás dos meus ombros, deu-me um beijo no pescoço, ligou a máquina do café e acendeu um cigarro, ao mesmo tempo que abriu a janela de par a par, para sentir a brisa na cara e respirar ar puro. A conversa foi amena, era feriado. Não havia missa mas havia o ócio, próprio dos comunistas no dia do trabalhador. Como nada mais havia para fazer, discutimos política na mesa da cozinha. Recuperamos bons programas de sátira, enumeramos maníacos de intelectualidade comprovada, dissertamos sobre os mestres da nossa história, um conjunto de personalidades que o País possui, algumas esquecidas nos cofres da loucura, outras eternizadas pela genialidade. Todos os grandes têm questões estranhas, concluímos por fim. Fernando Pessoa era detentor de uma eventual bipolaridade, Antero de Quental levou a sua vida ao destino do suicídio, numa depressão constante, outros, muitos outros, verdadeiramente grandes, deixaram que a própria vida passasse entregue ao mundo interior do inconsciente fragmentado. Foi muito animada a conversa, e quando nos levantamos já não havia nem homem, nem pombos, nem pão. Ele agarrou-me pelos ombros e disse-me, ao meu ouvido, - minha querida, és o amor da minha vida. Virei e cara e beijei-lhe as mãos. Senti-me tão sossegada.
sábado, 29 de abril de 2017
piso 7
No Hospital havia muita gente. Velhos, novos, centenas de pessoas passeavam-se hoje pelos corredores do edifício velho, e as esperas no elevador demoravam minutos, em vez de um instante. No turbilhão de pessoas deu-me uma aflição e necessitei de ir à casa de banho. Procuro uma vazia, uma com fecho, uma com porta, e após subir e descer vários andares deparo-me com uma muito limpinha, onde uma velha loira lavava a dentadura. Entro para o átrio do lavatório onde os dentes repousavam quietos, e fico a esperar que se ausente, queria fechar a porta exterior. Não foi possível. A velha empenhou-se muito nela própria, e começou a retirar da mala vários utensílios de maquilhagem, uma escova de cabelo, uma caixinha de comprimidos, uma garrafinha de água, tudo enquanto eu cruzavas as pernas com força, necessitava de conter o corpo que ingerira coca-cola ao almoço, zero calorias, muito gás, 33 centilitros de liquido. A certa altura, decidi para mim própria, minha menina, pede ajuda à velhinha que te agarre a porta e avança, caso contrário nem a velha anda, nem tu te alivias. Peço licença e entro. Encosto a porta que não fechava a sério, e fico a rezar para que naqueles segundos a velha não desapareça de me guardar o caminho, mas foi em vão, sumiu-se de mansinho mal lhe virei as costas, enquanto emitia umas palavras imperceptíveis, muito baixinho. Apresso-me e saio, muito mais rápido do que o que entrei, e fico realmente espantada com o que vejo enquanto lavo as minhas mãos. Abandonada, entregue à sua própria sorte, estava a dentadura, há minutos lavada a preceito, escovada e zelada como se de uma verdadeira preciosidade se tratasse. Não se encontrava na segurança de um lencinho, na guarda de uma caixinha, na solidez de um local que a protegesse das mãos curiosas, dos olhos enojados, das senhoras da limpeza que desnorteiam tudo quanto lhes passe no caminho. Fiquei a olhá-la, tenho uma relação muito própria com dentaduras desde que Justa não conseguia encaixar a que lhe pertencia, e as senhoras que a cuidavam, teimosas e zelosas, insistiam com força na boca aberta da criatura assustada. Encaixa primeiro daqui, avança dali, desencaixa dacolá, tudo até se perceber que afinal de contas a dentadura de Justa era a que por engano Alfredo, depois de morto, tinha levado para o caixão. Entre gargalhadas e desespero concluiu-se sabiamente que há coisas bem piores, e foi o que eu fiz hoje, naquele exacto instante. A velhinha esqueceu-se dos dentes no lavatório do hospital. Por esta hora, já em casa, tentará lembrar-se onde raio os deixou, em que lavatório os lavou, em que casinha de banho podem ter sido abandonados. Não se lembrará, estou certa de que irá ter de encomendar outros, de que jamais lhe ocorrerá ir procurá-los à secção de perdidos e achados de Santa Maria. É a sorte dela. Caso fosse, caso se sujeitasse a tal desastre, por ora poderia incorrer no risco de experimentar apêndices esquecidos, pertença de um outro alguém distraído, guardados juntamente com lencinhos, carteirinhas, chuchas e biberãos. Podem não acreditar, mas a seguir a ela fui eu, a maior beneficiária desta história. Não tive guardiã, é certo, mas fui vigiada uns instantes pela sua dentadura, o que me deixou na sensação de que bem vistas as coisas, estava extraordinariamente segura. Nenhuma outra senhora aflita invadiria aquele espaço, adornado a próteses dentárias, situado algures no piso sete, tenho absoluta certeza disso. A intimidade serena com este tipo de utensílios, não é para qualquer criatura.
domingo, 23 de abril de 2017
quarto crescente
A adolescência é a altura da vida em que o horizonte se abre e se esconde ao mesmo tempo, diante dos olhos. É onde o caminho parece querer desenhar-se num mundo de oportunidades, ao mesmo tempo que o corpo choca com tudo de frente, pessoas, objectos, ideais e limites. É a primeira vez na nossa vida em que as idades se tornam difíceis de encaixar em concreto, onde se é suficientemente grande para ser responsável, e ainda muito pequeno para sair à noite, muito crescido para arrumações de espaços, tremendamente infantil quando se trata de emitir um parecer, que pode até ser consistente, mas não apresenta a substância da maioridade e da experiência. É uma fase de procura e desencontro, de escolhas para uma vida que por vezes nem sequer sabemos o que são, mas é o sistema, e portanto teremos mesmo de escolher se queremos letras ou matemática, ciências ou desporto, temos de pensar no futuro ( o que será isso do futuro?). E facilita um pouco se fingirmos que tudo isto é fácil, perante o adulto que já esqueceu que o Rui Veloso cantava uma música fixe, que dizia o que todos sentimos, mas num ápice esquecemos. Não há estrelas no céu a dourar o caminho dos adolescentes, há muitas vezes umas nuvens estranhas de onde chovem gafanhotos enormes. Por mais amigos que tenha sinto-me sempre sozinho, porque cada um deles tem o seu próprio mundo diferente do meu, ou então demasiado igual, tão igual que é impossível encaixar, é como um puzzle de peças semelhantes. Tão depressa o sol brilha, como num instante está a chover, e pode ser no mesmo dia ou na hora seguinte, porque o teste correu péssimo, porque a namorada foi ali e já não veio, porque uma borbulha explodiu no rosto, exactamente quando passou o rapaz mais giro lá da escola. O isolamento na adolescência (e sempre, sempre sempre...), nem sempre é visível. O isolamento na adolescência pode encontra-se mascarado de sorrisos nervosos, de algumas pessoas ao redor, mas vai muitas vezes aparecendo discreto, à espera de ser visto e despercebido ao mesmo tempo. Estranho, não é? Não, não é. O isolamento nem sempre significa que queremos estar sozinhos. O isolamento pode simplesmente querer dizer que não sabemos de nós, que nos perdemos numa estrada sem candeeiros, e que precisamos que nos acendam a luz. E pode também significar que precisamos de uma mão que realmente esteja só ali, sem arriscar a superioridade do que está certo e do que está errado, e que nos deixe apenas sentir que existem mãos que não julgam nem criticam. E pode ainda, sim, significar isolamento real, aquele que já pode trazer dores mais difíceis de curar, muito mais compactas do que qualquer música de um rock a sério consiga adormecer. Lembro-me tão bem de ser adolescente que hoje continuo a admirar cada um deles, quando com os cabelos na testa me desafiam a inteligência. Estamos aqui e somos donos do mundo, parecem dizer-me. E são. Mesmo que não pareça, mesmo que se percam, mesmo que precisem de caminhos alternativos. Têm no corpo todas as direcções. Só é preciso não deixarmos que o mundo deles escureça além do que os seus olhos vêm, numa noite de lua em quarto crescente.
