domingo, 30 de setembro de 2012

Calções floridos

Lembro-me como se fosse hoje de a ver a escolher calções floridos num mercado dos arredores de Paris. A banca desordenada e guardada por um feirante que eu não percebia muito bem, e eu atrás dela de mão dada com outra parecida comigo, de tez mais morena e ar muito zangado. Percebia que se discutia o pormenor de uns míseros trocos que fariam toda a diferença na aquisição daquelas maravilhas floridas que lhe enfeitariam as pernas brancas e magras. Após a tentativa de negociata veio sem nada, que o senhor não desceu onde supostamente deveria ter descido. Manteve a palavra no negócio e os calções na banca de madeira, sendo que tenho quase por certo que os levou para casa de novo, até outro dia, até outra feira, até que algumas mãos lhe pegassem com gosto verdadeiro, os pagassem em justo valor e os levassem para os usar com blusinhas de alsinha fina e chinelinho baixinho muito colorido. Pormenores, no fundo, meros pormenores. O calção, as flores, a blusinha de alcinha fina e o chinelinho baixinho muito colorido, tanto quanto o mísero dinheiro que a impediu de levar o calção para casa, não era caso para isso. Por vezes penso nestes pequenos pormenores. Nadas insignificantes nos quais nos entregamos com um rigor inflexível, envolvidos por uma contumácia doentia que mais não faz do que colocar-nos à mercê do prejuízo. Nunca mais me esqueço que as pernas dela não ficaram enfeitadas. Continuaram simploriamente entregues a umas calças coçadas e consumidas pelo sol do verão, passeando-se sem brio e sem graça por entre as mais belas ruas da cidade.

( Os pormenores são qualquer coisa de uma disparidade importante. Podem valer tudo ou podem não valer nada, podem significar muito ou não servirem para coisa nenhuma. Onde estão uns e onde estão outros, enfim, deixemos ao critério individual de cada um. Ainda assim, confesso, não simpatizo nada com o trato negligenciado que por vezes lhe dão. Podem, e por pequenos que sejam, ser o foco da questão.)

sábado, 29 de setembro de 2012

Fame

( Quero lá eu saber se é dos primórdios dos anos 80. Eu também sou de meados de 70, e ainda cá ando, feliz e contente.)

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Lá fora o tempo aquece-me fora de horas. O sol parece perseguir-me por entre as ruas, as vidraças das janelas, as frestas das árvores onde me oculto, quieta,  a ver se passa. Espera o frio, é aí que deverá ser, ouço ao longe em palavras que me aconchegam o corpo quente, e me colocam em guarda. Nem sempre me obedece, o meu corpo. Deveria numa lógica cordata seguir-me os propósitos, mas afasta-se, fugidiço, e não me sossega aos suaves respirares que lhe infundo, como que a dizer-lhe, espera... Aí paro. Não em tentativa de imposição, sem consequência, já percebi, mas em apreciação. Investigo-me por dentro sem  medos e aí sim, em paciência, paro ali e acolá e prontamente encontro o que procuro. Curiosidade? Longe disso. Vontade, sim, mas muito mais. Essencialidade, será por aí. Já preciso, não posso negá-lo. 


quinta-feira, 27 de setembro de 2012

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(Não me lembro dela desde sempre, não é possível isso em termos práticos, mas lembro-me de há muito. Esteve sempre muito perto, mas mais do que isso, e mesmo que por qualquer coisa longe, lembro-me dela sempre ao lado. Agora isto do perto e do longe pode ganhar outra dimensão, muito embora eu saiba que o lado a lado nunca vai ser posto em causa. Parece que vai para outro sítio e eu, em puro egoísmo, não me apetecia nada que ela fosse. A clareza não me abandona, sei até que é sensato que vá, mas é que vão-me faltar as noites de conversa, as partilhas do forte e do trivial, os desabafos que se dizem às amigas mesmo amigas e ainda assim não a todas elas. Lembrar-me-ei para sempre de ter andado à boleia com ela no meio do nada, de termos tomado banhos de mar à noite e às escondidas do resto do mundo, de termos corrido o País dentro de um comboio e de termos pernoitado na estação, fechadas e esquecidas. Lembro-me de termos dançado até cair para o lado ao som de Pearl Jam, de Rui Veloso, de Xutos, de Iron Maiden, entre outras. Não tenho encontrado muitas pessoas de bom fundo ao longo da minha vida. Algumas, eventualmente as suficientes, as que preciso, as que me estão destinadas. Ela ocupa e ocupará sempre um lugar cimeiro nesse pódio, por tanta coisa, e também por isso eu quero muito que ela vá e que seja imensamente feliz, que eu vou ficar cá a torcer por ela e por quem vai com ela. Existem pessoas, algumas, eventualmente as suficientes, as que preciso, as que me estão destinadas, a quem posso chamar de amigas com um A que vai daqui até à lua, como aquela música lamechas e da qual eu não gosto nada, cantada por André Sardet. Ela é uma delas, uma Amiga que ocupa tudo o que no meu corpo me lembra a amizade. Vou-lhe dedicar uma música que não fala de amigas, mas que é de nós as duas, um dia, num sítio, embrulhadas como sempre na nossa amizade. Gosto de ti, é isso. E fico sempre feliz de já te ter dito isto muitas vezes, sem medos, vergonhas, receios ou limitações.)

Distracções

Sempre tive uma veia travessa. Anda adormecida, perdida num conjunto de outras muito mais poderosas, mas de vez em quando desperta. Pode ser por exemplo perante aquelas pessoas que nos surgem grandes, cheinhas de vacuidades que ironicamente escapam por todos os poros do corpo. Por vezes hesito em aniquilá-las. Espero uns minutinhos, vou deixando que escorreguem pelos próprios pés e vou-me rindo por dentro, devagarinho e sem ninguém ver, o que confesso, me dá um prazer significativo. Em caso de exagero posso reagir, certeira mas com cuidado, e aí é percebê-las a abanar e a desaparecer, que é o que acontece por exemplo aos balões que eu encho com sopro ao meu filho, e que ele deixa de ver num instante, perante o vento da praia. É giro isto, pá.

( Mas giro giro, era percebermos que temos todos o mesmo tamanho sem ser preciso que alguém nos sujeite a estas maçadas. Sim, eu sou das que deveria perceber que tudo terá a sua justificação comportamental, e que provavelmente à minha frente tenho uma crise de existência significativa. Mas confesso que o exagero da ufania me complica verdadeiramente com o sistema nervoso. Só a tolero, verdadeiramente consubstanciada.)

