sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Resistance


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Descobri entretanto que escreve poesia. Deixa-se esvair por entre uma bic normalíssima de plástico transparente, como se toda a sua vida pudesse ser escrita assim, através de um pedaço de plástico vulgar e  inconspícuo, desprovido de porte e elegância. Ela insiste. Gosta especialmente da ligeireza da escrita, da presteza com que as letras lhe saem dos dedos e se juntam para formar arte pura, vivida dentro do corpo e em mais lugar nenhum, o único local onde existe o poeta. O resto, de fora, são meros ensaios de interpretação. Ela nunca tinha descoberto o seu valor. Nunca tinha julgado que dentro do si fosse possível criar uma vida para além do fáctico que lhe transparece bela para as mãos, ao mundo que a descobre. Os poetas são as pessoas mais afoitas deste mundo. Ousam invadir a metafísica das coisas, da existência e dos próprios, e deixam que lhe saia à descarada por entre os sulcos do corpo, liberta e direccionada a tudo e a nada, acessível apenas a quem se desapegue do pragmatismo da vida. Aí nascem novas ideações de quem recebe beleza, sempre susceptíveis de variação, totalmente sujeita ao sujeito que sente, como em tudo. Desenrolam-se então visões diversas, transforma-se vida em fascínio, único, muito individual. Apaixona-me tanto a individualidade das coisas. Quanto à poesia, depende. As dela, falam do que eu sei, outras há que falarão do que me é estranho, e que poderei ousar perceber, ora em vão, ora não. Muitas, na generalidade falam de amor, uma linguagem eventualmente inacessível a alguns, ambicionada por toda a gente. O amor fica sempre bonito no retrato da poesia.   

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A Dama do Sinal


Espelhos

Um espelho. Um espelho é o que muitas das vezes precisamos para ter consciência real dos nossos actos, das nossas acções, dos movimentos e comportamentos que nos nascem no corpo. Eu sempre soube disso, já em pequena dançava horas ao espelho do quarto dos meus avós enquanto ouvia música popular portuguesa no leitor de cassetes. No final carregava no botão rec e voltava a carregar no play, para ouvir de novo músicas que me faziam abanicar o corpo, primeiro sem jeito, para depois, e à medida que o treino e o espelho faziam o efeito pretendido, ganhar alguma graça e harmonia. Lembro-me perfeitamente de deixar de fazer caretas ao som da música, uma das coisas que abalava por completo a elegância da minha dança, e de começar a mexer os braços ao ritmo do som em vez de os abanar de forma descoordenada e sem sentido, ou de os manter quietos junto ao corpo sem qualquer movimento. Tudo pequenos ajustes que se revelaram ao longo de tardes de verão infinitas, daquelas em que o calor abafa para deixar as crianças presas em casa, altura em que pela força do vazio sempre se encontra o que fazer. As teorias comportamentais, descobri isso muito tempo depois, e nas suas estratégias de intervenção, ensinam a usar o espelho para controlar comportamentos. Uma mais valia que encontro nesta corrente, que aguça este meu devaneio eterno de não me concentrar em nenhuma visão circunscrita, quanto toca a encarar o nosso desenvolvimento. Não tenho poiso certo, tem de dizer-se, sou uma Maria vai com todos, um marinheiro sem porto, alguém que se socorre do que lhe faz sentido e quando lhe dá mais jeito, o que origina a que me entregue inteira à psicanálise quando isso me parece bem, me encoste ao modelo dialógico que bebo com uma voracidade inigualável quando me apetece, deixando ainda os comportamentalistas regerem-me por vezes, em pequenos detalhes que me fazem todo o sentido. A técnica do espelho é de facto uma ajuda preciosa em determinados tipos de comportamentos que cometemos por não vermos o resultado em nós próprios. Aproveitá-la para o que de bom nos possa trazer é um acto de inteligência puro. Os olhos dos outros, e apesar de bons espelhos, estarão sempre aquém dos nossos, os únicos realmente isentos, sinceros, vividos e sentidos, sem torvamentos, sem parcialidades, sem desonestidades ou outro tipo de contaminações que não as próprias. 

( O espelho interno, esse, continua a faltar-nos verdadeiramente. Tento inúmeras vezes fazê-lo com quem me procura. Salto do meu corpo logo que posso, expulso crenças, convicções, estados de espírito e sentimentos, e aposso-me de tudo o que consigo de quem se encontra à minha frente. Depois disso despejo-lhe devarinho o que retirei da sua realidade, a ver se ele sente, se a vê, se a percebe e a interioriza. Corre mal. Corre sempre mal. Até hoje nunca consegui estar à altura, acho até que não chego perto. Fico perdida algures no meio do caminho, consciente de que por avanços que faça ficarei sempre muito longe do destino pretendido.)

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Poder? Poder tem por exemplo o meu peixe Óscar, o único que me atura todos os dias sem interrupção, e que ainda assim me parece imensamente feliz...

Por vezes penso no poder. Aquela coisa que se sente no corpo, que primeiro se engole, depois se digere, para logo de seguida se alojar amplamente de forma forte e doentia. Pode ser só internamente sem qualquer transposição para quem está de fora, podendo porém emanar, contaminando o redor que até fica a julgar que daquela pessoa emergem ideias das boas, capacidades reais, vocação superior para fazer determinadas coisas. Confesso que me causa algum desconforto quem assume o papel com unhas e dentes, ainda para mais quando o faz sem o verdadeiro sentido de competência que deveria existir. No mínimo, deveria existir. 

( Ele há com cada coisa na vida. Esta pretenção na maioria das vezes, não será mais do que debilidade. Poderoso, poderoso, ninguém o é, ainda que virados e remexidos possamos ter qualquer coisita, por ínfima que seja, que nos diga que sim. Uns apoderam-se dela e outros não lhe ligam nenhuma. Têm mais do que fazer, provavelmente será isso.)

Viagem das letras

Aqui, existe um mundo de projectos grandes. Eu e um conjunto de técnicos vamos dar à miudagem sítios de reflexão, acompanhamento pedagógico e psicopedagógico, auto conhecimento, entre outros. 
E depois existe ainda este projecto novinho em folha da autoria da nossa gerente. Vá, digam lá que não está uma graça???

( Pensar o mundo, o próprio e os outros, é qualquer coisa que fica de fora demasiadas vezes. Pensar o mundo o próprio e os outros, é um alicerce fundamental para que o crescimento se dê saudável e social. Este projecto quer muito que isso aconteça, e todos nós, muito embora possamos nem sabê-lo, também.)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

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Gosto muito de quando me chegam ao serviço oito pessoas para realizar uma tarefa para a qual duas chegavam. Ao mesmo tempo em que se atafulham alunos a mais nas salas de aula ao encargo de um  único professor, que deve formar os nossos adultos do futuro seja lá de que forma for, mas de preferência com avaliação de desempenho de Bom, o que é sempre bom para o sistema. Não importam as gentes, as consciências, o tempo de reflexão e de aprendizagem à séria, importam os números e a quantificação. Também gosto muito de ir à Câmara Municipal pagar a água e ter duas senhoras a tratar do processo. Parece difícil, mas eu explico. Uma procura a conta, a outra recebe o dinheiro, e voltemos então à primeira para emissão do respectivo recibo. Enquanto isso encontro hospitais com enfermeiros que não almoçam porque não têm tempo, e que limpam os doentes com o lençol de cima porque não têm toalhas. 
A vida é toda ela uma questão de coerência, de contrabalanço, de harmonia. Começa em nós, estende-se à casa, à família, a tudo o resto. Pedir harmonia é sempre um pedido delicado, é muito mais fácil a desarmonia, e isto também nas mais variadas vertentes. Mas tem custos, a curto, médio, e especialmente a longo prazo. E estaremos nós aptos para suportá-los? Transformaremos o País em que género de realidade? Que acontecerá quando as prioridades estiverem todas invertidas e os números tomarem conta de nós, enquanto a nossa intelectualidade, saúde e qualidade de vida, entre outras, tiverem sido comidas pelo sistema?

( Se souberem, podem guardar para vós. Tenho este hábito pateta de colocar questões para as quais não me apetece nada arriscar ou ouvir respostas.)

Arroz doce




Há caracóis, pode ler-se na porta. Não apresenta erros de ortografia como aqueles que povoam os facebooks ou o Gosto Disto, é um há caracóis simples e correcto. Há também cerveja, tremoço, camarão, ameijoa e outros acepipes, uns da terra, outros do mar, outros ainda fabricados pelas mãos do Homem que afinal ainda cria coisas boas. Não havia arroz doce. Não percebo, fiquei estupefacta com a inexistência de arroz doce num tasco daquele calibre, de onde se esperam açordas, pães caseiros, caldeiradas e ensopados, chouriços e fritadas, farófias e claro, arroz doce. Há coisas que pertencem a determinados lugares, mas existem outras que pertencem a todos os locais, ou a muitos vá, e o arroz doce é dessas coisas. A verdade é que não concebo sítio que se preze sem arroz doce. O arroz doce é uma doçura de coisa composta por arroz, açúcar e leite, entre outros ingredientes que podem fazer enriquecer o prato. A canela com que se desenham risquinhas por cima é indispensável à finalização, e o tachinho de barro dá-lhe algum encanto dispensável, se o paladar compensar (mas só se for muito). 
Houve uma vez, já muito distante, em que eu e outra pessoa comemos muitos pratos de arroz doce numa noite de final de ano. Ele verdadeiramente incomodado pela insistência da gula que não lhe abandonava o ser, já cansado da noite e do ano que findava. Deixa, come, dizia-lhe eu, que sempre gostei de ver gente que come sem medo, com gosto e vontade, depositando no acto toda a gana que reúne no corpo e que emerge transparente na boca, nas mãos, nas expressões de satisfação e nos murmúrios deliciados que nascem enquanto se saboreiam aqueles pitéus que estão a saber-nos pela vida. É bom quando as coisas nos sabem pela vida, basicamente é isto. Já pela madrugada, e perante os olhares espantados do restante grupo que não compreendeu de todo o que ali se passava, restávamos nós, começando um novo ano de forma gulosa, voraz, apetitosa, sem qualquer tipo de enjoo ou aborrecimento. Para mim o arroz doce nunca será aborrecido.  E um ano novo também não. 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Perfect Day