domingo, 16 de abril de 2017
:)
Chegamos há demasiado tempo à era da felicidade. No seguimento desse caminho encontramos cada vez mais teorias de sucesso que nos ensinam a ser pessoas mais felizes e melhores profissionais, capazes de trabalhar diabolicamente sempre com um sorriso nos lábios e atitude pro-activa, a mãe de todos os sucessos. Em cada esquininha há uma frase de incentivo, em cada livro meia dúzia de respostas prontas, para cada mal mil remédios, todos eles com um smille, a receita infalível que se junta a meia dúzia de palavras que se vendem a granel, todas elas viradas para o lado bom da vida, muito a lembrar os romances cor de rosa e a revista Maria numa versão ligeiramente melhorada (?). Não há outra maneira de ser mãe senão a sorrir para as dificuldades, outra forma de gerir o stress sem ser o pensamento positivo, outro caminho para a vida a não ser o da felicidade, outro trilho para a dor da mente que não englobe em primeira linha a sublimação da realidade. Gosto pouco desta visão sonhadora do mundo em que estamos. Aprecio todas as teorias da educação para a felicidade, considero-as de extremo valor em alguns domínios da nossa existência, mas como em tudo na vida, o excesso danifica a qualidade, e o extremo mata o equilíbrio. E é exactamente aí que nós estamos neste momento, num qualquer saco fechado a atilho, banhado a felicidade, nem que seja barata, nem que seja fictícia. Passamos da era da realidade à era da fantasia, e julgamos por isso que estamos um passo à frente dos nossos avós, aqueles que choravam os mortos ao vivo, que gritavam a céu aberto as suas rezas, que espalhavam a genuinidade como quem semeava milho em época fértil. Fico ainda mais preocupada quando encontro no topo das vendas de livros, as receitas milagrosas de quem sabe ensinar a ser feliz. Ser feliz não se ensina. Ser feliz não vem com receita prévia, não se aprende nos livros doutos da ajuda alheia, não se fecunda nas prateleiras dos supermercados, ao lado dos iogurtes de morango, do vinho branco, do Sonasol verde e dos cereais de pequeno almoço. Ser feliz não é com pouco nem é com muito, não há segredos, não cresce em meia dúzia de rituais de sucesso, não vem da cópia de atitudes básicas praticadas por algum iluminado da existência. Ser feliz nem deve existir enquanto conceito absoluto, o que para mim chega para deitar por terra todo este bando de sumidades, mas ainda assim, parece-me que a acontecer algo semelhante, passe muito mais por deixar sair o que se sente do que por mesclar de tintas pastel e palavras bonitas o que na realidade zanga, mata, corrói e desassossega. É que quando é para chorar, não adianta rir. E quando é para zangar, não adianta acalmar. Tal como quando é para estar feliz a sério, não é para encobrir. E nem é preciso procurar.
Mantenham-se então em tempos de Páscoa, eu por cá farei o mesmo, triste ou feliz, de acordo com a minha vontade, que pode ser de procura, de mudança, de manutenção ou de auto-análise. E não ousem contrariar-me, por favor, tenho uns livros diabólicos no bolso capazes de assustar o mais hábil vendedor de sorrisos do mundo. São quase tão eficazes como os que ajudam, comem pessoas impertinentes.
sexta-feira, 14 de abril de 2017
entre um bitoque e um café
Dizem por aí que ao fim de tantos anos eu já deveria compreender tudo, analisar quem passa a olho nu, permitir os insurgentes, a bem da verdade aceitar o mundo tal e qual ele é, ajustar positivamente o possível, compreender a apaziguar as tentativas mais ofensivas que me dirijam, enfim, devo à minha profissão a tolerância. Olho para todos os que assim sentem e sorrio, ora em sorriso aberto ora disfarçado, depende do interlocutor e do meu humor de momento. Hoje, passados alguns anos e muitas histórias, o que menos me apetece nas horas vagas, quando olho o mundo em geral, é analisá-lo, compreendê-lo, aceitá-lo ou perdoá-lo. Nas horas vagas preciso essencialmente de mim e de alguns dos meus, que podem ser pessoas, animais, livros ou lugares. Preciso de me esconder uns momentos das outras pessoas, necessito de me livrar dos anseios, das fúrias, das ansiedades e das derrotas. Quando olho para um casal, nunca lhe procuro infidelidades, pontos comuns ou dispares, cumplicidades ou divergências. Quando olho para uma família não lhe analiso a mecânica, não lhe procuro passos em falso, não lhe pesco gestos atribulados. Quando olho para um jovem não lhe capto a natureza, defensiva ou ofensiva, há-se ser uma, há-de ser a outra, eventualmente em dias alternados. Quando me deparo com todos eles vejo só pessoas, incluídas na paisagem, e passado um minuto já me esqueci delas, já se perderam juntamente com uma oliveira ou uma porta pintada, da qual nunca mais na vida lembrarei o número. Isto é muito facilmente justificável, o meu único descanso é vazar o meu corpo dos sentires alheios, é eventualmente tentar entrar mais fundo nos meus, deixando de lado todas as outras dores e todos os outros medos. Ninguém me perdoa esta minha vertente mais egoísta, já o percebi há muito tempo, principalmente a meia dúzia que espera de mim algo próximo da perfeição, no que toca à disponibilidade para cada qual, devo sempre uma atenção a quem está perto de mim. Não me incomoda, deixou de me incomodar esta divida permanente. Hoje consegui o milagre de considerar-me quando todos esperam de mim o inverso, não sendo fácil, nada fácil, entrar em choque frontal com a sociedade que institui. Demorou anos, décadas, uma vida, uma história. Como qualquer grandiosidade demora, não há cá grandes conquistas feitas numa hora de almoço, entre um bitoque e um café.