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

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Perguntava-me ontem ao telefone se eu não estou aflita por fazer trinta e seis. Respondo-lhe que não, que nem sequer sou de aflição fácil, e que fazer trinta e seis não me aflige de todo. Do outro lado solta-me uns ruídos estranhos, como que a querer dizer-me que lhe minto, que é impossível a ausência de tal aflição no corpo de uma mulher que começa a ficar velha a partir dos trinta, ela própria lembra-se perfeitamente de há dez anos atrás os ter feito. Um dia um tanto ou quanto estranho da sua existência, apenas suplantado pelo dia dos quarenta, que muito provavelmente será mortificado pelos cinquenta. Os cabelos embranqueceram, as formas mudaram, acha até que tudo à sua volta saiu do lugar de existência. Não tem portanto por certo se o problema é dela ou se é do mundo para com ela, mas também não se preocupa muito com isso. Hoje confessa-se mais calma. Já se habituou ao novo espaço que ocupa no escritório, ao sofá que afunda com ela nas noites sozinhas de chuva, ao colo inexistente que a carrega, agora com menos força e empenho. Já começou a disfarçar rugas com um pincel pequenino e um creme de cor esverdeada que também faz milagres com as olheiras teimosas de quem se recusa a dormir, e já pinta os olhos de negro, coisa que anteriormente não era precisa. Os lábios ganharam um contorno forçado a lápis castanho que ajuda a atenuar as expressões de quem já se riu muito, deixaram de a acompanhar por si só, exactos e definidos, precisam de substância e ela oferece-lha o gosto. Nisto e a meio da conversa, volta outra vez a insistir-me no facto, é estranho, de carácter excepcional, e por isso mesmo só concebe a mentira, eventualmente a negação. Acho-lhe graça. Não lhe digo, nem sequer me pergunta, mas a verdade verdadinha é que provavelmente me atormento com outras coisas que para ela serão meras insignificâncias, e que vai-se a ver e são mesmo. Importuna-me por exemplo que ela esteja aflita com a minha consumição inexistente. As nossas supostas apoquentações vividas apenas por pessoas alheias é algo que sempre me afligiu consideravelmente.  Não por mim, mas por elas.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

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Por coisas diversas penso que não deve ser fácil ser uma mulher bonita. Um acto espontâneo, uns minutos de notícia. Uma cara e um corpo que acompanham, e eis que se perde o encanto para se entrar no que pode ser a vulgaridade da fama. Tenho dados suficientes para considerar que deve ser de facto difícil contrariar isto. Mas não é impossível, claro.


segunda-feira, 24 de setembro de 2012

(Crescer)

Sou completamente apaixonada pela nossa natureza, que conjuga em si um sem número de singularidades admiráveis, que vão desde a nossa capacidade de resistência à nossa capacidade de amar, passando por muitas outras, onde me deleito, várias vezes, com tempo e paciência. Gosto também do crescimento e da aprendizagem que nos leva a ser gente, num intercâmbio dialógico e relacional que nos transforma, a cada passo, em qualquer coisa sempre maior, sempre mais notável, sempre mais perfeita. Acumulamos cá dentro todas as conquistas, o que nos vai construir outra das minhas mais profundas idolatrações, a nossa individualidade interna. Uma das ambições que encerro, é conhecer a minha para além do limite do razoável, o que muito me ajudará nas tarefas dos dias, nos erros dos tempos, nas incertezas das coisas. Encontramos-nos envoltos a um mundo um tanto ou quanto cruel, que parece muitas das vezes querer testar as nossas forças, a nossa vontade em prosseguir, o nosso apetite interior. Poderia em vez disto ceder-nos um terreno brando, mais ou menos coerente, de frestas pequenas e sempre no mesmo sítio, para que assim nos movêssemos seguros, de crentes que estaríamos da candura dos caminhos. Mas assim não faz, que nos coloca com derradeira frequência em situações incertas, de fantasmas e terrores diversos, para além dos outros, disfarçados de bons, que nos agarram em braços, nos aninham e depois nos largam ao abandono, no sofrimento atroz que é a ausência, que sucede à pertença. Apesar de tudo, nos dias amargos sinto sempre um avanço tamanho, que me diz a mim mesma que se neles não caminhasse, se me retraísse e me acautelasse para das experiências me guardar, este eu que escondo dentro me estaria mais vedado, bem como vedada estaria, toda a minha destreza mental. Gosto dela. Tenho momentos árduos, muito secos e espinhosos, em que mudava coisas sem fim e em que comandava a minha vida desprovida de coração, numa lógica que me salvaria de muitos dos males do mundo. Julgo até que nem sentia, levando ao extremo o apogeu da razão, prática e certa, sempre igual. Perderia porém a emoção que inunda todos estes caminhos que falo, e aos quais chamo crescer.

( Post antigo deste blog. É oferta, podes levar.)

domingo, 23 de setembro de 2012

Outono




(Gosto da sensação do filme com o nome oposto, Kubrick será sempre Kubrick, mas os meus olhos estavam hoje bem abertos. Para além da circunstância, o Outono é aquela altura do ano que adormece pessoas e acorda outras. Como qualquer outra altura, de todos os anos. Não me encontro submissa ao tempo, mas situo-me, sempre, muito fiel ao meu Outono. Quase tanto, como ao que os meus olhos querem ver.) 

sábado, 22 de setembro de 2012

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Pergunta o que se passa, não se passa nada que consigas ver, não se vê, é cá dentro, dizia. Ainda se lembra de quando a professora lhe leu uma passagem do sempre extraordinário Saint-Exupéry, que num livrinho pequeno e cheio de estrelas dizia que o essencial é invisível para os olhos. Olhava para o livro com um ar de espanto infantil carregadinho da ingenuidade que já lhe morreu no corpo há muito, para ir morar para lugar nenhum que se conheça. Nas estrelas da capa olhava o que lhe parecia sempre ser qualquer coisa, que essencial seria aquele que lhe escapava por entre as janelas da escola primária, um lugar velhinho e aquecido por um aquecedor preto com uma botija de gás lá dentro? Provavelmente perdia-se no recreio guardado por umas grades grandes e enferrujadas e enfeitado com uma figueira plantada no meio, onde havia coisas que se viam muito bem. Um dia subiu lá acima sem autorização para ver se conseguia apanhar um figo. Era Outono e ela gostava de Outonos. E de figos. Trepou com jeito, mas ainda assim arranhou-se seriamente num braço ainda despido pelo sol de Setembro, coisa que lhe denunciou a afoiteza seriamente proibida pela professora Maria José, que lia livros aos meninos sossegados e que ensinava regras que nunca se podiam quebrar. Não se lembra muito bem do que lhe valeu a desobediência. Algum castigo ligeiro, alguma repreensão consistente, mas nada do que se assemelhe ao sabor do figo que comeu. Os figos também lhe fazem lembrar a casa da bisavó, situada numa colina encrespada que cheirava a violetas e na qual haviam coisas para se sentir. Galinhas que cacarejavam, sopas que cheiravam a chouriço no fogão de lenha, abraços que se sabiam lá, mesmo que não viessem de braços abertos. A casa foi vendida, é uma pena, gostava de a ter para si. Ela pergunta outra vez o que se passa, não se passa nada que consigas ver, não se vê, é cá dentro, continua a dizer. Mas vê-se, insiste ela, não sei bem onde, mas vê-se. Uma novidade, nascida na continuidade do discurso e nos olhos de amigas, amigas de sempre. O que é essencial não se vê, não se pode ver porque é dentro, mas afinal pode até ser que se veja. Não a essência, que essa é a do principezinho e é intima. Só o resto.