O saber não ocupa lugar

Ao senhor dos biscates faz todo o sentido colocar-me ao corrente de todas as manobras que executa para concluir as suas obras. Elevações, batimentos de martelo, canalizações diversas e parafusos de aço inoxidável, realidades que em tempos me eram totalmente desconhecidas, fazem hoje parte integrante dos meus conhecimentos. De nada me vale dizer-lhe amavelmente que não preciso dos trâmites, chega-me o resultado, que ele não se satisfaz. Faço questão de lhe explicar, diz-me, enquanto gesticula efusivamente à minha frente, verdadeiramente ufano das capacidades infindáveis que reúne no corpo. É uma pena que nem todos tenham tanto orgulho nas obras que constroem. E certeza, e vontade. Ainda há pouco, e a propósito de um cano, fiquei sabedora da existência de umas peças de nome joelho que fazem ligações perfeitas em caso de ruptura. Sei a posição do encaixe, o material utilizado, o preço e o tempo de execução. Estou ainda informada sobre a previsão da duração do reparo, que segundo consta será de uma vida, e também das consequências nefastas para a parede, caso o remendo não seja prontamente executado. Pensando bem e analisando as coisas a fundo, só posso ganhar com tremenda explicação. O meu bisavô sempre me disse que o saber não ocupa lugar e ele era bem capaz de ter razão. Começou a fazê-lo perante a minha insistência em renegar o almanaque Borda d'água, um livro utilíssimo que a mim não me dizia coisa alguma. Queria lá eu saber das luas, das meteorologias, dos santos e de qual era a melhor altura para a plantação da alface, do pepino ou da batata. O velhote, esse, passava os dias a olhar para ele, um guia para a vida do qual retirava informação de carácter diverso que ajudaram a transformá-lo no sábio lá da aldeia. No inverno já ele sabia como ia ser o verão, de manhã já ele conhecia as previsões para a noite, mal plantava qualquer coisa e já arriscava o resultado da colheita. Passeava-se nos tempos mortos pelas estradas do mundo, um mundo curto nos dias de hoje mas grande em épocas de outrora, nas quais vendia cortiça, sabedoria e produtos hortícolas. Era também ele que dava as injecções do reumático, dos males do fígado e do intestino, entre outros diagnósticos e curas diversas, ainda que de medicina só conhecesse a popular. Dizia-me sempre e desde que me lembro, que não chegava à próxima primavera. Um disparate daqueles que as bocas gostam de proferir, mesmo as mais sábias, mesmo as mais nobres. Provavelmente aprazia-lhe ouvir que não era assim, que era tolo, que nos fazia falta cá deste lado, ao cimo da terra. Sete palmos, filha, sete palmos e era já. Esta previsão saiu-lhe furada tempos infinitos. Um dia, não sei bem como, acertou.


domingo, 26 de agosto de 2012

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Volto aos sonhos. Há dias em que me apetecia expulsá-los do meu corpo como quem expulsa um qualquer excesso, em modo intimo e definitivo. Depois da expulsão provavelmente queimá-los-ia de forma lenta e dolorosa para que se esvaíssem de vez sem qualquer hipótese de voltarem à vida. Nada como a dor sofrida para dar cabo de tudo de uma vez por todas. Esta noite, por exemplo, afaguei uma vizinha que se abeirou de mim como se mais ninguém existisse. Abraçou-me, chorou no meu colo, e colocou-me a vida dela nas mãos tal e quase eu constituísse uma qualquer salvação para a sua amargura. No final sorria muito tranquila, logo após me ter enchido o corpo de monstros medonhos e de ansiedades recalcadas. Isto tudo deve advir da minha veia um tanto ou quanto benévola, uma vertente que cada vez mais encaixo nas fraquezas do meu ser. Por várias coisas, não vou esmiúça-las. Há dias em que julgo que também ela deveria arder junto com os sonhos, de forma penosa e definitiva, esvaída em direcção aos céus.

( Há posts que são meros desabafos, não são para ter em muita conta. Até porque há coisas que se mudam e outras que são estruturais, e ninguém muda a estrutura, ainda que queira fazê-lo. Poderemos mudar pequenos pontos, arredondar arestas, mas nunca conseguiremos saltar de um corpo para outro. Nem por dentro nem por fora, o que é uma pena, porque honestamente e a poder já tinha escolhido um outro invólucro bem mais interessante que me envolvesse a alma.)

Hey Eugene


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Estava calor. No alto da cabeça o cabelo enrolava-se nuns caracóis eriçados, a ver se o corpo respirava. Ele olhava-a com uns olhos verdes enraivecidos capazes de matar. Os olhos podem matar, munem-se de umas facas afiadas que nos golpeiam por dentro em sítios escondidos e apenas sentidos, mas que ficam mortos de morte matada. Atira ainda em arremesso e como se não bastasse o restante, a fúrias das palavras acesas. Gesticula enquanto compõe os olhos e aos ditos em ataque directo, que não são mais do que defesa declarada, mal compreendida. São assim os que pretendem repor ordem num mundo que os aflige, onde os outros são alvo de repressão porque não estão à altura, quando por vezes a dita falta a quem tanto esbraceja. Fico a olhar meio ao longe e concluo que por vezes vacilo perante a loucura (?). Não devia, sustenta-me, ainda que um tanto ou quanto esquisita. No conceito de normalidade poderá ser uma excepção, no sentido clínico uma patologia, mas quanto a mim contempla ainda os rasgos de malvadez. Gostaria de conseguir encaixá-la em outros meandros, aceitaria facilmente os loucos, se os houver, e encontraria uma outra categoria que suportasse os maus de espírito. Não me é fácil porém esta singela divisão, não consigo encarar a maldade como uma realidade isenta de contexto, pura e dura, sem dó nem piedade, e por isso encosto-a onde a consigo, ainda que minimamente, conceber. E fico a deambular numa dúvida que os perdoa a todos, serão eventualmente loucos, serão? A aceitá-la nua e crua viveria num mundo pior, dentro de um já suficientemente mau. De resto e quanto à existência, deixemos a loucura em aberto, ao critério de cada qual. A maldade, essa, sozinha ou acompanhada existe de todo. Vê-se, sente-se, cheira-se e engasga-nos o corpo quando nos entra pelos olhos, pelos ouvidos, pelo peito e pela pele. 

( No dia em que eu deixar de aceitar a loucura deixo de acreditar. A loucura existe, claro que existe, e nela cabem muitas coisas, boas ou más. A loucura está para o Homem como o mito está para a existência. Lá compreendemos tudo o que não se explica de forma concreta.)

sábado, 25 de agosto de 2012

Coisas boas


Samuel Silva é um advogado Português que desenha fotografias destas com esferográficas. Podem ver mais aqui .

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

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Corre liberto na minha frente, saltita, como se o mundo pudesse ser visto a brincar. Empurra um carrinho de compras cheios de coisas precisas enquanto me mostra o quão habilidoso é na arte da condução. Dá umas voltas por baixo da corrente e diz-me, ufano, aposto que não és capaz de fazer isto. Não sou, de facto, os parcos centímetro que tenho a mais do que ele limitam-me a acção corpórea. Não me incomoda isso. Ia-se a ver e se pudesse, teria mais uma ligeira altura, coisas da minha vaidade. O que me falta, mesmo, é ver o mundo com uns olhos que olham o mesmo que os meus,  mas que vêm outra coisa, claramente. Engraçados os olhos que nos povoam o corpo, que olham o que a mente deixa e consegue encastrar nos sonhos e na vida e não as imagens reais que nos nascem da definição pura da visão. A arte genuína não existe, é um facto. Existem ligações, constructos, percepções.

( Se uma dia um génio me conceder três desejos, provavelmente só quero dois. Viver a brincar até me cansar, o que provavelmente acontecerá depressa, e regressar outra vez quando eu quiser. Well done.)

