terça-feira, 19 de abril de 2011

Vidas

Espero na fila alucinante de gente, munida de cheques para levantar. Bem à minha frente, uma mulher de cabelo comprido e baço, dos que se dispensava, mas nos quais se parece ter um orgulho supremo, enverga uma camisola branca transparente, que deixa antever uma roupa interior de cor forte, que tenta arrumar um corpo grande e deformado. Na sua volta, umas crianças salta-lhe ao pescoço, enquanto ela me profere um discurso tamanho sem eu nada lhe ter perguntado. Nem por isso gosto disso, de entradas forçadas em vidas que não são minhas, mas que quase parecem querer ser. Quase como se a minha não me chegasse, e alguma entidade suprema resolvesse dotar-me de mais pormenores sobre os quais me debruçar. Ainda um dia, hei-de arranjar forma de os fazer saber, que no meu dia a dia, enquanto pessoa, para nada preciso de saberes assim. Ainda tento desviar o olhar, e banir do meu rosto o sorriso inicial que me emergiu da simpatia, mas de nada me valeu, que as palavras saiam-lhe da boca seguidinhas, sem interrupção, e num som suficiente para que eu as ouvisse claríssimas, apesar do irritante barulho de fundo que se fazia sentir. Agora, os subsídios não vêm em vale, vêm em cheque. Uma maçada, que ao invés de ir aos correios levantar, necessita de ir ao banco e assinar por trás, porque ao senão terá de o depositar. Ainda para mais, ao fazer a assinatura no caixote do lixo perto da caixa, não fosse perder a vez, resvalou-lhe um dedo e o rabisco não saiu direito. Vamos a ver se passa. Para além disso, estas modernices nem são para ela, que não percebe bem estes assuntos. Já tinha passado tempo considerável nos correios, pois nem tinha reparado a alteração, e agora estava ali, a perder mais tempo, ainda para mais com os garotos que estão em férias da Páscoa, e não se podem aturar. Como não chovia quando abandonou o posto dos CTT, esqueceu-se lá do chapéu e agora chove a potes, vai ter de esperar. Uma dose considerável de dissabores matutinos, que se toleram apenas e só pela recompensa esperada. É a vez dela. Levanta os euros que lhe cabem dada a numerosa família, e vai-se embora. Sorri-me na passagem, enquanto arruma o dinheiro na carteira. Os miúdos continuam a saltar.

1 comentário:

  1. Quando andava de transportes públicos saiam-me muitas dessas pelo caminho...não há *** que aguente! E, o mais triste, é que são, em geral, pessoas que não têm com quem falar...ou então gente de faro apurado :):):)

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