( Não pude esperar pela escola. Nunca podia deixar tão nobre tarefa para as mãos da professora do meu filho, porque há coisas que são para eu ensinar. Ainda ele não me entendia e já eu lhe recitava, todas as noites, pequenos excertos de um dos livros mais perfeitos do mundo. Ele olhava-me com uns olhos muito abertos, esquecidos do sono e a cheirar a espanto. - O que é que isso quer dizer, mãe? - Deixa, filho, guarda só o eu que te digo., dizia-lhe. Com vontade porém de continuar, um dia, e quando o teu corpo já puder, saberás exactamente o que isto é. Por enquanto só podes sentir, sem saber do que se trata. Mas descansa. Tens tudo aquilo que precisas de ter.) 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

( Porque às vezes ponho cá sapatos...)

(... e aprecio ainda, o descuido da circunstância.)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

"Quantas mães tens tu?"

Quantas mães tens tu?, pergunta-me intrigada como se a querer lembrar-me que é a única. Nunca soube muito bem o que era ser mãe até ser uma. Daqui retirei de imediato que as coisas só se sabem quando se sentem, que antes disso pensamos que sabemos mas não sabemos, e podemos até estar muito longe. Ajudou-me essa constatação de limite. Os limites orientam-nos o corpo, prendem-nos as inseguranças, os medos, os solavancos e os arranques medrosos que nos nascem sem que os possamos matar à nascença. Quantas mães tens tu?, volto a ouvi-la, insistente no meu ouvido, no meu telefone, aguardando uma resposta única que não é precisa e ela sabe muito bem disso. Um dia fui mãe, há um tempo, e a partir desse dia comecei a conhecer coisas muito boas e coisas muito más. Estas duas coisas andam sempre de mãos dadas, os opostos caminham lado a lado, mão na mão, corpo no corpo, é sempre assim, sempre assim há-de ser. Antes desse dia não sabia ao certo o que era o medo. Não reconhecia a agonia mais séria de todas as agonias que nos crescem direccionadas a uma parte de nós que nos saltou em ânsias medonhas e que sabemos, em coerência, que deveremos deixar crescer. O crescimento é sempre esta dicotomia de sentimentos díspares, desde o nascimento até à morte. Todos queremos crescer, todos queremos deixar de o fazer. Todos queremos em algum momento parar o tempo no minuto preciso em que deixamos de querer que ele avance mais para a frente, mais depressa, no normal decurso de todos os percursos, de todos os rumos, de todas as vidas. Não podemos. No fundo nem sequer queremos realmente parar o tempo, porque o tempo é aquela coisa que corre no ritmo que deve correr e que torna as coisas grandes, imensas, gigantescas, poderosas ao ponto de nos fazerem doer. Quantas mães tens tu, parece que ainda a oiço dizer, tenho uma mãe, apetece-me dizer-lhe, tenho-te a ti. E ele também tem só uma, tem-me a mim, mas ainda não sabe muito bem o que isso é. 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Lilly


...

Cruzo-me com ela na porta do banco. Veste um fato cinza claro que lhe deixa a descoberto os ossos que lhe saltam do corpo magro e velho, composto na cabeça por um cabelo prateado. Segura-me no braço e pergunta-me se já resolvi o assunto da contribuição autárquica, que chegou outra vez. Aceno-lhe que sim senhora, que optei por não resolver nada, que ficou resolvido como está e ponto final. Insiste comigo que eu não deveria ser assim, que tem de se mudar o que está mal, que deveria reclamar o que tenho direito, que é por estas e por outras que o País está como está. Oferece-me os seus préstimos para me facultar toda a documentação que ela própria entregou na Câmara Municipal, fotocópias de avaliações, área da casa, localização urbana, etc e tal. Deixe, não é preciso, insisto, mas fico a  ouvi-la enquanto gesticula efusivamente mesmo à frente do meu nariz com um dedo escuro e cadavérico, muito feio e revolucionário. Vou acenando, o gesto típico que utilizo mecânicamente com o meu rosto quando a conversa nem por isso me agrada. Há quem já me tenha descoberto essa fraqueza. Há até quem me olhe meio de lado e me questione quando o executo insistentemente perante alguma história, e julgo que tem a ver com os meus olhos que normalmente se fecham para a pessoa em questão, mesmo que se mantenham abertos. Olham para dentro ou para fora, fixam-se num qualquer ponto de interesse, que naquele caso específico era a montra da sapataria mesmo ao lado. Era manhã, não estava para grandes divagações. Botas altas, pretas, castanhas, cor de caramelo claro e torrado, uma paleta de cores transformadas em arte divina que me assentariam que nem uma luva, assim viesse o inverno. No final do discurso e perante a minha indiferença, pergunta expectante se eu percebi. Percebi, percebi, claro que percebi, e prometi até pensar no caso, que o meu dia é ligeiro e por certo nada mais me ocupará o pensamento que não o discurso devidamente fundamentado da minha querida vizinha da frente. Digo-lhe adeus, até à próxima, e aí, sim, fico a fixá-la com olhos de ver. Abre a porta do carro e entra, senta-se ao lado do marido e segue caminho com um ar triste e fatigado, destilado vezes sem conta na minha disponibilidade, no hall de entrada do prédio, mesmo ao lado das avencas que adornam o inicio dos degraus da escada.

(Naquele exacto momento o que mais me apeteceu foi desenvencilhar-me de todos estorvos que me envolviam o corpo. Descalçar-me, largar a mala no chão, libertar-me da écharpe colorida que me enfeitava o pescoço e galgar a correr atrás do carro e do marido que a levava. Apanhá-la, retirá-la cá para fora, abaná-la e dizer-lhe que antes de alterarmos o que está mal, deveremos alterar o que nos faz mal, que aí, sim, a coisa faz todo o sentido. Não fiz nada, claro. Respirei fundo e recompus-me daquela ânsia interna, que provavelmente transpareceu cá para fora. Uma senhora não deve (quase nunca) perder a compostura.) 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Coisas boas

Quando, e só a título de exemplo, construo desenhos internos com nuvens no caminho do trabalho. Provavelmente quererá dizer que nunca vou perder a capacidade de brincar.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Depósito