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Esta crónica de Lobo Antunes está qualquer coisa. Merece ser lida, é isso, e se possível contrariada. Contrariar verdades também é qualquer coisa, e a nós, humanos, cabe-nos a loucura da impossibilidade de o conseguirmos fazer.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Delícias

A caixa era branca e transparente, normalíssima. De lá de dentro saíram livros antigos, uns postais ilustrados, um álbum de fotografias. Abri-o. Encontro as raízes que o tempo levou, os primórdios envolvidos por meias de renda, casaquinhos de croché bordados com amor, e lencinhos na cabeça a resguardar o sol da cabeça da menina. O avô pega-lhe ao colo e olha-a embevecido. O cão espreita lá atrás, provavelmente abanava o rabo, muito embora o retrato não permita grandes dinamismos. Sigo e cresce. Nos meandros surgem a prima e a mana, e as raízes envelhecem, emagrecem, definham e adoecem, devagar, devagarinho. Lá mais para o final já há mais primos, haviam mais netos. Ao fundo, numa delas, vê-se o santuário de Fátima, certamente rezava-se por um mundo e uma vida melhor. Noutra, encostada a uma oliveira, cheirava-se uma azeitona que provavelmente deu azeite. Duas primas encostadas com a Torre Eiffel em pano de fundo estão estranhas, vestem umas roupas largas e coloridas com uns sapatos cremes e umas meias brancas. O primo entretanto também cresceu e já nem parece aquele menino magro e enfraquecido dos primeiros retratos do álbum verde. O outro perdeu os caracóis, e a menina já não veste xadrêz com malhas. A mãe tem menos cabelo, o pai nem se fala. Lá para o meio surge um gato impossível de esquecer e um avô que durou para além da normalidade e em estado de boa saúde. Tinha uma samarra, uma veste típica lá na serra. A última página tem os netos todos em diversas fases da vida, que entretanto continuou. Ninguém apagou os traços e todos estão na memória. Os retratos ajudam ao pormenor, pequenos nadas que sabem a doce de tomate e a feijão regado com azeite e sal miudinho por cima. Uma delícia, apenas equiparada a coscorões de massa lêveda, altos e fofos na mesa do Natal. Ele há coisas que são eternas, e as fotografias em papel são uma grandeza do mundo passado, arruinada pelo mundo presente. Não se admite, não se pode admitir.

Tonight, Tonight



quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Conversas ( infelizmente ) inconsequentes...

- Hum... Eu a ti, fazia assim...
- Fazias? Tens a certeza?
- Acho...
- Hum, achas... Já agora, o que é isso de eu a ti? Isso não existe. Eu sou eu, ti és ti... Get the point?
- ...
- Good!!! Assim podemos falar mais vezes.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Anna Ó

Dias destes, férias que escasseiam de ano para ano, isto para não falar dos subsídios, e eis que me encontro debruçada sobre textos de trabalho que tenho mesmo de ler. Uma parte do dia considerável, que o resto é destinado a dar asas a alguém que gosta de rua e de bola tanto quanto eu, ou melhor mais do que eu, que gosto de rua mas de bola nem por isso. Ontem fui-me deliciando à medida que as leituras me passavam pelo corpo, resolvi até permitir-me uma almofada grande e macia onde me recostei nas horas quentes do dia para que o trabalho me soubesse a deleite. Divaguei por obras que conseguiram enquadrar-me e muito bem no assunto sob o qual trabalho, e eis que a meio das leituras, e um tanto ou quanto desenquadrado do tema em questão, me surge Breuer, que em 1881 se encontrou com Anna Ó. Confesso que muito embora tivesse lido sobre ela em tempos de faculdade, a mesma já se me tinha esvaído das memórias, quiçá abafada por outras teorias mais prementes, mais entendíveis e mais pragmáticas.
Hoje, as teorias da psicanálise fazem-me todo o sentido. Entregam-me e transportam-me para meandros que me permitem compreender diversos comportamentos que enquadrados em outras correntes parecem-me pouco justificáveis. Esta entrega não me vem de sempre, devo dizê-lo, que nos primórdios do meu trabalho considerava as teorias mais rebuscadas do inconsciente um terreno demasiado complexo para que eu entrasse nele sem medos, saber-se-ia lá o que poderia encontrar, ou os reflexos que tal afoite teria nas minhas próprias acções e comportamentos. Não obstante gostava delas. Sentia-lhe o cheiro intenso e tentador, o toque ao de leve a tentar entrar-me no corpo, mas guardava-lhe sempre uma qualquer distância de segurança que me permitisse viver tranquila apesar do meu interior, demasiado interno até para mim mesma.
Com o tempo isto passou. Quem sabe se a ver com a minha curiosidade mórbida, quem sabe se a ver com a minha necessidade de compreender determinadas coisas que não têm explicação de outra forma, quem sabe se apenas porque agora já não lhes consigo fugir.
Continuando. Anna Ó tinha sido abafada algures dentro de mim, mas a verdade é que tal abafamento não foi suficiente para matá-la, sendo que me bastou o nome da  criatura para que a mesma emergisse de novo, histérica, novinha, inteligente, carente ao ponto de Breuer se sentir impelido não só a curá-la, mas também a protegê-la, uma das terríveis doenças que podem emergir em contexto de consultório. Apresentava manifestações físicas do fenómeno histérico, que lhe nasceram do processo de acompanhamento à morte do pai, por quem detinha um sentimento profundo. Breuer descobriu que cada um dos sintomas da histeria manifesta estavam ligados a um determinado acontecimento especifico que era preciso trabalhar, a fim de expurgar a mente através de técnicas de Hipnose.
Muito embora o assunto tenha sido abordado inicialmente por Breuer, foi Freud que lhe deu seguimento, até porque a paixão entretanto acesa entre o psicanalista e Anna Ó limitaram o decurso dos trabalhos. Sigmund Freud continuou a utilizar a hipnose como forma de conseguir entrar nos meandros do inconsciente, e no seguimento dos seus trabalhos começou a perceber que muitos dos distúrbios neuróticos que encontrava tinham origem em experiências traumáticas de infância, muitas delas de cariz sexual, e não só dos episódios mais recentes de provação de resistência interna. Apesar de considerar a hipnose um método bastante eficaz na busca do inconsciente, Freud partiu posteriormente para a associação livre, um método mais simples que permitia resultados muito satisfatórios, segundo o próprio.

Não pretendendo aqui dar lições de psicanálise, porque não acredito que possam interessar a muita gente, e ainda porque não tenho competência para tal,  não me vou alongar no texto explicativo, centrando-me por fim um pouco na associação livre, por considerá-lo um método de elevadíssimo interesse. É um exercício de indiscutível utilidade ao qual todos nos poderemos entregar frequentemente, sem qualquer tipo de custo ou de esforço. Basta que se descontraiam e que vão trazendo ao pensamento o que vos aprouver, e no seguimento das vossas ideias, para posteriormente tentarem perceber a ligação existente entre os factos diversos que vos constituem, e ainda entre as vossas acções. É claro que uma ajuda externa é essencial para um trabalho aprofundado da mente de cada um, mas não deixa no entanto de ser interessante as ligações que fazemos nós próprios connosco mesmos, acentuadas ainda se conseguirmos diminuir ao mínimo a censura. Experimentem, aproveitem o relaxe e o fresco das noites longas. Vão ver que na penumbra, e ao cheirarem a flor do vaso, vão sentir estremecer uma estrela no céu. Não há nada melhor do que a intimidade da vida.


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( Verão é tempo de cor, e isto por cá às vezes tem demasiadas letras...)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Livros

Memórias das minhas putas tristes, de García Márquez, é o que leio. Mais um dos que povoam a estante esquecida, entre as leituras obrigatórias, as leituras semanais, e um ou outro que surge nos entremeios e que fazem mesmo luzir-me os olhos. Pego nestas obras normalmente no verão, altura em que consigo algum tempo de concentração para ler os grandes da literatura. Deparo-me mais uma vez com o que encontro em tanto do que leio, e que trata histórias passadas em tempos distantes. Poderemos aqui considerar que neste caso específico se sente o facto por ter sido escrito por alguém com vida e obra feita, sendo o passado que lhe desperta a memória e a ideia, por ser esse que tão bem conhece. Ainda assim não me parece que os escritores da nova geração se descolem muito dos tempos de outrora, pelo menos em grande parte. Estou a lembrar-me sem grande busca do Livro, de José Luís Peixoto, onde se fala da emigração de há uns anos, ou da Máquina de fazer Espanhóis, de Hugo Mãe, que muito embora seja em parte de uma era mais actual, não deixa de esmiuçar um passado vivido em tempos Salazaristas. Não sei o que os move realmente, estou a limitar-me a constatar um facto que a mim me parece claro, mas não deixa de ser de elevado interesse de análise e debruce esta tendência que encontro frequente de contar vidas do antigamente, permanecendo os tempos modernos como qualquer coisa sobre a qual não apetece muito escrever, pelo menos em contexto romanceado. Poderão aqui entrar diversos desencadeadores, de ordem pessoal ou qualquer uma outra, e realço mais uma vez que não generalizo nada do que digo, falo apenas de uma tendência que encontro. A mim, parece-me que talvez trate a curiosidade e a vontade, quer do escritor, quer do leitor, de enveredar por terrenos que não nos pertencem, realidades que nos retirem do nosso espaço, do nosso mundo, da nossa vida, onde a experiência feita nos possa dar qualquer coisa nova, muito embora já seja velha. Mero palpite, claro, entre muitos outros que poderia dar sobre o assunto.