sexta-feira, 7 de abril de 2017
armanda
Dizem por aí que a dor não mata, mas eu não concordo. É o conceito que é controverso, morrer não significa apenas deixar de respirar, deixar de comer e de andar, deixar de dormir e deixar de acordar. Para morrer é preciso alguma coisa estar viva, e chegados a este ponto será por certo facílimo de perceber que podemos matar coisas como sonhos, pessoas, ambições ou bocados de nós próprios, e é essa a morte infligida pela dor que mata. Não sei se já vos falei de Armanda, a senhora que começou a morrer devagar, como se gostasse do sabor do corpo a definhar em cada dia que passava. Gostar gostar não diria, mas achou por bem não lhe fugir a tempo, sei lá também se o teria conseguido, e sendo assim foi perdendo a cada hora um bocadinho de si, primeiro com o primeiro marido e as facadas que este lhe deu, depois com o segundo e os nomes que lhe chamou. Com o primeiro perdeu bocados de pele e de integridade, matou o amor e o sonho, deu cabo da felicidade. Com o segundo, e apesar de já bem morta, conseguiu matar-se ainda mais a si própria, passou de senhora a puta, de mulher a esfregão, de dona a criada, e de pessoa a coisa nenhuma. Nesse dia, em que já era nada, olhou para a janela e descobriu que não lhe mataram os filhos. Continuavam os dois de olhos bem vivos, a olhar para ela e a esperar que vivesse, mesmo depois de morta, a mais dura das dores que já sentiu. Nesse dia fingiu que estava viva, vestiu o seu melhor casaco, adornou-se de mala e sapatos, colocou uma camisa de seda que fazia com que quem passasse a julgasse viva, e para se ver na força dos olhos dos outros caminhou por Lisboa, dia e noite, ora com medo, ora com vagar, ora depressa, ora a cantar. Subiu calçadas e bebeu nas fontes, trepou colinas e espreitou o rio, matou pelo caminho a vergonha e fingiu que lhe nascia no lugar das pernas um caminho, que a levaria ao colo a um lugar incerto, longe do sítio onde morreu. Pegou nos dois e nunca mais parou, crente da sua morte e da vida deles, ciente de que no corpo dela nada mais vingaria a não ser um mal que a matasse de uma vez, lá longe no tempo. Um dia destes, um desses que um dia a salvou, matou-a de uma assentada. Deu-lhe um golpe certeiro, açoitado pelo vento, sem dó, piedade ou amor, e deixou-a derrubada no chão de uma casa alheia e fria, com janelas fechadas e um mundo vazio. Armanda não sabe o que lhe morreu mais naquele dia. Não sabe que bocado lhe restava, que sangue ainda lhe escorria, que palavras lhe nasciam ou pensamentos lhe sobravam. Levantou-se a custo, mas do lado de lá não havia olhos ávidos que a erguessem mais, não existia adorno que a levasse até Lisboa, não havia noite que lhe refrescasse esta vergonha, não a de um filho que mata uma mãe. - Logo não morro de uma vez, diz-me muito baixo, quase nem a oiço. - Não diga isso, insiste alguém lá do fundo do corredor, - a morte é que sabe quando chega. Eu não concordo, acho que a morte não faz ideia nenhuma de quando chega. Quando muito, tem uma vaga ideia de quando vai.
segunda-feira, 27 de março de 2017
fome
Enquanto discutia ao telefone com o meu marido fiz uma feijoada de chocos deliciosa. Comecei por ouvi-lo nas suas razões, por entender as suas zangas, por entrar dentro dos meus pensamentos enquanto picava cebolinhas e alho em pedaços muito pequeninos, ao mesmo tempo que dos meus olhos escorriam umas lágrimas irritantes, pequeninas e amargas, que atacavam muito a minha pele e o meu olhar. Fui limpando a cara com a manga do casaco e depressa as lágrimas deram lugar a outras aflições, quando de repente, sem ver o que fazia, coloquei uma malagueta no tachinho pequenino e esfrego de novo o nariz e a boca, para enxugar o desespero. A cadência da conversa foi sempre franca e estranhamento ordenada. Forte quando eu picava a salsa, amarga quando os alhos caiam esmagados pelas minhas mãos, triste quando a cebola ditava das suas regras, mal a despia de casca, e muito doce quando o pimentão polvilhou o guisado com jeitinho, ao longe, em pinceladas coloridas capazes de apimentar qualquer espécie de união, mesmo a mais abatida pelos anos do cansaço. Dizem as más línguas que são sete os anos da discórdia, mas nós estamos muito mais longe. Conseguimos avançar na corrosão de uns bons cem anos de vida em comum, mais ou menos como quem avança perdido num destino traçado a tintas de chão, aquelas onde pisamos e repisamos e sabemos sempre para onde prosseguir, ora a direito, ora de banda, ora depressa, ora em jeito de contemplação. Por falar em contemplar, nunca deixei em momento algum de admirar o meu cozinhado. Primeiro cheirava a vinho quente, passados uns minutos tomou o gosto do marisco e do peixe, lá mais para o fim deixou que os enchidos tomassem conta daquela vida juntamente com as ervas aromáticas, e no apuramento final, já a conversa ia longa, fui ficando certa que o tempo de maturação é qualquer coisa de importante em tudo na minha vida. É no vinho que bebo, é na comida que faço, é no amor pelo meu homem. Passados cem anos estou igualzinha ao que estava quando tudo começou, na mesma medida em que a diferença se instalou. Só está cá o que me interessa, o cheiro, as facas que cortaram excessos a torto e a direito, os nós que seguram e as palavras que importam. Ele não chegou a horas de jantar comigo. Ficou preso num qualquer caminho, deve demorar uns dias, tudo tem o seu tempo. Contra o meu hábito, enfeitei a mesa como se o tivesse ali ao meu lado. Abri a garrafa para o decantador, coloquei o copo de pé alto, falei sozinha e a calma surgiu na noite, enquanto comia feijão com peixe. A nossa sorte ou o nosso azar é nunca sabermos o que perdemos, nos locais onde não estamos. Fosse de outra forma e não aguentaria os outros cem anos que me faltam, morreria de desgosto antes, numa qualquer curva, engolida por uma fome medonha de viver tudo de uma vez, em todos os lugares que nem são meus.