Há muito tempo que não vou ao depósito da água e sinto saudades. Lá no alto do depósito de água haviam sempre namorados sentados num grande banco de madeira pintado de verde seco, guardados pela altura do edifício, imponente, quase tão imponente como os sonhos que ali se viviam. Os sonhos comandam vidas, é certo. Servem para que cá dentro construamos um futuro que não sabemos se vem ou se não, o que também nos possibilita a continuidade em caso de dificuldade declarada. Lembro-me especialmente de um casal bonito, daqueles que podem sonhar. Muito embora se possa sonhar só por nós, sonhar em conjunto,  seja em que circustância for, é sempre muito mais fácil. Encontra-se contingência, símbolo partilhado, vontade expressa e desejos comuns. Ele tinha um ar apatetado, sempre sorridente, de onde espreitavam uns dentes tortos e feios. Ela tinha uns caracóis despenteados e encolhia os ombros quando ele falava para ela, envergonhada. Pode ser engraçada uma mulher envergonhada, tem sempre um qualquer encanto a fragilidade feminina. Deixa um sorriso doce nos lábios, um ar meloso nos olhos, um jeito gracioso no corpo que não sabe muito bem para que lugar se mova perante o sabor do amor. Eles sonhavam muito e eu percebia isso, muito embora fosse pequena. Faziam planos de mãos dadas enquanto o sol se baixava no horizonte devagar, ao som do vento e dos pássaros que por ali se passeavam. Na encosta existiam umas silvas com espinhos fortes que cortavam a delicadeza do que ali se vivia, não fossem os corpos apaixonados julgarem possível a perfeição do momento. Não há momentos perfeitos e o mundo encarrega-se sempre de nos mostrar isso mesmo que não queiramos ver, que era exactamente o que eu acho que acontecia com os namorados. Duvido muito que eles as tivessem visto tal como eu as via. 
Os sonhos, e muito embora nos orientem, são sempre frágeis e delicados, o que nos pode até remeter para a debilidade da existência. Existem devidamente contextualizados dentro de nosso corpo, mas podem morrer num minuto ou num segundo. Podem ainda morrer apenas dentro de um e permanecer vivos no outro, em caso de sonhos partilhados, o que convenhamos, constitui uma incongruência tamanha na organização deste mundo. Ainda assim, gostava muito de descobrir, e julgo até que já o cá disse, onde se guardam os sonhos perdidos. Deverão haver locais reservados ao efeito, sem serem passado, nem presente, nem sequer futuro. Lá no depósito da água pode ser um sítio bom, mas haverão outros espalhados por aí. A existir um local abrangente, por certo será um qualquer lugar infinito e a cheirar a lilases. No ar permanecerão sensações, das boas, que nos fazem existir. Pena que por lá não haverão pessoas. Os sonhos perdidos são os que não nos pertencem, os que nos fugiram, os que não ficaram realizados, os que saltaram para fora do corpo sem cumprimento e realização, logo, bem vistas as coisas, nunca poderão constituir matéria visível. Talvez também por isso o lugar me pareça, e nos meus sonhos, tão aprazível e digno. Há dias, onde lugares assim me fazem falta. Lugares etéreos, só de coisas boas.  

( Nunca namorei no depósito da água, não faço parte dessa geração. Ainda assim pondero visita breve ao local, onde por certo encontrarei o cheiro viciado da latência adocicada do que ali se partilhou. As silvas na encosta não me causam qualquer incómodo. Perante a sua presença fecho os olhos e finjo que as não vejo, respiro o ar com força e volto a soltá-lo, repetindo o acto consecutivamente até à exaustão do meu corpo. Logo depois venho-me embora muito sossegada.)

domingo, 16 de setembro de 2012

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( Quando escrevo muito, logo a seguir deixo música ou sapatos. É somente uma questão de equilíbrio.)

Poder

A questão do poder político que transforma pessoas mais ou menos competentes em outras com adjectivos pouco abonatórios, não é de hoje. Contar-se-ão pelos dedos os que se conseguem manter inalteráveis dentro do seu íntimo, que conseguem reger-se interna e externamente circunscritos ao princípio básico do que os leva a candidatarem-se a governar e a gerir um País. Existem, não vou citar exemplos, serão sempre também eles pessoais e nunca generalizáveis, ficando ao critério de cada um eleger as suas referências positivas a nível nacional ou internacional. Não vou também manifestar-me relativamente à situação política actual, não me apetece, deixo tal debruce para quem perceba realmente do assunto, não é o meu caso. Vou apenas centrar-me no que me parece quase uma questão de lógica, no que toca ao fenómeno da evolução do Homem. O poder implica sempre que quem o exerce o faça por uma qualquer questão de competência, que servirá para levar adiante o propósito da evolução, quer ela seja em pequena ou em larga escala. Poderemos e numa linha inicial, começar pelo poder que alguém exerce em casa, com vista a gerir uma família, continuando para o poder exercido a um nível empresarial, onde uma pessoa exerce funções que deverão impulsionar uma empresa, passando pelo poder locar e autárquico, onde se governam os dinheiros de uma freguesia e de um concelho, e por aí fora, até chegarmos a um País, e a organizações internacionais. Parte-se do pressuposto que este tipo de cargos seja exercido por alguém capacitado e competente para tal, ajudado por uma retaguarda igualmente capaz, mas tal por vezes não acontece. Depressa se entra na onda do absolutismo mascarado, o que não quer dizer que quem está no poder tenha competência absoluta, até porque tal não me parece que exista. Diria até que poderá revelar a tendência contrária, faz-me mais sentido.
Pegando mais uma vez nas questões de base, para que melhor se perceba o meu raciocínio, uma casa governada por alguém competente, possibilita um conjunto de medidas proactivas em prol da coesão interna. Se houver competência, mesmo perante as adversidades, a coesão existe e possibilita a evolução, uma vez que as soluções existem sempre. Se por outro lado existir um absolutismo, que muitas das vezes nasce de lacunas internas de diversa ordem de quem gere, mais facilmente se tomam medidas que poderão destabilizar o redor, mais ou menos submisso. O cerne, por vezes difícil de ultrapassar, será eventualmente conseguir apontar e encontrar pessoas capazes para exercer determinada função, o que num seio familiar poderá ser difícil por questões óbvias, mas que nos restantes domínios é possível. Não somos todos dotados das mesmas faculdades. Nem todos possuímos uma estrutura mental coesa ao ponto de não se sentir invadida por interesses pequenos e individuais. Nem todos tempos ainda a experiência suficiente para resolver questões profundas, até porque muitas vezes, e muito embora possamos julgar que sim, não trilhamos os caminhos necessários para lá chegar.
Quando a fragilidade começa a saltar livremente pelos poros de quem nos deve representar e começa a deixar transparecer lacunas de carácter diverso, atitudes e discursos incoerentes, ausência de força para representar quem com esperança elegeu em votação, a coisa deixa de fazer sentido. Internamente reina, só pode reinar, instabilidade. A sustentabilidade política perante as reacções negativas, impossibilitam a acção de continuidade. A descrença faz com que das duas uma, ou se ganhe uma qualquer força, se houver onde buscá-la, para que se ganhe um novo ânimo, ou, e no sentido inverso, com que se caia cada vez mais, normalmente de forma veloz e abrupta. 
Agora vamos ver. Não me parece só pura política, não, até porque não existem ciências puras. Parece-me muito mais do que isso. 

