domingo, 19 de agosto de 2012

...

As sobrancelhas são uma parte de mim que deveria ter sido desenhada a dedo e não foi. Uma imperfeição cometida algures no fabrico do meu corpo e que me deixou em mãos a eterna tarefa de as delinear com jeito e precisão, a fim de conseguir enquadrar os olhos. Os olhos são aqueles que falam mesmo quando não queremos, e por isso têm uma vertente verdadeira e incontrolável que os transformam num aliado forte, mesmo que por vezes pareçam trair-nos. Devemos por isso cuidá-los e arrumá-los, é um dever, uma obrigação. Entro e a menina de macacão azul turquesa muito justo encontra-se a pintar umas unhas em tons de rosa forte, uma moda de verão, estou farta do verão. Resolvo sair e ler um jornal. As crónicas falam da crise e eu também estou  farta da crise. Dos ricos que estão mais ricos e do pobres que pagam os erros dos ricos porque deles não podem fugir. Fiquei ligeiramente angustiada. Não sei bem o porquê, mas há muito tempo que determinados acontecimentos me chafurdam. Causam-me um mau estar doentio, como se me sentisse presa numa qualquer decadência na qual não me apetece de todo cair.
Ela chegou. As notícias eram frescas mas amargas, o costume. Nos olhos dela encontrei um desassossego verdadeiro, chispavam lume, indignação, injustiça. A vida é injusta, balbucio, não há como alterar... Qualquer coisa que se diz para tentar amainar sofrimentos alheios, fatalidades, coisas ruins. Não está nas nossas mãos, queremos dizer, como se essa libertação trouxesse algum bem-estar a quem de mão beijada e sem pedido nos entrega a alma, porque está cheia. Depois paro e fico a pensar que nem é sensato dizê-lo. Seria melhor não dizer nada, muito embora o nada seja um desconforto que nos desconforta imenso, sendo por isso mesmo que não gostamos dele. E então dizemos estas verdades manifestas, irrefutáveis, sentidas e sabidas, que nada tiram mas que também nada dão.
Entretanto chegou a hora. Entro e a moça de macacão azul turquesa está por minha conta. Fala-me das unhas que pinta, das maquilhagens maravilhosas que compõem rostos vaidosos, e fala-me ainda do tempo. Trivialidades. Aceno que sim com a cabeça e começo a sentir-me pouco a pouco mais serena, estamos na silly season, penso, bora aproveitar. Então saí dali e fui até ao armário do meu quarto do fundo, um sítio mágico e relaxante onde guardo preciosidades que podem bem voltar a fazer-me falta. Encontro numa caixa uns sapatos azuis de salto muito alto que houvera escondido há tempo, a ver se me esquecia deles. Também costumo usar este truque com os chocolates e com as amêndoas salgadas, mas nem sempre resulta, é um facto. Há dias, como em tudo. São altíssimos e ficam mesmo bem com calças brancas, muito embora me fustiguem os pés, motivo pelo qual tinha resolvido retirá-los da memória. Recuperei-os, o tempo dá-se ao luxo do esquecimento da dor ou no mínimo da atenuação, pelo que nos leva o bom mas também nos leva o mau. Retirei-lhe o jornal amachucado de dentro e com muito jeito calcei-os, só para ver se ainda se lembravam de mim. Lembravam. Eles de mim e eu deles, e temo que a partir de hoje sejamos chegados outra vez. Há ligações severamente difíceis, grande verdade.

(Esta coisa da concordância total só pode mesmo ser um mito, concluo, mas não deveria de todo ser assim. Deveria ser muito mais simples a junção das coisas, dos interesses, das vontades, de tudo no geral.)

P.S: Estou grande p'ra caraças. E para além disso este post remete para questões imensamente fúteis, desculpem lá, podia bem ter-vos avisado lá em cima.

2 comentários:

  1. Tu podes ser fútil sempre que te apetecer porque, na verdade, não enganas ninguém :):):)
    E, já agora, o post está muito giro e nada, nada fútil :):) (não sabes ser isso).
    Beijos

    ResponderEliminar
  2. :) Antígona, as futilidades da vida contrabalançam-me tanto :):) Preciso delas como do resto...

    ResponderEliminar

Deixar um sorriso...


Seguidores