quinta-feira, 23 de março de 2017
beleza
Depois do abandono tive um mau pressentimento. Achei que nunca mais na vida ia voltar a ficar inteira, aquelas palavras tinham-me arrancado um bocado enorme de juventude. Ao contrário do que se pensa a juventude não morre com os anos. Com os anos morrem as células do corpo, morrem os cabelos que enfraquecem e desistem da vida, morre a pele que endurece e mirra as veias, que parecem cansar-se de continuar a correr. Com a juventude não é assim. A juventude talvez seja dos poucos conceitos que aceita a eternidade no verdadeiro sentido da palavra eterno. O meu bisavô foi eternamente jovem, e assim permanece na minha memória. A minha bisavó foi eternamente velha e nunca rejuvenesceu, nem depois de nova, nem depois de velha, nem depois de morta. O meu marido disse-me outro dia que me tinha trocado por outra mais novinha, se é que se lembram. Disse-o com um ar sossegado a olhar as minhas pernas, como se dos olhos deles emanasse um instinto protector, escondido pela força do amor que lhe nasceu por outra. Ele não tem a culpa do que sente, já o compreendi, já lho disse bem perto dos ouvidos, baixinho, tal e qual ele me segredou o terrível delito, uns dias antes do meu perdão. Mas na verdade, fiquei terrivelmente assustada. Fiquei com umas ânsias de peito aberto, como se o sangue bombeasse desorientado em redor do meu coração, como se no cérebro algum mapa se perdesse no território do inimigo, como se acabassem de me levar para sempre as minhas mãos enfezadas, as únicas capazes de me fazer caminhar na direcção do infinito. Respirei fundo e assoei o nariz com um lenço de papel lilás com cheiro a alfazema, os meus preferidos desde sempre. Dobrei-o com muito cuidado e voltei a guardá-lo no bolso, mesmo ao lado de um rebuçado de pinhão doce, e recomecei a pensar no que afinal morrera. O que morreu não fui eu, não foi a minha juventude, não foram as minhas mãos. O que morreu não foi o meu amor, não foi a minha paixão, não foi a minha vontade de percorrer os seus olhos ao infinito de mim. O que morreu não foi a minha esperança, não foi a minha sorte, não foi a minha fraqueza ou a minha força. O que morreu foi a minha arte, e com ela todos os meus quadros, todas as minhas esculturas, todos os meus livros. E morrendo a arte, morre a beleza.
terça-feira, 28 de fevereiro de 2017
marido
O meu honrado marido informou-me ontem que me tinha trocado. Disse-mo com cuidado e jeitinho, ao ouvido, enquanto me passava as mãos pelos cabelos e repousava os olhos satisfeitos nas minhas pernas. Não o pude levar a mal, muito menos quando ele me disse que a menina era muito novinha, mais quente, mais bonita, certamente muito mais interessante do que eu. Ouvi as suas palavras e fiquei a chorar baixinho, não fosse ele perceber a ânsia que me engolia o corpo, velho e já cansado, submisso, longe dos tempos em que acordava para lhe satisfazer as vontades. Fiquei a mastigar o assunto durante toda a noite, sozinha, enquanto a folia carnavalesca percorria as ruas do sambódromo, com mulheres semi-nuas a dançar para os foliões. Não consegui espreitá-las, eram muitas, lindas, esbeltas, vestidas de plumas de pássaros mortos, com lábios vermelhos e pernas longas, um hino ao desejo que morrera ainda agora, mesmo ao meu lado (tive muita pena, não deve haver no mundo um espectáculo mais bonito). Mais ou menos a meio da noite, cansada das minhas próprias palavras, decidi ir bebericar um chá. Sentei-me na mesa da cozinha, levantei as persianas e espreitei para a rua, enquanto continuava a repetir, devagarinho, a despedida. À medida que as palavras se reproduziam na minha cabeça, fui-as escutando sempre de forma diferente. Umas vezes vinham com um sabor avinhado, outras com um travo mais amargo, tudo dependia se olhava para a noite, se imaginava o dia, se encarava os olhos do meu marido ou se imaginava a menina, escurinha, esbelta, de cabelos longos e sorriso forte, a olhar para ele num desassossego. Escutei-lhe as palavrinhas todas, uma por uma, as dele e as dela, gemidas no silêncio da noite, no leito bastardo, do lado de dentro da minha imaginação. A dada altura levantei-me e fui para cama cansada de ouvir as vozes, mas em minuto nenhum algum deles se apagou em mim. Ressoaram os dois noite adentro, muito para além do cansaço, já o Carnaval ia longe e os copos estavam vazios, já a madrugada crescia, já o sujo comia o chão. Não há realidade pior do que a imaginação. Corta, entranha-se, vive-se e sente-se o cheiro forte da traição. A dor ganha cada vez mais forma, sempre mais direcção, num desgoverno sem morte certa, sem que alguém lhe deite as mãos. Liguei-lhe, e ele foi muito meu amigo. Deixou-me encará-la, precisava de a sentir, de lhe escutar o corpo, de ver a fonte da perdição, de matar de uma vez por todas o motivo do meu delírio sem fim. -Tem calma, disse-me, mais uma vez com cuidado e jeitinho, muito perto do meu ouvido. -Preciso de cuidar dela como quem cuida de um flor, faz-me feliz. Sorri-lhe e deixei-os em paz. Um homem que cuida de uma mulher deve amá-la de verdade. Nenhuma outra tem o direito de se atravessar no caminho.