sábado, 15 de setembro de 2012

Acasos

A casualidade da existência é qualquer coisa que sempre me intrigou. Não consigo encará-la de forma natural, aceitá-la sem questões, interiorizar que as coisas nos acontecem de determinada forma, regidas sob determinada ordem, tudo por acaso. Até porque existimos nós, muito embora sejamos considerados por muitos como seres que actuam também em modo casual, nós próprios e sobre nós mesmos. Conseguimos atribuir essa questão a determinadas acções do nosso corpo com relativa facilidade, é certo, sendo até que chego a julgar que nos defende de qualquer coisa que não nos apetece contextualizar. É legítimo, livra explicações, questões e outros aborrecimentos que nos dias que correm devem de ser evitados, andamos cansados, a crise não ajuda, o verão nunca mais acaba, enfim. 
Desde que me debrucei sobre determinadas teorias que abordam o assunto, deixei porém de conseguir encarar-nos nesta ligeireza que me parece forçada, exagerada, eventualmente inexistente. As acções que impelimos ao corpo surgem-nos sempre inseridas em um conjunto significativo de circustâncias físicas ou mentais, que nos impelem a determinada acção que em outra situação seria outra. Poderemos ainda, e no seguimento, considerar que uma mesma ocorrência uns dias depois poderá desencadear impulsos diferentes, uma vez que o factor tempo é presencial, bem como o factor aprendizagem, e ainda todos os outros envolvidos no processo. São factos, concretos, pelo que não pode ser sensato encararmos de outra forma a questão. 
Não consigo porém traduzi-la eficazmente para a ordem externa, confesso. Não há nada até hoje que me tenha conseguido justificar a direcção do mundo, as horas definidas para mortes ou nascimentos, as sortes e os percalços que nos apanham à traição, as laranjas que nos caem na testa, as coisas boas que nos acontecem. A natureza em essência pode fazer-me algum sentido, é quase perfeita, fusional, complementa-se uma com a outra com uma destreza própria de uma realidade muito bem conseguida, mas ainda assim falha-me de facto no destino incerto. 
Não querendo retirar daqui qualquer tipo de conclusão existencial, parece-me que poderemos no entanto considerar que agimos deliberados num mundo que recebe essas deliberações de forma leviana e imprudente. Dependemos dele para que as nossas acções tenham efectivamente o efeito pretendido, o que nos transforma numa espécie de seres subjugados verdadeiramente ao acaso, não ao nosso, mas ao do que nos rodeia.
Dado o cenário, há muito tempo que me comecei a borrifar um pouco para estes assuntos da realidade. Penso sobre eles, disserto um pouco a ver se distraio o espírito em horas mortas, mas pouco mais. Será eventualmente uma estratégia de adaptação da minha parte, uma vez que não encontro explicações credíveis para o assunto, nem qualquer tipo de manipulação satisfatória. Deixei então de me preocupar seriamente com as existências que fogem à intenção dos corpos, que nos escapam das mãos, que não dependem de todo de nós. Em contrapartida, e uma vez que necessito de ocupar o meu tempo, debruço-me cada vez mais sobre as outras, aquelas onde mandamos, onde escolhemos, onde decidimos e onde caminhamos, as únicas verdadeiramente nossas. Que nunca são por acaso.  

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Lisboa que amanhece


( A manhã, é sempre uma coisa bonita.)

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É fácil, diria até que muito, falar de nós aos outros enquanto fornecemos contextos práticos e teóricos que nos encaixam que nem uma luva. Damos exemplos concretos que vestimos com o nosso próprio corpo sem que ninguém perceba, deixando o redor boquiaberto com o realismo da palavra. Nunca somos totalmente aptos para dar o que não conhecemos. O máximo que se pode conseguir, e em caso de ausência da própria realidade, é uma aproximação, ora fiel ora menos, daquilo que julgamos que seja, mas nunca a realidade por inteiro. Por isso é tão apaixonante ouvir falar quem sente o que diz. Quem sente o que diz já conceptualizou,  já mediou e já ideou, para depois expulsar cá para fora em forma de palavras e com uma exactidão desconcertante, quase perfeita, a verdade. Elas não sabem, mas a minha contextualização mental é exactamente a que lhes forneci, com todas as letras, todas as minuciosidades, todos os pormenores. As outras, as outras são terrenos longínquos nos quais arrisco, afoita mas ciente da distância que me separa da coisa em si. Porém a coisa em si, a essência, não trata mais do que a realidade vista por mim e por mim sentida, encaixada cá dentro por entre as frestas, as potencialidades, as minhas experiências e vivências dirigidas ao mundo exterior, relacional e existencial. Por isso por vezes me parecem mal as tentativas de explicação universal para coisas que só fazem sentido individualmente. Por isso também, e muito embora saiba do que falo quando me dou em consciência de causa, falo só do que conheço. Que trata sempre uma partícula de nada no meio do infinito, o que me pode até e em última instância, remeter para a inexistência da essência pura do que quer que seja.

(Somos muito capazes, mas somos sempre relativos. Em tudo e em nada, no que damos e no que recebemos. Ainda assim, mantenho, é bom ouvir (ou ler) quem sente. Quem sente  expõe-se com alma e não com construções secas e inacabadas, que soam a parlapiê insosso, facilmente esquecido.)

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Livro

Chegou em forma de postal de correio, com aviso prévio no meu ouvido, vindo de longe. Após empreitada significativa e empenho, de externos e prontos intervenientes, repousa na minha mesinha de cabeceira. Já lhe coloquei uns olhos curiosos em cima, já o revirei, já vi letras desconhecidas que se tornam, passo a passo, tão próximas de mim. Preparo-me agora para me aconchegar ao seu lado a lê-lo, devagar e com calma que é o que se quer, a fim de que não escapem letras, ideias, significados, sentires e projecções. 

( Há coisas que demoram a chegar mais do que queríamos. Não querendo com isto dizer, que estejam atrasadas.)

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Iogurtes

Hoje encontrei Leonor ao pé da secção de iogurtes. Empunhava uma saca grande de comida para cães e meia dúzia de outras coisas, devidamente acondicionadas dentro do cesto das compras. Fala-me, como sempre e de cada vez que me encontra, do filho que é adolescente, do sogro que sofre de cancro, do marido que de quando em vez lhe atira com um prato acima por causa de alguma desavença. Agora até anda menos mal, diz-me com um ligeiro ar de satisfação no rosto. Aceno-lhe com a cabeça enquanto a oiço, ao mesmo tempo que olho de lado para os iogurtes que me apetece mesmo levar para casa e comer. Gregos com sabor a morango, naturais, com amêndoas. Vou-lhe porém mantendo o aceno. Muito embora a minha capacidade de contingência esteja diminuta e a minha cabeça esteja em outro local que não aquele, devo-lhe toda a minha atenção. Há determinadas ocupações profissionais que parecem colar-se ao nosso corpo para não mais nos largarem a existência. Um sapateiro, por exemplo, dono de uma sorte sem tamanho, que provavelmente até desconhece, se me encontrar na rua de sapatos rotos não tem qualquer obrigação de me descalçar, me sentar num banco confortável, me colar o dito e de me o voltar a entregar, devidamente arranjado. Não tem obrigatoriedade moral em fazê-lo. Porém, eu tenho. Mas é que por vezes há dias em que por muito que me esforce não consigo trazer comigo o dom de escutar, muito menos em locais impróprios para o efeito, e nem consigo devolver o que quer que seja, quanto mais coerência. Nessas alturas começo a sentir aquela decepção de quem espera o que eu não consigo dar, e a coisa às vezes entranha-se-me cá dentro. 