domingo, 19 de agosto de 2012

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As sobrancelhas são uma parte de mim que deveria ter sido desenhada a dedo e não foi. Uma imperfeição cometida algures no fabrico do meu corpo e que me deixou em mãos a eterna tarefa de as delinear com jeito e precisão, a fim de conseguir enquadrar os olhos. Os olhos são aqueles que falam mesmo quando não queremos, e por isso têm uma vertente verdadeira e incontrolável que os transformam num aliado forte, mesmo que por vezes pareçam trair-nos. Devemos por isso cuidá-los e arrumá-los, é um dever, uma obrigação. Entro e a menina de macacão azul turquesa muito justo encontra-se a pintar umas unhas em tons de rosa forte, uma moda de verão, estou farta do verão. Resolvo sair e ler um jornal. As crónicas falam da crise e eu também estou  farta da crise. Dos ricos que estão mais ricos e do pobres que pagam os erros dos ricos porque deles não podem fugir. Fiquei ligeiramente angustiada. Não sei bem o porquê, mas há muito tempo que determinados acontecimentos me chafurdam. Causam-me um mau estar doentio, como se me sentisse presa numa qualquer decadência na qual não me apetece de todo cair.
Ela chegou. As notícias eram frescas mas amargas, o costume. Nos olhos dela encontrei um desassossego verdadeiro, chispavam lume, indignação, injustiça. A vida é injusta, balbucio, não há como alterar... Qualquer coisa que se diz para tentar amainar sofrimentos alheios, fatalidades, coisas ruins. Não está nas nossas mãos, queremos dizer, como se essa libertação trouxesse algum bem-estar a quem de mão beijada e sem pedido nos entrega a alma, porque está cheia. Depois paro e fico a pensar que nem é sensato dizê-lo. Seria melhor não dizer nada, muito embora o nada seja um desconforto que nos desconforta imenso, sendo por isso mesmo que não gostamos dele. E então dizemos estas verdades manifestas, irrefutáveis, sentidas e sabidas, que nada tiram mas que também nada dão.
Entretanto chegou a hora. Entro e a moça de macacão azul turquesa está por minha conta. Fala-me das unhas que pinta, das maquilhagens maravilhosas que compõem rostos vaidosos, e fala-me ainda do tempo. Trivialidades. Aceno que sim com a cabeça e começo a sentir-me pouco a pouco mais serena, estamos na silly season, penso, bora aproveitar. Então saí dali e fui até ao armário do meu quarto do fundo, um sítio mágico e relaxante onde guardo preciosidades que podem bem voltar a fazer-me falta. Encontro numa caixa uns sapatos azuis de salto muito alto que houvera escondido há tempo, a ver se me esquecia deles. Também costumo usar este truque com os chocolates e com as amêndoas salgadas, mas nem sempre resulta, é um facto. Há dias, como em tudo. São altíssimos e ficam mesmo bem com calças brancas, muito embora me fustiguem os pés, motivo pelo qual tinha resolvido retirá-los da memória. Recuperei-os, o tempo dá-se ao luxo do esquecimento da dor ou no mínimo da atenuação, pelo que nos leva o bom mas também nos leva o mau. Retirei-lhe o jornal amachucado de dentro e com muito jeito calcei-os, só para ver se ainda se lembravam de mim. Lembravam. Eles de mim e eu deles, e temo que a partir de hoje sejamos chegados outra vez. Há ligações severamente difíceis, grande verdade.

(Esta coisa da concordância total só pode mesmo ser um mito, concluo, mas não deveria de todo ser assim. Deveria ser muito mais simples a junção das coisas, dos interesses, das vontades, de tudo no geral.)

P.S: Estou grande p'ra caraças. E para além disso este post remete para questões imensamente fúteis, desculpem lá, podia bem ter-vos avisado lá em cima.

sábado, 18 de agosto de 2012

Encantos

Ainda se lembra de como ele a espreitava através das cortinas brancas da janela. Segurava entre os dedos mornos o pano envelhecido e esboçava um sorriso franco que exalava o mosto de vida que lhe corria no corpo. Ela olhava-o de soslaio, uma típica manifestação feminina de quando não sabemos muito bem o que esperam de nós. Somos certeiras quando descobrimos, centramo-nos directamente no local exacto onde deveremos fazê-lo, diria até que com divina arte, quando nos é dada a indicação clara do caminho, mas antes disso somos prudentes. Eventualmente previsíveis para quem nos conheça qualquer coisa, mas prudentes, não vamos meter o pé em falso e denunciar dúvidas que temos, que existem, que pairam incertas pelo ar que nos rodeia. Devagarinho começou a abrir a janela e a sorrir para ela quando ela passava, propositada ainda que discretamente. Não podia apontar-lhe intento, ela não o permitia, mas sabia da sua existência, só podia sabê-lo, ela também nunca fez nada para disfarçar. Retribuía o sorriso, sempre soube sorrir muito bem e de forma natural mesmo que envergonhada, é um dos predicados que guarda no corpo. Ele não ligava muito a isso mas apreciava especialmente as mãos dela. Duas partes do seu corpo esguias e pequenas que lhe afagavam os cabelos a toda a hora. Gostava ainda que se escondessem todas nas dele, mas ela nunca percebeu muito a fundo a fixação, nem ele nunca lha conseguiu explicar. Incluir-se-ia possivelmente dentro de um pormenor que lhe acendia algum instinto mais carnal, que só isso justificaria a insistência em olhá-las e em apertá-las até lhe fazer doer. Aí parava e sorria.
Houve uma altura em que se inverteram os papéis. Ele ia e ela olhava, e chegava a acenar, sabia que podia fazê-lo. Já sabia que podia fazê-lo. Houve uma ou outra vez que até lhe atirou um beijo, algo que prezava ao infinito. Chamava-lhe os beijos que voam, e gosta muito deste nome. Ele retribuía sem medo do que ela pudesse achar da sua figura, grande e possante que atirava beijos para o ar, o desajeitado. Nessas coisas nós, mulheres, somos muito mais cuidadosas. Não fazemos tudo o que nos apetece se não nos parecer bem, e perdemos muito com isso. Idealizamos cá dentro o que julgamos que poderemos ou não fazer, racionalizamos os sentires e depois fazemos ou não, de acordo com o nosso próprio julgamento, que pode sempre falhar, acho até que falha muitas vezes. Por isso há coisas que não dizemos e que não fazemos, muito embora as deixemos a flutuar, mais ou menos como lhe flutuavam os olhos quando ele a olhava pela janela. Há por conseguinte coisas que vocês conseguem entender, haverão outras que eventualmente vos escapam. Deveríamos ter um outro cuidado com este tipo de situações. Nós, não vocês que são mais práticos, e que consequentemente vivem uma vida muito mais vivida, talvez mais sentida, ou no mínimo, mais executada. Mas no fundo no fundo, e encarando aqui a prevalência de um julgamento com a inerente  possibilidade de falha, ainda para mais porque me remeto para o género oposto, acho que será também este mistério da nossa existência que vos deixa ligeiramente encantados. Entre outras coisas, claro, mas aqui falo do verdadeiro encanto. A candura emoldurada, que vai-se a ver e com cuidado, desmembra-se em gente. A possibilidade da descoberta traz sempre um qualquer encantamento inerente, eu, mesmo mulher, também gosto muito de descobrir coisas.

( Os momentos e as coisas dependem das nossas escolhas e das nossas avaliações. Ontem alguém me dizia que o problema da sua vida era pensar com o coração. Não me parece de todo que isto constitua um problema. Se partimos de uma linha recta para analisar os sentimentos, encontramos qualquer coisa semelhante a isto: O coração sente, nós deixamos, agora ou depois, e chegamos lá, ou pelo menos soltamos a alma, deveremos sempre conseguir soltá-la. No outro lado: O coração sente, não o escutamos, deixamo-lo de lado, é fraco. Potenciamos a razão e continuamos em busca de conciliação. Parece-me isto, não sei. Sem lutas, claro, mas um a zero, ganham vocês. Porque vivem e porque descobrem.)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Santa Maria

( - A menina, dança?, ouviu-se baixinho. - Danço, danço, respondeu ela. - Eu sabia, consigo lê-la... - Não diga disparates, vá lá. Eventualmente lê o que eu quiser que você leia. O resto tenta adivinhar e por vezes, não muitas, acerta... Dancemos então?) 

Pêras

Já consigo ver as pêras maduras no alto das árvores. Coradas pelo ar enfeitam as pereiras estreitas que se aninham em fila pelo pomar da beira da estrada. Está batido pelo sol. Já consigo sentir-lhe o cheiro, que recobro dos arraigados da memória dos tempos em que eu subia a um escadote de ferro que arrumava nos troncos das árvores. De lá de cima via muitas coisas, que parece que ainda vejo. Consigo ver, por exemplo, a Sr António que guardava e orientava as tarefas enquanto carregava as caixas cheias do delicado fruto para cima do tractor guiado por Jaime, o Dono do pomar. Consigo ver a Célia que fugia para baixo de umas árvores distantes para matar o vício, e consigo ver a aguadeira que se passeava vagarosa por entre os carreiros enquanto toda a gente esperava pelo púcaro da água, que nunca mais chegava. Há pessoas no mundo que demoram demais para chegar, isto é uma verdade. Consigo ver o corrupio intenso do meio dia, altura em que o almoço se retirava de dentro das cestas de verga e se comia com gosto, com muito gosto e acima de tudo com muita fome, que os ares do campo dão-nos gasto ao corpo e qualquer mísera bucha sabe a manjar.
No calor da tarde muitas usavam pedir auxílio aos santos, sempre atentos do alto do céu. -Valha-me Santo António, valha-me nossa Senhora da Conceição, valham-me pronto, que bem preciso, seja um ou seja o outro, ou ainda qualquer um outro que o que não falta são santos aos quais precisamos de entregar o corpo quando a alma tremelica. No final da jorna o regresso era feito com um ar enxovalhado que apoquentava a minha avó. - Rica filha, não foi para isto que eu te criei. Foi, claro que foi para isto. Ela não sabia, e eu eventualmente na época também não, mas há experiências que deveriam passar por todos os corpos para delas retirarmos tudo o que há a retirar, a fim de guardarmos para a posterioridade o que pudermos reter dentro do invólucro mais precioso que Deus ao mundo deitou. Consigo até sentir o banho que me limpava do pó, me refrescava do calor e me entregava devagarinho ao cansaço, quando a hora do dia era já de sossego...

(Aquelas pêras olham-me oferecidas, bandidas. Qualquer dia ainda lhe cedo, agarro num cesto e trago-as comigo para casa, não antes de comer umas quantas a meio da jornada. Ao longo do trabalho, e isto em remorso por pecado, peço a bênção aos santos para que me alumiem os caminhos. Todos precisamos de algo que nos alumie e nos guie os caminhos. E se não for santo que seja outra coisa qualquer, desde que nos guie.)