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017
silêncio
Percorro a rua muito devagar dentro de um carro cinzento, conduzida por uma companhia grisalha e sorridente. Sei ao que vou, sei sempre para onde me dirijo, insisto em ser guardada pela segurança de um destino escolhido, tão incerto como qualquer outro proposto pelo infinito das possibilidades. O sol espreita a estrada e a luz acompanha o que se esperava ser um dia normal. As flores fazem lembrar uma primavera apressada, os vinte graus no marcador permitem que a janela se abra e que o vento despenteie quem passa e quem segue. Há crianças que saíam da escola e pessoas que passeiam num passo miudinho de sossego. Invejo-as, roubo-lhes o sorriso, aproprio-me daqueles passos lentos e mando abrandar com a desculpa da regra da boa educação: não deveremos chegar nem cedo nem tarde num primeiro dia de um local combinado. Perdi-me no caminho de terra que nos levava à casa que se avistava ao longe, branca, perfeita, percorrida a janelas e a sol, rodeada por umas pedras de calçada com desenhos de gosto requintado. Os cães da entrada ladraram com uma simpatia acolhedora. Entro no salão. Elas desaparecem de pé de mim, e eu fico sozinha a olhar para o espaço com muita satisfação. Tem tudo o que eu aprecio numa casa. Um piso térreo, uma sala grande, uma mesa de jogo tapada do pó. A lareira situa-se exactamente no meio da sala, e à volta descansam sofás lisos, almofadas desenhadas, cestas de verga e muitos livros com ar vivido. Um gato passeia-se como se a casa fosse dele, e eu fico a mirar-lhe os passos com uma admiração considerável: aprecio em demasia quem se julga sem medo o próprio dono do seu corpo. Dou uns passos vagarosos e dirijo-me à janela aberta para um terraço onde se encontram cadeirões e mesas, guardados no alpendre de madeira envelhecida. O sol já ia alto, mas não me importei com a ameaça, a natureza sabe o que faz e eu pertenço ao campo e às ervas do chão. Sentei-me e respirei muito fundo, enquanto olhava para umas oliveiras distantes, velhas, torcidas, comidas pelo tempo. Fiquei uns minutos e entrei de novo na sala, onde assisto a um programa a preto e branco, tranquila, à espera. Porém, nada naquela casa é tão tranquilo. Estive ali por uma precisão maior, num antagonismo completo, uma ironia da vida, e estive o resto do dia a tremer de dor no pensamento. Deveria guardar em mim o segredo das profissões humanas: não te envolvas. Faço cada vez mais o contrário dos ditos: vou de cabeça, dói-me, o rigor instala-se inúmeras vezes como um soco que me atravessa a garganta num nó. Nestes dias, a dureza expressa engole-me a voz.
domingo, 19 de fevereiro de 2017
crescer
Os anos vieram dizer-me o que já tinha encontrado há muito nos livros de alguma sabedoria: o amor constrói-se por lugares e pessoas, não pela beleza essencial de cada uma delas, mas pela simbologia e significado. Voltei lá outro dia, à minha praia. Uma praia despretensiosa, com mar e com sal, com pouca modernidade, longe de águas quentes e de climas temperados. É senhora e dona de canas e azedas que se podem comer sem medo, mais ou menos como os sonhos que me desperta de cada vez que lá passo ao pé. Não serão bem sonhos, serei eu. Não serei só eu, será a minha história, que pertence a mim e a quem a viveu ao meu lado. Já fui a inúmeras praias mais belas. Já mergulhei em ondas bem menores, mais quentes, mais confortáveis, com menos cheio a abandono. Já passeei por areias mais finas, enfeitadas com palmeiras, e já me deitei debaixo de um sol mais quente, mais luminoso, mais cor do sol. Já tive menos medo de entrar no mar, a minha praia não é para brincadeiras, mas permite que eu brinque com ela, ao olhá-la e recordá-la desde que me lembro de existir. Nela vi crescer a minha mãe e o meu pai, vi crescer as minhas avós, vi crescer os meus primos, o meu filho, a minha vida. Vi todos eles a crescer dentro de mim, cada vez mais inteiros, cada vez mais meus, cada um deles num sítio do areal. O meu pai comigo ao colo, a saltar as ondas grandes. A minha mãe a construir poços na areia, a crescer ainda hoje, já avó. A minha irmã a tomar banhos gigantes de engelhar a pele dos dedos e o meu filho, a mergulhar bem fundo, enquanto eu desespero na esperança de lhe encontrar a cabeça, perdida no meio da espuma branca. A minha avó cresceu até morrer. Sempre a contar-me lendas, a fazer doce de tomate fresco e café de cafeteira bem forte, a fazer renda na areia e a apanhar sol nas costas velhas e encurvadas. A propósito, tinha umas costas lindas a minha avó. E um sorriso que, tenho a certeza, não cresceu em mais ninguém como cresceu em mim. A magia da vida deve ser mais ou menos isto: ninguém nos tira a nossa história, sempre a mais bonita, escrita pelos dedos da memória. Grande. Crescida.
sábado, 11 de fevereiro de 2017
respeito
Lá fora chove uma chuva muito fria que insiste em baptizar-me a testa. Sou descrente nestas coisas, já lhe disse, mas parece que se esconde sempre nas nuvens que estão mais perto, na mira de que eu apareça. Chego a pensar que é defeito de profissão. Aquele, que me obriga a perdoar quase todos os males, a tentar compreender a maioria das incompreensões, desculpar todos os pecados, todas as ambições, grande parte das dificuldades, muitas obsessões. E sendo assim limpo sempre todas as águas que pingam de olhos, venham elas carregadas de bem ou de mal, misturadas em lixo ou em amor. Deve ser disso, concluo, perceberam que me debruço sobre elas sem discriminação e vertem-se frias, sem medo nenhum, molhadas, furam-me o chapéu de chuva, os cabelos, escorrem-me pela testa e caem velozes no chão. Na porta estava um homem incompreendido e mutilado de muitas formas. Nunca compreendi a divisão do mundo, nunca lhe dei amparo na minha compreensão, escapar-me-à sempre ao meu entendimento. O senhor é órfão de pais desde criança. Não tem uma perna desde adolescente, o resto da saúde deixou-o nem sabe quando, no inicio da idade adulta. Um dia destes morreu-lhe a gata, clandestinamente, sem aviso de chegada, muitas faltas para um corpo só. Agora e devido a isso tem medo de encomendar outra, diz-me de olhos perdidos, no meio de uma sala cheia de livros, que devora no meio do pó. Foi estudante de sociologia, mas nunca percebeu a sociedade, confessa-me, muito certo da sua inteligência, nada convicto nos valores que o levaram a enveredar por tal orientação. Vim com esta na cabeça, com a gata e com o pó. Será que decidimos estudar o que gostamos, ou será antes o que nunca na vida compreenderemos? Terá várias interpretações, suspeito. Pela minha parte é a segunda, nunca compreenderei a humanidade. A natureza, por exemplo, e apesar de distante da minha inteligência, consegue fazer-me muito mais sentido: hoje chovia muito, faz falta ao ambiente. A morte faz parte da vida, seja de bichos ou de pessoas, dói sempre muito mais do que o esperado. A nossa capacidade de imaginação está longe de abranger a realidade, quando esta resolve impor a forma da força. Talvez por isso não concebo que necessitemos de incrementar o mal a nosso prazer, nunca deveríamos ter o direito de deturpar qualquer coisa na vida e na natureza, elas chegam por si só. Resumindo: onde não posso mexer, respeito. Onde posso tocar, respeito também.
sábado, 4 de fevereiro de 2017
da ordem do dia
Mudo de opinião as vezes que considero necessárias para crescer. Não me incomoda desdizer-me, encontrar outras lógicas que me governem, cair redonda nas malhas das minhas próprias ideias e procurar outras, que neste exacto momento me orientem os caminhos. Os cuidados paliativos e a eutanásia são terrenos que já tiveram de mim vários olhos. Já os olhei com conformação, já os questionei na utilidade, já me virei ora mais para um ora mais para o outro, já fiz uma vénia forte ao cuidar do corpo, e já considerei que o melhor era matá-lo. Hoje, ao ver debates e opiniões, considerações e análises de quem sabe e de quem nunca viu, mas julga que sabe, debruço-me outra vez, capaz de considerar ambas como uma realidade do homem, mas de difícil execução.