( Mas depois penso, sou gente, pá. Agora, neste exacto momento, larguem-me. Gosto muito de vocês, mas o que me apetece mesmo são iogurtes.)

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Dia

No dia de hoje apetece-me especialmente enaltecer coisas bonitas. Porque as há, e porque elas me acontecem. Os anos que por mim passam deixam-me especialmente descrente, entregue, por vezes quase submersa, num mundo cheio de coisas más. A essência, a virtualidade, estará algures em potência, perdida em tudo, nascida em pequeníssimas coisas quase invisíveis, escondidas no que ninguém vê. 

( É 11 de Setembro, um dia que mudou o mundo. O mundo não é de facto um local bonito, a não ser em potência. Poderá o nosso próprio sê-lo? Pode, claro que sim. Seguindo a lógica, em potência, temos tudo para que tal aconteça.)

Dá-me Lume


(A M80 dá-me musica muitas vezes. Hoje, cidade cravejada de carros cheios de gente com ar mal disposto, e eis que me chega um Dá-me Lume eterno, quase perfeito. Logo depois estremeci, meio entorpecida. Ainda o meu corpo não se tinha restabelecido do gosto do som, e já o Camilo Lourenço me entrava pelo carro dentro a falar da crise. Bancos que não emprestam mais e que não negoceiam novas condições de pagamento, IVA que poderá voltar a subir, alterações em escalões de IRS e mais uma quantidade de informações e esclarecimentos das dúvidas dos ouvintes, apanharam-me à traição. Não deveria ser permitido. Há realidades que não ficam bem a caminhar lado a lado, como Jorge Palma e Camilo Lourenço, por exemplo. E muito menos por esta ordem, o que nos poderá levar a crer que a disposição conveniente das coisas poderá sempre ser uma coisa importante.) 

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

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Por vezes o corpo cede-nos à vontade. Deixa-se enrodilhar pelos mecanismos profundos da mente, esquece limites, entraves, portas, proibições e segue de mansinho, ora devagar ora depressa, no alinhamento querido. É nessas alturas que tremelicamos, porque nos damos. É também nelas que crescemos, exactamente pelo mesmo motivo. O contrabalanço será, eventualmente, a arte pela qual se consegue andar na direcção da vontade sem perdermos a guarda do intelecto, que esperamos não esteja adormecido. Atender a ambos, deixá-los manobrar lado a lado, permitir que o que queremos e o que sabemos se fundam numa simples razão para que possamos manter-nos, assume-se como uma tarefa exigente mas fundamental. O erro, a terrível falha, pode surgir-nos num vacilo de um ou numa preponderância do outro, que qualquer deles isolado e a valer por si só, é capaz de nos matar em vida o sentido, individual, relacional, de sermos e de estarmos. Aqui, agora, depois.

domingo, 9 de setembro de 2012

"Pasion"


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Brota em alguns corpos por razões distintas, as coisas podem nascer-nos de mil e uma maneiras, depende das possibilidades que nos cruzam, das que encaramos a intento, das que nos apanham por sorte ou azar. Arruma-se inexorável, cruel, apodera-se dos sentires humanos que existam em resquício, diria quase que corrói o redor impiedosamente, lapidando-se a ele próprio e ganhando tamanho, sustentabilidade, lugar de existência dentro do corpo que resolveu deixar crescer o mal. Em tempos a minha avó falava em moléstia. Moléstia era para ela uma doença ruim que poderia germinar dentro dos vivos, quer eles fossem Homens ou plantas, frutos ou animais. Não deixava medrar ou prosperar o desgraçado que lhe calhasse em caminho, que num ápice definharia, ficaria tísico e macérrimo, capaz de ser levado por algum vento mais forte que lhe acossasse o corpo em alguma eira descampada. Lembrava-se lá pelo meio de António, o homem que vergou, numa eira, exactamente, enquanto ajuntava o milho seco que lhe daria o governo mas que caiu para o lado, ficando à mingua e entregue à mulher. Por sorte, mesmo rés-véz, falhou o engaço pontiagudo e perigoso, teve Deus com ele, bem vistas as coisas, foi apanhado pela moléstia mas sobreviveu. Não sei muito bem se aqui realizo uma comparação mal comparada, mas é que há males de mente que assemelho em eventual abuso, aos males do corpo. Entram e alojam-se, procriam livremente tal e qual as ratazanas ruins do convento de Mafra e não morrem nem por nada. Pelo contrário. Passados uns tempos, aquela coisa que pode amaciar e apagar, mas que também pode brunir e assanhar, ficamos submissos ao mal e ainda iludidos de que a grandeza é nossa. O Egoísta vive num corpo maior do que todos os outros, carece de tudo e nunca se dá, isola-se sem saber disso. Isolamento também é não dar de nós e crescer(?) só para dentro, elevar aos píncaros a ignorância, subir para lado algum, engrandecer opacidades e por último explodir, para acabar supremo dentro de um corpo fechado, o único existente.

(Aceito-os e quase que os compreendo, mas há dias em que me apetece mandá-los pastar. À fava, pronto, ficando-me em terrenos agrícolas, simpáticos, evitando tabuísmos. Pelo menos aos puros, aos refinados. Assim, pode até ser que expludam mesmo a olhos vistos, e soltem de uma vez por todas os fenos, os ratos, a moléstia, o raio do egoísmo e se diluam de vez no ar, arrastados na ventania para lugar nenhum.)

sábado, 8 de setembro de 2012

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Acordei estranha, como não? Desço forçada uns dias para  o pé do chão, o meu corpo insiste em relembrar-me, nem que seja de tempos a tempos, quem é que manda aqui. Logo depois leio a austeridade, que ontem recusei ouvir. Não sei se me espanta, provavelmente não, mas preocupa-me, não consigo negá-lo. 
Não me levem a mal a imagem. Parece-me muito mais bonita do que caras de enfado, papeis e números que noticiam medidas severas para um povo cansado. Não posso usá-las, nem sequer comprá-las? Não, de facto não posso. Mas posso vê-las. Posso sempre vê-las. 




sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Caramelos de laranja

Um dia juntei o grupo e tentamos fazer compota de laranja com sumo de limão e canela. O tacho enorme, depositado no fogão de bico único, fervilhava acelerado enquanto lhe deitávamos para dentro os ingredientes necessários para a confecção de um doce que deveria encher pequenos frascos tapados a linho e atados a linhaça, para serem oferecidos aos pais que viessem assistir à reunião de famílias, uns dias depois. A dona Zé, uma loiraça viçosa e grande, trouxe-nos os utensílios do seu serviço para que mexêssemos com vigor e sem nunca parar, a mistura agridoce que ganhava espuma branca por cima em quantidades abundantes. Por detrás da cozinha da rua ficava uma encosta povoada por lagartos verdes que entretanto deixaram de me meter medo para passarem a ser membros da natureza, pequenos bichos inofensivos que se deleitavam com o sol de verão. Um deles morava numa oliveira mesmo ao pé da minha janela. Havia dias em que eu a abria, ciente da sua presença, e espreitava para fora a ver se aparecia. Não somente pelo vislumbre em si, que o que mais havia ali eram espécimes do género, mas é que gostava e gosto muito, de me encostar a uma janela. Sentir o fresco que passa, o vento que corre, os cheiros que povoam a terra no meio dos matos e dos campos, o barulho das folhas que correm de restolhada. No final da empreitada a coisa não correu bem. As quantidades falharam, muito embora a boa vontade dos rapazes tivesse merecido louvor. Senti que os frustrei. Uma neta de doceira nunca deveria ter cometido tamanho deslize, deveria logo ter percebido que as quantidades estavam trocadas, que o doce prendia em demasia, que a textura estava longe do desejado, mas não, confiei em tudo e falhei. Apesar disso enchemos os frascos com a mistura conseguida e adornamos um cesto de vime redondo capaz de os guardar a todos até ao grande dia. O dia chegou. Os pais chegaram, mas também aí se esteve aquém. De dentro do autocarro cedido para o efeito desceram alguns que chegaram em obrigação e sem vontade. Uns olharam os seus, outros houve que se mantiveram ao longe, com olhar de relance, medindo uma distância segura não fosse a proximidade do momento transformar filhos de nome, em filhos reais. Gelei por dentro. Tentei percebê-los, incluí-los em crescimentos difíceis, em casas vazias, em dificuldades imensas, mas não consegui. Descobri nesse dia que não consigo perdoar tudo.

(Por estas e outras, aquele sítio foi uma escola. Consciencializar limites faz parte da vida, e também é preciso aprender a fazê-lo.)

(No final do dia em redor de uma mesa, conseguimos com esforço retirar o doce dos frascos que sobraram. Estava duro e seco, não foi tarefa fácil. Com uma faca grande cortamos pequenos cubos e comemos, como se fossem caramelos.)  

Losing My Religion



quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Competências

Ontem um miúdo que me dava pela cintura resolveu colocar-me à prova. Confesso, é das piores coisas que me podem acontecer em contexto profissional. Aguento com choros, com raivas, com angústias e com fobias, como neuroses e esquizofrenias, com psicopatias e obsessões. Contorno-as todas com algum cuidado e muito rigor, e quase sempre acerto, ou no mínimo não falho, pelo menos redondamente... São os miúdos desafiantes que me testam a capacidade de resistência até ao limite, e me fazem sentir verdadeiramente a limitação. Não que ela resida só ali, mas é exactamente ali que a sinto muito. São eles que quase me vencem pelo cansaço, bocados de gente ainda a meio caminho, que se julgam, e quase que são, implacáveis. Respirei fundo muitas vezes. Contei baixinho e devagar, de forma certa a ritmada, a ver se a imposição que fazia ao meu corpo físico me chegava para todo o resto, enquanto medíamos forças em oposição. Não consigo muito bem definir o desfecho. Não me sinto perdedora, também não venci totalmente, mas ainda assim julgo ir no caminho. A gente pequena é de facto qualquer coisa com a qual é necessária mestria para se lidar. Melhor, para lidarmos connosco e com a interacção. Conseguem reunir dentro, formatados em cabelinhos leves, olhos doces e ares franzinos e angelicais, uma força que a deixarmos nos abate num minuto. Puxa, pá, não era precisa tanta competência.


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A palavra escrita é qualquer coisa, por isso gosto tanto de ler. Quase tanto como gosto de ouvir. A palavra escrita entra-me no corpo e posso relê-la, se algo me falta, se me apetecer, se assim eu quiser. Aproprio-me então com delicadeza de cada letra, de cada ponto e de cada vírgula, de cada bocadinho que transpõe o que se escreveu. E guardo, guardo tudo muito bem guardado. Aconchego de forma cuidada e deliciosa, miro de um lado e miro do outro, leio em diferentes direcções e depois sossego. Esporadicamente posso deixar notas no local exacto onde devem de estar, letras minhas que também falam de mim. Digo sempre muito quando escrevo. Quem escreve diz sempre muito de si, ainda que por vezes envolva em frases cuidadas e perfeitas o que no fundo são internas agitações. É dessas agitações e movimentos que a vida se faz. Não só, mas também. 

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Modas

Gosto muito de saber da moda. Não falo só de roupa, falo de tudo. Do que se ouve, do que se fala, do que se vê. Informam-me as tendências de uso, o que deve ser bonito, o que é de momento aceite, o que leva o tempo das pessoas, os olhos e os sentires. Só gostava mesmo muito, ainda sonho, é facto consumado, que se assumisse que quem não está virado para o lado da visão da norma, também vê. Todos conseguimos ver,  sentir, gostar. Quero lá eu saber se muitos vêm outra coisa que não a que eu vejo, não me importa nada, deveríamos só conseguir ver todos muito sossegados.

( Os padrões assimétricos, por exemplo, que reinam na Vogue Outono/Inverno, dão-me cabo da vista e acho até que do corpo. Do meu, e visto por mim. Fazem maravilhas em outros, que não se arrumam em branco, em preto ou em nude, porque assim ganham mais vida. Às vezes experimento. Enfio-me com algum jeito dentro de verdadeiras obras de arte garrida e vagueio horas na frente do espelho, só para ver se me habituo. Faço poses, ensaio as expressões do rosto, tento tudo o que posso para dar uso ao que adquiri em momentos de puro devaneio. Normalmente trabalho vão, pelo que as ditas ganham um lugar cativo num canto recôndito do armário, canto esse que convive impávido com a torrente serena que mora ao lado. Puro respeito.)