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

...

São umas cinco, todas penteadas e viúvas, sei disso porque as conheço há muito. Povoam o jardim de fim de tarde, o mesmo jardim que de manhã é frequentado por homens que lêem jornal, e que depois do almoço é percorrido por famílias que bebem o café enquanto os miúdos correm atrás de bolas, escorregam, baloiçam, saltam e brincam. Ao fim do dia o jardim da cidade já viu inúmeras coisas, já mirou muitas gentes, já assistiu a variadíssimos acontecimentos, e provavelmente está cansado. De nada lhe vale, não lhe permitem descanso, que é exactamente nessa hora que as velhas se reúnem, aparatosas, barulhentas, como que a quererem mostrar que ali ainda existe vida. E existe. Existe sempre vida para além da morte dos que nos morreram.

Pierre-Auguste Renoir

( Pela minha parte consigo percorrê-lo e apoderar-me dele a toda a hora. Não me complica o silêncio da manhã, a dinâmica da tarde, e nem sequer o aparato do final do dia. Pelo contrário. Tenho por hábito aguçar os sentidos e sorver para dentro de mim a vida de tudo e de todos. Encaixo-a dentro do meu corpo, respiro fundo, e volto sempre muito mais cheia.)

Elvis Presley - Jailhouse Rock

( Sem desprimor por nenhum Rei, confesso que o do Rock é qualquer coisa para mim.)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

TIETA - Amorzinho e Cinira: o homem nu (1989)


(- Mãe, porque não vês novelas?
- Porque já não tenho quinze, filho. E também porque já não se faz disto.
- Se fizesse vias?
- Claro... Duvidas???)


Reflexão intensa para aproveitar a véspera do 15 de Agosto, que segundo consta vai deixar de ser de descanso. Não se percebe não, logo aqui, no pino do verão...


( Post comprido, em caso de enfartamento abordar a meio. Esforços e simpatias de circunstância não são para aqui chamados, que eu não aprecio. Nem um, nem outro.)

Para o meu pai eu teria escolhido os números, utilidade que poderia aplicar na vida considerando que nunca  nos falham, nunca nos traem, nunca nos enganam ou tentam ludibriar, sendo que ainda nos dão um preparo considerável na gestão dos dias. Estaria por esta hora entregue a uma secretária cravejada de papéis, local onde eu e o meu caos nos encontraríamos diariamente com vista à manutenção de uma relação que teria por certo todos os contornos com excepção da salubridade. Ainda estive vai não vai, ainda considerei o assunto de forma séria e ponderada, a única possível aos dezassete anos de idade, altura em que deveremos fazer escolhas para a vida mais definitivas do que um casamento, ou no mínimo, de mais difícil e morosa resolução em caso de engano efectivo. Estamos capazes, é um facto consumado, pelo que vamos então optar.
O meu avô, um velho hipocondríaco de nascença, tentou enfiar a minha fraca inteligência nas ciências medicinais. Não teve sorte, valeu-lhe a minha irmã, que  muito embora não seja médica é enfermeira, uma profissão de nobreza maior, não obstante desvalorizada vezes consideráveis. Para além da minha fraca capacidade do foro intelectual, também não me via diariamente a acudir a mazelas de reumático, a infecções virais, a administrar medicamentos para a agonia ou para a falta de apetite, e ainda, agora mais do que nunca, a passar receituários por via informática ou em papel, em caso de excepção justificada, de comprimidos milagrosos capazes de combater os efeitos da crise, traduzida em males diversos do corpo e da alma. Não, não dava para isso.
Ponderei pela minha parte as leis e as casas. As leis por nada de especial, nem sequer por nenhuma veia nobre de reposição de justiça, mas apenas porque me seduzia muito a indumentária apresentada por senhoras altas e magras, normalmente morenas e de cabelos impecáveis, que se empoleiravam em cima de saltos altos e envolviam o corpo esbelto em tailleurs irrepreensíveisamigos das mulheres e da vista dos homens. É claro que isso me passou depressa, até porque o meu ar anafado, a minha aparência tacanha e a minha postura deselegante e ligeiramente corcunda, ainda complementada por espaços intra dentais, pernas escanzeladas e joanetes teimosos a sair das sandálias consideráveis, nada ganhariam com tais artefactos, que só conseguiriam deixar-me numa figura ridícula e nada agradável à vista, quiçá comparada a uma Angela Merkel, versão piorada. Desisti, pareceu-me sensato,  e passei então para as casas, um território onde são permitidas versões mais descontraídas e complacentes com as limitações do meu corpo. Desenhar espaços onde os outros viriam a morar seriam então um sério desafio, não fosse a minha incapacidade, atestada e declarada, para tudo quanto fossem geometrias, fórmulas de engenharia complexas, e ainda uma verdadeira limitação no que toca a desenhar duas linhas paralelas uma à outra, sendo que havia sempre uma situada ligeiramente ao lado do sítio onde deveria estar.
Foram tempos difíceis estes, que finaram no dia em que se me fez luz, e em que descobri que as ciências abstractas que estudam o homem tomavam conta do meu corpo. Nelas conseguia verdadeiramente sentir-me em casa, coisa que convenhamos, nos dá um sossego do caraças. Podia fazer tudo o que me apetecesse, encaixando sempre os meus comportamentos, por bizarros que fossem, dentro de alguma justificação completamente aceitável, podia ouvir tudo o que possam imaginar, que nada me soaria a estranho ou a descabido, podia ainda perceber filósofos, teólogos, pensadores e alucinados, que todos me faria sentido. E podia ainda extrapolar sobre tudo isto, que haveria sempre uma teoria que iria albergar de forma plausível toda e qualquer barbaridade que me saísse da boca em forma de pensamento.  Ora isto foi uma descoberta considerável, apaziguadora, abrangente o suficiente para que a partir desse dia eu me movimentasse muito mais liberta, e verdadeiramente mais leve.
A única coisa onde infelizmente ainda não consegui resultados, mas onde me aprazeria muito atingi-los, foi no comando efectivo do meus pensamentos mais viscerais. Mas nesta ordem de ideias e encarando a abrangência da mente, tal não deve ser de todo impossível, sendo que pode ainda dar-se o caso de um dia eu conseguir lá chegar. Se tal feito acontecer, se tal realidade ocorrer dentro deste meu fraco e limitado ser, registarei a patente e vendo o acesso baratinho, que nestes tempos de crise temos de ser uns para os outros. E isto já a minha avó dizia, uma senhora sobrevivente de uma crise de outrora, aquela onde as pessoas cresciam a dividir uma sardinha, uma banana apodrecida, ou, e só aos Domingos, o parco chispe do almoço familiar.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Histerias

Há coisas consideráveis, se é que não sejam realmente todas, que poderemos utilizar em prol do bem ou em prol do mal. O principio da sedução, por exemplo, usado e abusado pelos neuróticos histéricos é um deles. É fácil uma postura cuidada, uma aparência estudada, palavras estruturadas para se fazerem ouvir da forma que soam bem e que queremos que o outro as escute; também não é difícil assumir opiniões aceites, sabemos muito bem o que a sociedade e o outro esperam de nós. Nesta sequência, este principio não trata mais do que um lábil mecanismo de defesa denunciador de fragilidades, como todos os mecanismos de defesa que utilizamos para proteger o corpo. Necessitamos de controlar a atenção do outro porque não queremos de todo perdê-la, faz-nos falta, carecemos dela, e só num patamar diferente de evolução conseguiremos eventualmente dispensá-la. Confesso que muito embora o conceba e o entenda, devidamente fundamentado pelas teorias que estudam o desenvolvimento humano, considero-o um terreno no qual se abusa indevidamente, esmiuçando alguma fraqueza alheia, e até, sem darmos por isso, banalizando qualquer coisa que pode ser utilizada por motivos muito mais nobres, além do domínio, por vezes fictício, nu e cru. Nos dias, assumo que as tentativas que exercem sobre mim me perturbam. Algumas, e se usadas de forma inteligente, podem perfeitamente passar-me despercebidas no meio da banalidade da vida. Mas não raras vezes dou com elas. Pequenas atitudes condicionadas, gestos direccionados, tentativas de me dar o que não há, para ver se eu abrando. Quando assim é, perdem ambos os intervenientes. Eu porque recuo, o outro porque inutiliza de todo a hipótese de conseguir o que pretende.