Cuidar de um outro é difícil. É deixar de sermos o centro para passarmos a ser o cuidador, como se na nossa casa chegasse um bebé acabado de nascer e com hora marcada para comer, para medicar, para limpar, impedindo a família de viver e redimensionando o conceito de morrer, de culpa, de zanga, de medo. O sofrimento dos que amamos, e por vezes dos que nos competem e nem amamos tanto assim, entra dentro do nosso corpo e aloja-se num locar secreto de onde não quer sair, compilado em cheiros, em experiências, em traumas e em gestos bruscos, e por vezes estranhos, muitísimos estranhos, a quem sente e a quem vê.
Quando os vamos olhar num local paliativo onde a dor é controlada ao milímetro dói talvez um pouco menos. O barulho das máquinas dá-nos a segurança de que a dose certa bate na hora exacta, e o peso diminui na proporção do sossego: está tudo a ser feito. Mais uma hora e a visita termina, uns minutos e consigo respirar outra vez, fora do inferno da doença e da velhice, mais entranhado do que o sangue. Mas fico de fora, meu Deus; fico na culpa do deveria ter estado, deveria ter feito, deveria ter dado e deveria ter suportado.
Não gosto de nenhuma das opções, porque não gosto de assistir ao sofrimento. Não aprecio nenhuma das ideias porque o limite da vida é um lugar onde a mãe natureza diz que podermos cair, num caminho onde as pedras da calçada furam os joelhos e as canelas, picam os choros, e empurram para o lado aquela paz, que num rompante desapareceu. Mas ainda assim, considero que serei sempre alguém a quem não competirá, em momento algum da minha existência, escolher a morte a alguém. Já vivi e vi a dor de muita gente. Já afaguei almas e vidas quase mortes, e já encontrei sofrimentos mentais tão mortíferos como o mais temível dos males do corpo. Por isto não os considero menores do que as limitações físicas que possam suceder, e talvez devido a esse facto os respeite muito além do que são usualmente considerados. Encarar um paliativo deveria ser uma ordem global, no corpo, na alma, pois matar para aliviar a dor é uma escolha delicada. Que dor se matará? Qual o valor do teu grito, o alcance do teu desespero, o limite da tua resistência? Onde dói mais? Nos teus membros parados, na tua incapacidade de movimento, ou na tua ânsia delirante que te suga a força e a vida?
Os meus dedos não sabem avaliar quando se deve permanecer e quando se deve morrer. São de uma ignorância suprema quando se trata de considerar os meandros da natureza, os trilhos escolhidos por uma divindade, o nascer e o morrer como génese da humanidade. É indigno uma fase terminal? É indigna uma paralisia total? É indigna uma depressão profunda, com tendências suicidas? É indigna a dor de um luto, mais gigante do que um Deus maior? Ultraja-me que falem de dignidade com leviandade. Isso sim, é indigno e ignorante.
(Um corpo preso numa mente viva pode ser brutal. Uma mente doente presa num corpo saudável, pode ser mortal.)
domingo, 29 de janeiro de 2017
neta
Ver o meu tio com a neta ao colo emocionou-me. Depois de dois dias de trabalho interno não era qualquer coisa que me colocava em estado de contacto comigo, mas a fotografia enviada de muito longe teve o dom de conseguir. Normalmente depois destes retiros ergo o muro. Usualmente não há nada que o quebre às primeiras, as defesas foram instaladas, as paredes levantadas, a pele blindada, o corpo adormecido. Ele tem alguns anos e o cabelo muito branco. Tem uma história de vida das que não moram nos sonhos de ninguém. Já caminhou onde poucos querem caminhar, já comeu o pão que o diabo amassou, já provou o pior da vida mas de vez em quando, esta presenteia-o com o amor. E então ele olha para ela e por ela, minúscula, redondinha, e olha-a com os olhos mais doces do mundo, arrancados de um lugar onde por certo há muito não brilhavam assim tanto. E traz ainda nos olhos dele os olhos de quem se foi, acredito muito na transmissão da memória. Albertina olha agora para aquela menina, ao mesmo tempo que olha para R, o pai babado que cresceu entre Portugal e França, com o mesmo cuidado com que sempre o fez. Dantes o R era um rapaz traquina. Um petiz que bebia leite por uma garrafa de água, enquanto me fugia por entre as tendas no parque de campismo, logo pela manhã, ainda o sol dormia, ainda noite acordada. Foi crescendo, ganhou a mania que fazia surf nas ondas gigantes da Nazaré, comeu muitas mãos cheias de sal e hoje é pai de uma pequena, que recebo ao longe, aninhada nas mãos do meu tio. O amor salva o mundo e as pessoas. Quase todo o mundo, quase todas as pessoas.
Estão longe todos eles, estão demasiado longe. A distância é um lugar comum dos dias de hoje, quando o mundo se fez pequeno e disponível. Tudo se encontra à distância de uma fotografia, de um botão, de um skype. Bonito, muito moderno, aprecio com todo o respeito do mundo a evolução e toda a glória da humanidade. Mas ainda não há nada que chegue a um abraço. Com cheiro e com colo. Com vida. Com toda a vida.