(Claro que se houver savoir faire à mistura, tudo é mais perdoável. A inteligência é uma faculdade que admiro ao infinito, mesmo nos histéricos. Houve alguém em tempos idos que ousou catalogar-me de neurótica histérica, a estrutura que menos aprecio em termos de personalidade. Não sou, nunca seria, não gosto dela e causa-me repulsa aquele ligeiro rasgo de ambição superior que todos deixam transparecer do corpo. E mesmo que em hipótese remota o fosse, nunca assumiria sê-lo, em pleno direito de me reservar para quem eu entendesse capaz de me guardar esse terrível segredo.)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

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Sentada na mesinha redonda da pastelaria do jardim delicia-se com uma água de sabor fresca, acondicionada numa garrafa colorida e apetitosa. Uma saia de riscas curtinha é composta por um camiseiro branco impecavelmente engomado, ao qual acrescentou uma sabrina azul muito adequada à indumentaria em questão. Folheia uma revista de moda e vai falando com a amiga sentada ao lado, enquanto sacode com insistência os cabelos teimosos que insistem em tapar-lhe a expressão indignada do rosto. Fala-se da vida dos outros, com forte insistência na vida das outras. Algumas não sabem ser mulheres, outras passam a vida em saídas nocturnas enquanto alguém lhe toma conta dos filhos, não se sabe quem. Nenhuma das duas percebe este assunto delicado, o que convenhamos, o deve elevar ao estatuto de realidade verdadeiramente incompreendida, só assim se justifica que nem uma nem outra consiga outra explicação que faça sentido, para além da leviandade. No meio surge um ou outro apontamento a situações masculinas, seguidas de imediato de um mas esse é homem. 
Somos de facto um estranho espécime da natureza humana, coisa que se reflecte em diversos domínios dignos de realce. Por exemplo, perdoamos a inteligência às feias, a beleza às pouco inteligentes, a riqueza às infelizes e a felicidade das menos abençoadas pelo Deus da perfeição. Somos ainda capazes de aguentar com as primorosas donas de casa muito mal casadas, ou com as bem casadas pobres de Jó. Mas o que não conseguimos de todo e em tempo algum é aguentar com a movida das que relaxam e a aproveitam, quer elas sejam felizes, infelizes, belas, magricelas ou de tamanho considerável,  porque isso é coisa para homens. Somos tão giras, não somos? E em sequência, colhemos frutos merecidos que também não conseguimos explicar muito bem. São coisas da natureza, deve ser isso.

( Não sei se já vos tinha dito, mas quando nascer outra vez vou ser homem. Os mistérios do género feminino são demais para a minha humilde existência.)

 

domingo, 12 de agosto de 2012

Survival


Sopa

Um dia fomos lá a casa. Encontramos uma avó a uma sombra e um avô sentado na soleira enquanto esculpia um qualquer artefacto de serventia agrícola com uma navalha de bolso. No canto da boca um palito passeava-se de um lado para o outro num entretém que lhe atribuíram, muito embora nem fosse essa a sua real função, como todos vós sabeis.
Ao ver-nos, o velho tira a boina, coça na cabeça e sorri. Prontificasse a contar-nos a sua história, pelo que nos sentamos num banco de madeira, havia tempo. O sr. António tinha ficado na carrinha e provavelmente por esta hora já estaria sentado na taverna da aldeia a bebericar uma cerveja e a comer uns tremoços, coisa que nunca acontecia, segundo palavras suas, esquecidas de que o meu olfacto é um sentido prendado, em quase tudo semelhante à minha audição, a mais temível parte do meu corpo.
Era dali desde sempre. Havia corrido umas terras, vendido um gado, colhido uns hortos que lhe permitiram distribuição nos arredores e até na capital com vista a dar a devida educação ao filho, com o qual falhou. Não consegue ver a coisa de outra forma, deve de ter sido uma falha ruim, daquelas que não têm remédio nem sequer com o tempo, com os anos que passam e com as amarguras que se encontram, que só isto justifica tamanha consequência nascida num pai de família, pessoa que deveria ser capacitada para sustentá-la, e não para permanecer com o corpo encostado num balcão desde manhã cedo até se findar o dia, sem qualquer intervalo ou interrupção, enquanto a casa padecia por pão e por leite. Já procurou verdadeiramente onde possa ter falhado. Já construiu em retrospectiva todos os dias corridos, todos os ensinamentos efectuados e todos os castigos implementados, mas a verdade é que não conseguiu compreender onde é que errou, nem qual o momento exacto em que o seu adorado filho deixou de ser gente para passar a ser um emplastro, sem préstimo e sem perdão.
Após ouvirmos esta história tentamos abeirar a avó, uma senhora que se ajeitava para a lida da casa e que falava do neto com um orgulho maior. Tinha-lhe dado tudo o que não lhe deram em casa, acompanhado as noites e os dias, curado as doenças e as febres diversas, talhado os arrufos e afagado as virtudes, que segundo ela eram mais do que muitas, não houvera saído ao pai.
O nosso intuito era tentar perceber se o núcleo conseguiria albergar um adolescente em ascensão, mas não conseguimos deixar de sentir a fragilidade que nasce no corpo com os anos, e a brandura com que se olhava para uma malandrice própria dos quinze, que em tempo haviam sido castigados num outro corpo e em vão. O rapaz, alto e loiro, sorria entre dentes e no final convidou-nos a entrar. Lá dentro, num fogão antigo atiçado a lenha fervilhava uma panela de sopa de feijão com chouriço bem temperada com tomate, que se esvaia num cheiro sem igual. Na mesa, e aos três pratos já colocados, juntavam-se mais dois, rodeando um pão caseiro de aspecto rude e um prato com queijos frescos ainda enfiados em cinchos de metal que os seguravam inteiros na hora de coalhar. Sentamos em novo convite e comemos, enquanto as fitas coloridas da porta batiam com o vento, sob o olhar atento do velho. Falhei uma vez, disse por fim. Tenho em mãos não falhar mais nenhuma.

( Soube há pouco que não falhou. Não fosse a distância e já lá teria voltado, dava-lhes os parabéns, aproveitava e comia um prato de sopa. A sopa de feijão com chouriço é um acepipe digno de figurar em qualquer livro de culinária Portuguesa. Não merece de todo o descrédito que lhe dão.)

Estrela do Mar


sábado, 11 de agosto de 2012

Chato? Chato é andar descalço em casa e bater com o dedo mindinho nos móveis. Isso é que é chato...

Aquela apelidação das coisas chatas utiliza-se em todo o lado e mais algum, com vista a catalogarmos situações ou pessoas das quais não gostamos. O trânsito é chato, o trabalho é chato, o calor é chato tal como o frio o pode ser, e enfim, por aí fora, que o que não falta são cenas chatas para nos atafulhar o espírito cheio de crise e de problemas por resolver. Eu honestamente não simpatizo em demasia com esta expressão que incluo no âmbito da catalogação, finda a qual transformamos coisas em impregnações estereotipadas, que bem analisadas podem muito bem não ser assim tão chatas se a nossa mente se reprogramar para que não sejam. Isto vem-me da veia positiva pregada pelas correntes da Psicologia optimista, que nos ensina a enfiar literalmente as ocorrências dos dias em compartimentos de proactividade, transformando o que de menos bom nos acontece em situações que poderemos aproveitar sempre em prol de qualquer coisa. Concebo que isto dito desta forma possa soar a conversa barata, eu própria tenho dias em que não encontro o lado positivo das tais coisas chatas, muito embora elas o tenham, se não sempre, quase sempre. Soa-me por vezes a uma qualquer teoria defensora de uma resiliência sem limites, isto quando não consigo descolar-me dos aborrecimentos e continuo agarrada à efectiva chatice dos dias. Mas depois normalmente descolo, a fim de me enquadrar novamente, e consigo o objectivo vezes consideráveis.
Falo nisto agora, porque me parece que o País se encontra actualmente mais carente do que nunca de abordagens do género. De abordagens que nos incutam algum espírito de avanço, o mais capaz de nos fazer prosseguir em situações adversas. E curiosamente, já houve tempos em que esta corrente se insurgia mais do que actualmente, ou que simplesmente era mais divulgada pelos meios de comunicação social. Mas ainda assim está muito activa, pelo que quem quiser saber um pouco mais sobre o assunto pode seguir este link do Clube do Optimismo, onde se pode perceber de forma clara e acessível os fundamentos, bem como ter acesso a formações e projectos ligados a esta corrente. Nem tudo o que parece é chato. E mesmo que o seja, pode passar a ser um bocadinho menos. É tudo uma questão de proporcionalidade.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Bom dia

A porta abriu-se no segundo andar do prédio. De lá de dentro sai uma moça esguia com uns saltos muito altos e uma mala de mão. A escada do prédio está barulhenta, vêm os netos do primeiro a chegar. Viver em andares traz uma proximidade estranha às pessoas que não são nossas. O espaço é diminuto e as paredes não chegam muitas das vezes para guardar os impulsos de vida que se vivem em escadinha, mesmo que a cara da porta ao lado seja uma coisa estranha. Não se vê mas ouve-se, o que potencia a imaginação tal e qual uma escrita que se lê sem vermos o corpo que a construiu.
Inicia o trajecto profundamente sabedora do que irá suceder a seguir. A moça, mãe dos dois netos da avó que reside ali, irá acelerar o passo mal lhe oiça a descida. Começará atrás da mais velha, vá depressa, a avó está à espera, enquanto deita bofes pela boca por carregar com a mais nova em braços para cima ao mesmo tempo que empunha os sacos de sempre e o seu próprio corpo, significativamente grande, e por consequência certamente pesado. O encontro provavelmente não se dará por segundos, mas poderá até dar-se se o abreviamento do ritmo da mãe e da pobre da filha não for suficiente para concorrer com o aceleramento da moça que desce, alguém que ainda manifesta uma malandrice nata que lhe veio com o nascimento e que provavelmente só lhe será tirada pela morte, a única grandeza suficientemente capaz para dar cabo de determinadas imperfeições do corpo, externas ou internas, nem importa agora aqui. Em circunstância de não encontro, quem desce ainda conseguirá perceber a entrada esquiva e de rompante na porta estreita, logo seguida de um pum rápido e forte, não vá ainda dar-se o caso de vir a ser necessário o temido bom dia, se os olhos se cruzarem e em respeito à boa educação. A boa educação é algo sobre o qual as pessoas gostam de se referir com prosápia, ainda que a  verdade seja que por vezes constitua qualquer coisa que se guarda escondida e que apenas surge em determinado contexto, como se nos restantes domínios não fosse realmente precisa, sendo que isto pode acontecer por inúmeros factores que nem importa por ora dissertar. Em caso de vitória do andar de cima, que quanto mais não seja valerá pela localização superior em termos de patamar, o cruzamento irá ocorrer algures na escada, rodeado a flores e sob o olhar atento das crianças que sorriem, sempre. Nascem então dois bom dias, um a contragosto e o outro provocatório, que a realidade é que a provocação é qualquer coisa que nos cria no corpo uma sensação de empolamento e de satisfação, que ainda que néscia, sabe a vitória. É qualquer coisa, pronto.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

...


( Genetic incompatibilities... Probably...)

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Acasos?


A bipolaridade intercala euforias e tristezas, mas por vezes penso que será sensato, mesmo que soe a estranho, encaixá-la em outros domínios, por ventura abusando de uma denominação muito forte. Poderá constituir estados de espírito opostos, sem a alegria extrema, e até, quiçá, sem a tristeza doente. Nesses desígnios pode sentir-se por exemplo a calma absoluta, ou até um cansaço, ainda que composto por rasgos de vida eufórica marcada por vontades explícitas, quase incontroláveis, como se do corpo nos saíssem pulsões que queremos guardar em vão. Em vão, em vão talvez não seja, que as resguardamos ao menos aos olhos circundantes. Escapam-se apenas por poucas palavras, por gestos banais, por pequenos nadas que mais ninguém lê a não ser o próprio, quando este se compreende. Deve ser um pavor não compreender os sinais do corpo, ou então não acreditá-los e considerar simplesmente serem meros acasos. Nada do que fazemos é por acaso, sendo esta continuidade de acção que nos torna individuais. Nunca me convencerei de que uma esquina num caminho, é igual à mesma esquina no caminho de um outro corpo, isto apenas a título de exemplo. Interessante esta pertença entre nós e as coisas ou entre nós e os outros, que traduz uma atribuição única e intransmissível. Extensível ainda ao domínio do tempo e da nossa evolução.

( O meu corpo tem coisas diversas que aprazeria imenso que fossem acasos. Não são, sei disso perfeitamente. Nada é por acaso.)

Normas

Hoje bem cedo o Magalhães passeava-se na berma da estrada aos ziguezagues. A mãe dele falecida há muito, era uma senhora grande por dentro e por fora que tinha um colo capaz de o cuidar ao extremo porque ele, um pobre, tal não conseguia fazer. Via-se o colo dela a olho nu, ainda para mais porque era auxiliado por uns peitos enormes daqueles que até podem remeter para uma maternidade fácil e eterna. Foi desde essa morte que tudo mudou. Uma morte simples, uma simples morte. Veio na devida altura, se é que isso existe, estando a velha cansada de zelar um homem que deitou ao mundo na esperança do crescimento, mas que por motivos que provavelmente desconhecia deixou de crescer, tornando-se por isso um peso para acartar ao longo da vida, juntamente com a sua e enquanto ela pudesse. Nesse dia Magalhães foi visto na beira da estrada estendido ao sol, diz ele que a ver se aquecia, que sentia por dentro um gelo gelado capaz de o secar. Hoje deambula sem rumo, não faço ideia do que sente, e verdadeiramente, e muito embora o tenha dito, nem sei se sem norte. Pode perfeitamente tê-lo encontrado, não existe a obrigatoriedade de tal facto, se tiver surgido, ser por mim percepcionado.
Lembrei-me entretanto de um outro ser que não vejo há muito. Vivia dentro de uma casa composta à volta por um silvado denso e espinhoso, de onde nunca saía. A misericórdia levava comida uma vez por dia, até que em certa altura houve intento externo em acabar com aquela desgraça. Acompanhei o serviço e entrei na casa vedada até então. Lixo no chão, bichos diversos e uma estante cheia de livros interessantíssimos era a única coisa que havia ali, para além da própria pessoa, que normalmente emanava sorrisos dos olhos que naquele dia choravam. De facto, e a propósito de um apontamento surgido algures, a loucura é sempre um conceito estranho. Existirão as declaradas e atestadas por alterações reais, mas depois também existem muitas outras, que assim gostamos de chamar apenas porque não se enquadram naquilo que consideramos a norma. A norma, engraçado, também poderá ser uma loucura, pelo menos a meus olhos. Não acho nada normal haver quem não goste de chocolate, por exemplo. E isto, vem doce e de chocolate só para abrandar a questão.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

...



- Ai que saltos, isso faz-te mal... Às costas, é isso...
- Hum, sim...
- Tu é que sabes, o teu corpo é que paga!
- Claro, já o António Variações dizia isso. Ganda maluco.
- ...

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Teoria da avestruz

Havia dias em que se sentia estranha. Já tinha lido nos livros que o inconsciente pode trazer estas coisas, mas uma coisa é ler outra coisa é dar corpo. Dar corpo é sempre uma diferente sensação, as coisas entram não sabemos por onde, alojam-se em locais que não queremos, e depois disso é viver com elas a escorrer no sangue, a saltar das lágrimas e a transpirar dos poros, com urgência de vazão. O inconsciente pode mesmo trazer destas coisas. O conceito proposto por Carl Jung introduz sobre a teoria de Freud um conceito de pré-consciente que seria o conjunto de processos psíquicos latentes, prontos a emergirem para se tornarem objectos da consciência.  Já o inconsciente seria então uma esfera profunda e ainda mais insondável que todos temos cá dentro. Voltamos à dádiva do corpo. Dar corpo às coisas é trazê-las cá para fora. Pode ser fácil ou pode ser difícil, pode vir a vontade ou em expulsão, depende do contexto e da estrutura mental. Trazer à consciência determinadas coisas requer sempre algum trabalho. Interno, por vezes externo, se o nosso eu se sentir afrontado com o que se avizinha em termos de sentimento. Nessas alturas temos por hábito recuar e recalcar para dentro o que nos perturba, porque nem tudo é facilmente suportável. Há muitas coisas dificilmente suportáveis, a realidade é mesmo essa, mas não deveríamos por isso deixar de senti-las. Quanto mais depressa lhes dermos corpo, mais depressa conseguiremos aprender a vivê-las, uma vez que nunca é possível eliminar de todo o que quer que seja que nos atravesse. O nosso reajuste quotidiano pode depender disso, bem como a reinserção na vida e em nós mesmos. Claramente que pressupõe um momento merecedor de preparação prévia, que se não for respeitado pode trazer riscos acrescidos de descompensação séria. E é aqui que entra alguma sensibilidade importante, e em caso de intervenção externa, uma vez que nunca podemos medir o outro verdadeiramente, nem consciencializar efectivamente em que degrau se encontra situado. Há um risco de erro por mínimo que seja, e se ele ocorrer poderemos ter necessidade de remediação adequada. Devido a isto é sempre com algum cuidado que entro nos mundos alheios, e por vezes até nos meus, que por próprios que sejam são territórios internos. Prefiro concentrar-me no pré-consciente, é um terreno muito menos perigoso e de fácil gestão, muito embora por vezes não baste. Não basta porque a nossa mente tem de facto locais obscuros, quiçá vividos, quiçá esquecidos, quiçá apenas ambicionados. Nesses locais, dúbios, censurados, somos o que não queremos, sentimos o devido e o indevido, poderemos até ser doentes no sentido de não normalidade. E não, não é boa a sensação, sei disso de fonte segura. Mas também sei de fonte segura que não ir lá não apaga nada do que lá está.  Mais ou menos como a teoria da avestruz, uma das mais perfeitas de todos os tempos. 


De dentro para fora

Manuel Fonseca seria um bom concorrente para ganhar a primeira página do Actual ( agora sem c, mas eu sou das teimosas) ao Pedro Mexia. Não que eles se encontrem em disputa, eu pelo menos desconheço o facto, mas é que ambos a merecem. Notou-se verdadeiramente nesta edição, muito embora aconteça em muitas outras. E depois haviam mais, de outras páginas e de outras paragens que não vêm ao caso, mas que ainda assim são dignos. A dignidade na escrita e na partilha de ideias é qualquer coisa de visceral. Vem de dentro para fora e não de fora para dentro. Quem escreve de fora para dentro nunca chega a lugar nenhum. Tal como quem vive ou como quem ama.