domingo, 22 de janeiro de 2017
óculos
Comprei uns óculos de ver ao perto muito jeitosos. São adequados ao formato da minha cara, ajustam-se na perfeição, apetece-me usá-los como acessório de estilo em qualquer lugar, nunca mais os larguei. Ainda por cima desde que os tenho comecei a ver tudo com uma claridade assustadora. Comecei a decifrar os enigmas, a ler as entrelinhas, a compreender as histórias, a detectar as cores, as letras, os humores e as alegrias, os medos e as fantasias, de uma forma muito mais organizada, agora muito além de uns míseros olhos, já cansados, meio turvos, um tanto ou quanto encolhidos, por vezes esquecidos que servem para olhar. Ainda outro dia, já noite dentro, descobri mais um diagnóstico assustador com a ajuda das novas lentes. O DSM contínua a ser um aliado, mas andava esquecida de o olhar a sério, andava sem tempo e sem paciência, limitada ao trivial da sanidade, a encaixar tudo no superficial, no ligeiro, na rotina, na vida, como se não soubesse que a mente por vezes fica doente. Ao olhá-lo com a atenção de uma nova vista, ao verificar a checlist, ao quantificar a desordem devidamente, consegui atribuir um nome a algo que me atormentava fazia muito tempo. Não me soou nada bem, mas deu-me sentido ao sucedido, são as divinas faces da moeda, na identificação do problema. Por vezes, admito, tenho falhas de profissão. Não raramente engreno numa correria habitual e esqueço que o patológico surge onde menos se espera, onde a nódoa nunca caiu, onde a face se assume como saudável e o corpo acompanha de perto com muito orgulho, tudo mais ou menos certo, sem lascas visíveis, sem fendas profundas, com algum brilho, muito polimento, uma certa eficiência intelectual, a domadora de quase todas as feras. Mas é quando o ar frio me bate na cara e me corta que eu abro os olhos bem abertos, efectuo um ajuste de graduação, não tiro os óculos e vejo no tamanho tão real, o que parecia ser de uma outra dimensão. A realidade umas vezes assusta-me, outras entristece-me. Em raras excepções vem em dose dupla, completa, o que me faz consciencializar a minha reduzida inteligência. Felizmente só me aconteceu uma ou duas vezes na vida. Pormenor importante, que não faz de mim uma pessoa mais inteligente.
( Não durmo com eles, o que me está a colocar num território de difícil conjugação. Temo necessitar de os manter noite afora, bem ajustados, aconchegados ao meu rosto, a cobrirem-me as inúmeras rugas de expressão.)
terça-feira, 17 de janeiro de 2017
gentes
Sou cada vez mais pessoas. Não me contento apenas com uma, não que me sinta demais para um só corpo, mas porque no meu corpo cabem tantas gentes quantas os outros quiserem ver, por vezes, sim, gente demais. Posso ser uma pessoa calma aos meus olhos. Posso ser amiga de quem me ama, responsável por quem está perto de mim, confiante em quem me cerca. Posso ser preocupada, atenta, quem sabe exagerada. Mas isto é só uma de mim, eu própria, vista pelos meus olhos, hoje mesmo. Aos olhos de outra pessoa posso ser inimiga de quem me ama, irresponsável por quem está perto, simplesmente porque as minhas prioridades são outras divergentes. Posso ser por isso mesmo despreocupada, desatenta, irresponsável, pessoa de pouca importância, sem valor. E sendo assim nasço outra num mísero segundo, muito mais rápido do que um nascimento real, que demora um acto, uma fecundação, nove meses de gestação, muitos anos de idade. Posso ser neutra, a outros olhos. Posso ser mediana, sem importância, posso ser alguém que não se vê quando caminho em passos apressados, por entre o café e o trabalho, entre o sol e a sombra. Posso ser especialmente inteligente aos olhos da minha mãe, carinhosa sob o crivo delicioso do meu filho, chata nas considerações do meu pequeno afilhado, que beijo insistentemente à exaustão do permitido, muitíssimo além do divertido. O senhor da pastelaria acha-me extremamente eficiente, só de me ouvir falar e de me ver correr. O meu patrão considera, eventualmente bem, que sou um tanto ou quanto desorganizada com papéis, enquanto os meus pacientes me olham com toda a confiança, como se eu constituísse a orientação em pessoa. A senhora da loja de roupas onde me visto, considera-me um pouco rígida, arrisco sempre pouco aos olhos dela, ao passo que a velhinha que acompanho, excessiva, rigorosa, acha-me sempre ligeiramente descomposta, a necessitar de um lenço ou de um colar, de mais um filho e de um marido. O meu pai fala pouco, não faço ideia do que acha de mim. Para a minha querida avó era uma salvação, para o meu avô uma preocupação, para a minha tia um investimento garantido, para a minha irmã uma companhia e, eventualmente, alguma identificação. Não me canso deste enumerado de gente que encontro nas minhas entranhas. Não me incomoda esta abertura indefinida de portas que me ligam ao outro, livre de me julgar coisa pouca, ou pessoa muito a sério. Só me faz uma ligeira impressão que insistam para que eu seja apenas uma, a dos olhos que me olham, de esguelha, turvados por uma glória inexistente. Nem eu própria sei toda a verdade. Se é que há uma, se é que há milhares.
sábado, 14 de janeiro de 2017
mofo
Leio todos os dias um conto que persigo há meses. Leio um livro de Afonso Cruz, Jesus Cristo bebia cerveja, uma obra monumental que faz rir o mais irado. Leio ainda mais um ou dois livros que encontrei num caixote cá dentro de casa, arrumado no fundo de um armário de roupas impróprias para consumo. Uma vez por ano costumo deitar um olhar atento às caixas abandonadas. Nelas encontro sempre uma mala que merece voltar à vida, um livro que preciso de reler junto com todos os outros, um vestido que já é moderno outra vez, umas calças com quinhentos anos que estão rasgadas nos joelhos, nada de muito preocupante, a moda encarrega-se de reciclar o que outrora era divinamente obsoleto. Nesta última visita encontrei ainda um relógio azul dentro do forro de um saco velho, e um casaco de pele velhíssimo, preto e gasto, carregado de um charme que só a idade sabe ter. Deparei-me com umas moedas de escudos, umas fotografias amareladas, uns cadernos de psicanálise escritos por Freud e uma lanterna, dos meus tempos de escuteira. Fiquei por ali um bocado a cheirar as peças. O odor do pó era ligeiro, a história que carregavam, muito embora invisível aos sentidos, era bem mais interessante. Lá no fundo da caixa, escondido por todo o material digno de feira de velharia, estava uma cassete de James. Ó, meu Deus, mas que frente a frente mais impossível: a modernidade não vai tão longe, e mesmo na minha casa, um tanto ou quanto desprovida de tecnologia adequada, já não existe nenhum leitor onde a dita se oiça, muito embora disponha de muito espaço para dançar Sometimes, Born of frustration ou Sit down, e alguma vontade de o fazer. Hesitei no que seria a acção mais adequada. Ponderei se deveria ir a casa do meu avô, mestre em cassetes, fiel depositário de todos os álbuns de Amália, Tonicha, Maria da Fé, entre outros de origem poeticamente lusa. Recuei a tempo, achei por bem poupar-lhe o gira-discos a tamanha afronta, nunca na vida deve ter rodado uma cassete em língua estrangeira, poderia morrer na hora, engolir a fita, cuspir as músicas sem sonoridade adequada, quem sabe até atacar-me por tal deslealdade, a mim e ao velhote, facilitador do delito. Pensei numa atitude mais sensata e decidi ouvi-las no local de sempre. Não sei ao certo o porquê, mas o efeito não saiu o esperado. Ao ouvir Sometimes, por exemplo, não consegui sentir que os olhos de alguém me levassem à sua alma, e fiquei arrependida de não ter ousado a escuta activa, em frente ao guarda-fatos do meu avô: aquele espelho, colado à porta de madeira com parafusos cheios de ferrugem amarelada, serviu em tempos para que eu dançasse a acreditar no impossível. Valeu-me por fim um livro dos que trouxe comigo. Há palavras escritas pelo tempo, colocadas em papel por algum dedo erudito, que valem por mil coisas. Quer tenham sido lidas há anos, quer tenham sido decoradas ontem, quer sejam relidas hoje, quer sejam descobertas daqui a séculos, por outra vida qualquer, que goste do cheiro do mofo.