domingo, 5 de agosto de 2012

Encontros e despedidas


Festas

Agora aqui à volta as pessoas dançam. Reúnem-se em grupos ao redor de mesas com toalhas brancas ou de quadradinhos, comem, bebem, e fazem a festa. Agosto é o mês indicado para que isto se faça. Quem vem de fora gosta de sentir o calor de Agosto e a amabilidade com que as gentes os recebem de volta. Deve ser bom este regresso a casa, de algumas vidas que se guardam para viver no verão, muito embora este facto me cause algum desconforto. As vidas devem viver-se sempre, e conseguir esse feito não é para todos, muito embora haja quem o consiga fazer. Um privilégio, não haja dúvida. Agosto é também um mês quente e com dias longos. Os dias longos mingam a noite escura e permitem relentos doces e agradáveis. Em tempos lá na Aldeia também se dançava, comiam-se fios de pinhão e ouvia-se a banda da música. Ainda me lembro. Lembro-me do João, um moço alto e viçoso que tocava saxofone enquanto olhava para mim e sorria muito, mas de um tempo a esta parte não sei o que lhe aconteceu. Lembro-me também de um conjunto de roupa às riscas que a minha mãe me comprou para eu levar à procissão, eu era festeira e deveria por isso ir composta. Tinha uma saia e uma camisa com uns bolsos em forma de cone a lembrar um gelado, e foi comprado algures numa barraca da feira de Santarém. A senhora garantiu que era da máxima qualidade. Ainda me lembro também de o vestir pela primeira vez, ao Domingo, e de me mirar ao espelho durante muito tempo, já um pronúncio de vaidade que só cresceu com o tempo. Nesse mesmo dia, à noite, a prima Ângela dançava e namoricava livremente no baile, enquanto as velhas teciam comentários diversos sobre o futuro da rapariga. Ter trinta e não ter noivo era um sério problema, a carecer de urgente solução. São giras as nossas memórias, perco-me com elas. Não nos surgem vindas do nada, têm implícito um critério rigoroso sobre o qual nem pensamos por vezes. Parecem mortas e enterradas mas de repente voltam a nascer como se sempre tivessem estado vivas dentro de nós, o que não deixa de ser uma verdade. Podem emergir de um sussurro, de uma coisa que cheiramos, de uma pessoas que vemos. E é ai que voltamos. A viver, a cheirar, a ver, a tocar. Porque para tocar e ao contrário do que muitos julgam, não são precisas mãos, são precisas vontades. Eu por exemplo, consigo tocar em muitas coisas ou pessoas que já se foram apenas com o meu coração. Há outras nas quais não me apetece pôr o corpo e por isso deixo-as mais ao lado. Passam por mim assim como que uma névoa, fugazmente, mesmo que algum chamariz as atice em insistência. Não gosto muito que interfiram com as minhas memórias. Não aprecio que me mandem esquecer o que me construiu, e que guardo ou não guardo, depende de mim. Por isso nunca permito que me digam esquece isto ou esquece aquilo. É uma ordem egoísta e profundamente ignorante. Quem sabe qualquer coisa, ainda que pouca, de gente e de pessoas sabe o quanto essas palavras são vãs e impróprias. Vãs porque não podem ser obedecidas apenas porque algum agente externo o pretende, impróprias porque indicam um caminho triste e sinuoso. Não posso nunca esquecer as minhas memórias, pelo menos as significativas, sejam elas boas sejam elas más. Morro de medo de perdê-las, arrisco dizer, e há muito que peço a Deus que em caso algum mas leve com ele. Nesse dia, e se ele chegar, toda eu morro com elas. E morrer em vida não é de todo a morte com que sonho para mim.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Absurdos

Hoje passeiam-se à minha volta vozes internas que alguém expulsa. Não consegue guardá-las no corpo, nem às imagens que encontra. Vê demónios, maldade, uma infinidade de rostos negros e escavacados. A loucura pode ser boa e pode ser má, sempre ouvi dizer. O tonto pode ser feliz ou pode ser infeliz, e ainda pode ter medo. Do mundo, de si, das vozes e de tudo. Não concordo com isto, para mim a loucura deveria ser sempre da boa. A ausência de capacidade e intento são já limitação suficiente, pelo que um mundo cor de rosa deveria ser o mínimo exigido para se figurar no conceito. Não é. Pode-se ser louco e sofrer ao mesmo tempo, manifestação que entra directamente para a categoria de absurdos da existência. Mais um.

Por uma questão de lógica

Vozes descrentes é algo que não gosto de ouvir. Insta-me abafá-las, calá-las a um mundo que delas não precisa. O mundo é um local digno e um local pesado, provavelmente em igual dimensão, pelo que deveríamos sempre crer na sua bondade tal e qual cremos na sua maldade. Considero que assim o seja quando em estado limite me socorro da lógica. A lógica é qualquer coisa que nos dá segurança, aquela certeza que ainda que não o seja de todo nos faz desenhar desenhos rectos e lineares, os únicos capazes de nos dar um sossego devido ao corpo incerto que temos. Nesta linha orientadora faz-me todo o sentido que a dualidade referida seja perfeita, dado que só assim me parece possível a coexistência de todas as pessoas, de todas as teorias, de todas as crenças e de todas as  convicções, sem que o mundo entre num colapso ético e definitivo.
Mas por outro lado não me parece nada simples que essa igualdade se assuma no local exacto onde deve de estar, pelo menos na trivialidade dos dias, que mais depressa nos ajustamos a abordagens descrentes do que a visões abrangentes, daquelas onde se encara o amanhã com os olhos abertos e a ligeireza na pele. Nem sei bem a que propósito, mas percebo como acto mais provável amaldiçoar a nobreza para depois empolgar a ausência de carácter, cultivar o negativismo e cair na tentação da desgraça, a pior coisa que Deus ao mundo deitou. Mas pensando bem não será um desperdício? Parece-me de facto. Julgo um desperdício os discursos fatais quando na vida fatalidades são coisas ruins e não aquilo que queremos que seja, ou que assim baptizamos apenas porque nós, naquele exacto momento, nos sentimos fracos. Julgo um desperdício pessoas que não acreditam no amor entre uns e entre outros, ou que o balizam em registos demarcados que mais valia serem deitados ao mar para serem engolidos por peixes gulosos. Julgo um desperdício que se acredite na ingenuidade da infância quando é ela que nos torna melhores e na impotência dos velhos quando são eles que nos dão as mãos em caso de perigo. Julgo um desperdício que não se espere genuinidade de nada nem de ninguém, como se o valor da intenção sincera tivesse sido comida pelo dinheiro, pelo interesse, pela grandeza. Até foi, acredito profundamente nisso, mas pela minha lógica meio mundo há-de ter escapado. Mais coisa, menos coisa.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

...

Oiço e estanco perante coisas do género, fui para psicologia para compreender o comportamento humano. Percebo que alguns o digam, eu própria já o fiz à boca cheia, profundamente crente na barbaridade que me saia da boca a fazer todo o sentido. Mas passou-me com o tempo, juntamente com outras realidades e verdades que engoli, responsáveis por desilusões consideráveis às quais me sujeitei por ignorância. É por isso que nem me afronta o ego em demasia tais palavras nascidas da boca dos jovens, dos universitários, dos recém licenciados carregados de crenças e de ambição da boa, espicaçados por uma vontade que é qualquer coisa bonita de se ver. De resto, e numa primeira instância, posso até considerar de proveito esta presunção que todos temos algures na vida,  uma vez que é ela que nos impulsiona enquanto a estaleca germina e se torna capaz de nos orientar o rumo. O que me perturba é a pretensão dos avançados, dos que estão fartos de se embrenhar nos meandros do inconsciente e que ainda assim se acham capazes de compreender o que não tem compreensão. No máximo são esperadas tentativas, ora frutíferas, ora longe disso, que fazem com que em cada dia algumas, ainda que poucas coisas, comecem a fazer sentido. É que nisto das palavras deveríamos ter mais cuidado. Temos por hábito dizê-las de forma absurda só porque nos soam bem, o que é um risco para a nosso compromisso profissional. É que há coisas que soam bem, mas que não são possíveis. Há muitas coisas que soam bem e que na prática não são possíveis. Isto de que falo, é só uma delas.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Porta

Olhou para a frente e coçou no queixo. Coçar no queixo é aquele gesto do qual se apropriou em tempos e que revela concentração. Pensamento, desejo interior com todas as curvas, todos os cortes, todas as arestas, todas as concavidades e todos os relevos que deverão nascer em cada idealização da mente. A imaginação do que ia construir foi ganhando forma. Começaria do lado esquerdo até ao centro, e terminaria do lado direito, mesmo colado à casa. Teria mais ou menos dois metros de altura. Seria colado a cimento feito com força de braços e deveria ser construido em dois ou três dias, era o quanto bastava. As pedras já estavam empilhadas num monte significativo mesmo ali ao lado, disponíveis para que lhe pegassem e as usassem no propósito estabelecido. Nesse mesmo dia deitou mãos à obra. Gostava sempre de obras iniciadas, ainda que não conseguisse saber à partida os resultados. Dava-lhe uma gana de vida o que lhe nascia das mãos, do intento, da vontade, e que se traduzia em projectos seus quer terminassem quer ficassem reduzidos a algo inacabado, que mesmo assim eram pertença sua. Ainda para mais porque término é qualquer coisa de relativo. Até hoje nunca terminou a casota do cão, só para que percebam, que já quase se concluiu dezenas de vezes para depois necessitar sempre de mais qualquer coisa, tendo já havido até o dia, em que de tão completa, necessitava mas era de arranjo, que o que se usa e abusa carece de manutenção.
Aquele muro poderia constituir uma obra dessa envergadura, tinha consciência disso. Um muro, e ainda que não pareça, poderá sempre ser um inicio ou o motivo de qualquer coisa; uma separação, um suporte para um estendal, obviamente um préstimo doméstico, um sítio onde nos sentamos à noite para ver e ouvir a lua, isto entre muitas outras serventias que agora nem me ocorrem, mas que por certo existirão.
Colocou a primeira pedra. Pincelou-a com jeito e sabedoria por cima, e colocou outra, respeitando a ordem a que se tinha comprometido. Seguiu de carreirinha junto ao chão, para depois se concentrar no inicio da elevação, que se foi dando a seu tempo, exactamente como tinha planeado. Ainda a empreitada ia a meio, e já dentro da sua cabeça nasciam novas ornamentações, novos projectos, novas formas de encarar aquela parede que lhe nascia das mãos, e que parecia impor-lhe um desafio.
Aquele muro de facto guardava-o por dentro e por fora, mas e se de repente fosse preciso saltá-lo? Coçou no queixo. Enrolou a barbicha entre os dedos e pensou que o melhor seria construir uma porta, um local por onde conseguisse passar situado exactamente no meio da fortaleza que criava com as suas mãos. Para isso, precisou de partir e remendar, pelo que partiu e remendou. Colocou a porta, abriu-a, e experimentou passar para o outro lado. Era exactamente aquilo que estava em falta para que a obra ficasse perfeita, sentiu. Não sabe como não se lembrou disso mais cedo. Uma porta. Nada deverá existir sem uma porta no meio.

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