(Não vos ponho em escuta os James. A valer seria ali, entre quatro paredes, há muitos anos, onde tudo era do tamanho dos meus olhos. O resto, esqueçam. É tudo mentira.)
terça-feira, 10 de janeiro de 2017
abelha
Por vezes descobrimos que não conhecemos os outros. Não os outros que passam depressa, na sua vida, mas os que dão passos bem perto, num ziguezague impossível de acompanhar, dentro da nossa. Lembro-me muito bem de ser pequena e apreciar pensar que acompanhava os cubos pretos da calçada branca. De saltitar de quadrado em quadrado, de tentar correr nas as ondas do desenho, de dar passadas gigantescas que me permitissem não dar parte fraca e não cair no chão da diferença. Conseguia quase sempre, e como prémio no final do corredor trabalhado, estava um senhor que vendia pipocas. Nessa altura esquecia tudo e dirigia o meu corpo para o doce que cheirava a mel. Mel faz-me lembrar muito os favos que Manuel trazia desde sempre das colmeias das abelhas. Nunca fui com ele, tinha medo das picadas, como se a dor de um ferrão fosse alguma coisa perante a vida. Nunca me tocaram em altura alguma, talvez porque os animais são nossos amigos e me quiseram resguardar as forças para os dias seguintes. Uma vez pousou uma no meu ouvido, falando em abelhas. Zumbiu zangada durante muito tempo, eu tinha-lhe invadido o roseiral, fez com que eu estivesse quieta uns bons minutos até se decidir abandonar o meu corpo. Fiquei assustada, mas ainda assim, e vencido o medo, fui atrás dela. Espreitei-a de perto. Percorri-lhe os voos, cheirei-lhe as flores, saltei de canteiro em canteiro, e quando dei por isso estava num quintal alheio de uma casa estranha, onde morava uma bruxa má, diziam as vozes do povo. Era uma velha cega que naquele dia comia maças, num cenário fantasma e mais velho do que ela. Cheguei-lhe bem perto e toquei-lhe o nariz. Sacudiu-me, deve ter-me julgado um insecto, uma mosca, uma melga, uma borboleta, um zangão, qualquer coisa que ainda não descobri ser certo ou errado. Soprei de longe os seus cabelos, e ela fez um gesto brusco, como se esperasse matar alguma coisa que lhe tivesse poisado a velhice. Nesse exacto momento, recuei. Senti-lhe a fragilidade, comecei a cheirar-lhe o medo, li-lhe nas entranhas das rugas a preocupação, a tristeza, o desalento. Pé ante pé fui à minha vida.
Não é certo importunar a fragilidade, devemos respeitá-la. A abelha tinha tido esse cuidado, mesmo sem me conhecer.
domingo, 8 de janeiro de 2017
indomável
Não me lembro de há quantos anos subo aquela escada íngreme que me leva às ondas. Em pequena contava os degraus de pedra molhada, tentava não escorregar pelas rochas, fixava os olhos no horizonte e pensava, com a liberdade da criancice, que para além do que eu via havia um mundo encantado. Hoje faço tudo ao contrário. Fixo o horizonte em primeira instância. Sei que os contos são dos livros e que por muito cuidado que eu tenha posso escorregar, pelo que evito embrulhar-me no xaile para o frio e concentro-me no corrimão, que não me deixa os olhos libertos para me proteger da maresia que chega sempre sem se avisar. Fez-me lembrar quando uns óculos do meu primo nadaram pelo mar adentro, desprevenidos, engolidos de um trago sem arroto, sem volta, sem redenção. O choro da avó foi tal, que o alívio da mãe ao saber que o filho estava vivo e intacto, tapou a despesa das lentes graduadas, caríssimas, trazidas há dias com fama de inquebráveis, como se a vida se medisse apenas pelo impacto no chão. A sorte sentiu-se na hora, e o almoço foi agradável, o menino estava ali. Aleluia. Voltando à rocha. Lá em cima há um santo que a guarda, nunca percebi bem que santos guardam o quê, ou a qual deles devo pedir alguma bênção. Conheço alguns, houve tempos em que rezei a outros tantos, já os venerei nos locais divinos, arrumados em altares floridos espalhados pelo mundo, nos pontos cardeais da religião católica. Falo-lhes sempre como se me ouvissem, e por vezes esqueço-me que não creio em Deus nenhum, quanto mais num santo. Fico confusa nestas alturas. Por muito que encontre um santo em cada local, por muito que os procure, a fé sempre me nasceu mortiça, fraca, prematura, já na beira de uma qualquer morte. Mas respeito-os a todos com muita devoção, e o de hoje deu-me uma fala muito especial. Estava poisado num local da minha história, acompanhou mortes e vidas, nascimentos e casamentos, baptizados e funerais. Ouviu sempre com muita atenção o que lhe disse sem me duvidar, não é coisa para vivos, e isto deu-lhe um enorme voto de fé. Ficou parado e não me segurou ao colo, não se mexeu do lugar, ficou fixo no altar erguido em tempos muito idos, guardado a flores brancas e madeira velha, puro, imaculado. Senti-o tão meu, que custou-me virar-lhe as costas, demorei uns minutos. Foi lento e bonito.
O silêncio fala comigo desde sempre, e ergo-o cada vez mais ao lugar divino da minha fé. Simbolicamente refectido numa imagem de um santo, ganha um significado na minha organização mental. As respostas ganham corpo, numa bruma, cravejado de espadas e com uma capa vermelho sangue. Um corpo barulhento, batido pelo vento, bravo, forte, indomável. E eu ali.
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