Love Kills


terça-feira, 4 de setembro de 2012

Caixa de música



A caixa de música tocava uma melodia sempre igual. Duas bailarinas dançavam em roda lenta, deliciosas, sempre iguais. Ela enfeitava-se com enfeites no cabelo, no rosto, nas orelhas. As orelhas de uma mulher são um local bonito para se enfeitar, tal como uns cabelos, tal como um rosto. Na cómoda repousavam caixinhas de pó de arroz cor de rosa, batons vermelho sangue, lápis, frascos de perfumes densos a cheirar a Inverno. Da caixa saltavam colares de pérolas redondas compridos, anéis de pedras coloridas, pregadeiras de madrepérola. Todos os dias começavam sempre iguais. A caixa tocava a música de sempre, o pincel iluminava as maçãs do rosto polidas pelos anos, o lápis delineava uns lábios secos e definhados que em tempos beijaram, cheios, muito cheios. O batom enchia o pouco que havia de imponência e de luz. O puf do perfume deixava o pescoço a cheirar a açucenas, os colares e os anéis pousavam no corpo que era deles. Foi assim até os olhos, já quase mortos,  se sumirem de vez. Fecharam-se devagarinho, primeiro um, depois o outro, deixando do lado de fora uma vida que já não pertence. Ficará perdida, ficará guardada? As pérolas, juro, murcharam a cor. A caixa, hoje, calada como nunca. Já não há a música sempre igual com duas bailarinas a dançarem, lentas e deliciosas. Já não se enfeitam rostos naquele lugar ao espelho, pedaços de vida que ficaram a pertencer-lhe. Aos lugares pertencem coisas. Pessoas, acontecimentos, sons. Era ali. Que ela renascia,  um bocadinho, todos os dias. É ali que morre e fica guardada, em cada resto de pó, em cada toque da lembrança, ao espelho. Não toca, melhor dizendo, não dançam...Estarão tristes?

( A tristeza é um estado de espírito. Os estados de espírito são para sentir, quer sejam de tristeza quer sejam de alegria, quer sejam de outra coisa qualquer. São para ser vividos ao extremo dentro do corpo, amarfanhados, suportados, aguentados, chorados ou aplaudidos. São para nos percorrerem o sangue sem medo e sem limites, para que no apogeu os expurguemos, de forma forte e consistente. No final de tudo ficamos vazios ou cheios, depende, do que deles queiramos guardar.)

Nothing Else Matters


( Houve uma altura, em tempos, em que eu era feliz e não sabia. Mas é que ouvia isto, por exemplo, e apetecia-me chorar muito por amores inventados e impossíveis, o que para mim não era sinónimo de felicidade. Nem imaginava que a idade dos teen me iria deixar saudades. Queria era crescer, ser grande e ser gente, ser feliz. Mas  eu era, sem saber, era. Agora a bem dizer também sou, e até posso dizer que sei disso. Sou é muito mais complicada, o que, convenhamos, dificulta qualquer coisa o processo da vida. Não sei se lhe tira a graça, dificulta, basicamente será por aí. Daqui deveríamos talvez retirar que a plena consciência nos pode perturbar a simplicidade de sermos. Digo eu. E sermos é tão, mas tão giro.)

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

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Ostílio vivia em Benfica. Enviuvou cedo demais, que a pobre mulher que lhe aturava as andanças durou pouco, deixando-o sem descendência e companhia. Nem trata este facto estranheza, que a pobre, já fraca de cabeça, num ápice sucumbiu à maldade de seu marido, um bêbado enfadonho e velhaco que via nela uma propriedade onde poisar de forma embrutecida e desprovida de qualquer afecto. Ela morreu de desgosto, diz-se por lá, foi-se mingando a pouco e pouco perdendo devagarinho partes de si. Primeiro a força, depois a destreza, logo a seguir a fala que se sumiu de vez perante tamanho agoiro que a vida lhe tinha dado. Tudo isto se lhe esvaiu em prol da necessidade, não me restam dúvidas. A força foi-se-lhe porque já era pouca, a destreza porque de nada lhe valia, a voz porque sempre se calava, por mor da inferioridade. Por vezes nem percebemos isto, julgamo-nos capazes de crescer de todos os lados, como se de todos os lados pudéssemos vingar. Tamanho disparate, que o redor detém um poder considerável, deixando-nos um interior por vezes fraco perante o resto. Hoje passei-lhe na porta. Lá dentro, sem ver, imagino. O velho barbudo e velhaco a cheirar a vinho, a empregada novinha em folha que guardou o lugar para si, a alma da esposa, invisível como sempre. ( Post antigo deste blogue)

( Por portas travessas soube evoluções, como se de previsão se tivesse tratado, sem que eu aspire qualquer tipo de título. Há pessoas que de novas passam a velhas, ou que no mínimo deixam de ser gente para passar a ser outra gente, ou ainda gente nenhuma, no sentido da vontade. Há também pessoas pequenas o suficiente para se imporem sobre outras, diversas vezes, da mesma forma, num outro tempo. Ficam grandes para elas e isso basta-lhes, serão felizes? Há ligações estranhas, sujeitas a pressupostos estranhos, num mundo estranho. E prossegue-se assim a vida, estranha, num conceito tão indefinível como a palavra normalidade, ou não sejam elas antagónicas. Nem é estranho, sequer é normal. É a vida, chega, a de cada um, a de cada qual.)  

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Tenho dias em que me assusto verdadeiramente. Neste fim de semana houve um, entre outros. A Troika avalia, diversas coisas preocupantes acontecem ao mesmo tempo. Enquanto isso diversos canais de televisão portugueses, públicos e privados, apresentam em horário nobre programas que variam entre telenovelas e concursos onde participam pessoas desocupadas da nossa praça, que provavelmente serão repescadas a olho na hora da gravação. Para tudo na vida é preciso sorte e sentido de oportunidade. Até para cair dentro de uma bolacha redonda que leva pessoas para fora do ecrã, para gáudio de toda a gente, ao Sábado à noite. Fiquei a pensar que alguém poderia sair magoado. Não sei, aquilo pareceu-me mesmo violento, em diversos sentidos.

domingo, 2 de setembro de 2012

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( Só li a entrevista ao autor. Mas a coisa parece-me tão, mas tão boa, que me apeteceu deixar por cá, quanto mais não seja para largar curiosidade.)

Fartura frita

Não deixa de ser interessante analisarmos as nossas pertenças. Não se resumem a pessoas ou animais, passam por coisas e por locais, necessidade esta que vive ao lado da retribuição contingente da qual carecemos permanentemente ao longo da vida. Se dos outros recebemos sensações de aceitação ou de rejeição que são capazes de nos construir enquanto gente, se é nessas interacções que crescemos em identidade e sociedade, em que âmbito entrará a identificação que nos nasce direccionada a coisas, a lugares e a objectos, a datas ou a ocasiões? Não consigo deixar de me socorrer da imaginação e da memória para justificar tal facto, ou até da vontade, mecanismo pelo qual o nosso corpo nos impele a uma determinada acção que queremos ou julgamos querer, que se encontra obviamente subjugada às nossas crenças e ambições. As coisas e os lugares que queremos e dos quais gostamos dão-nos sempre conforto e bem estar. Numa primeira instância poderemos, e numa análise simples, inclui-las no âmbito da satisfação corpórea, do momento e do pragmatismo simples dos dias, deixando que essa teoria nos justifique porque gostamos do frio em vez de gostarmos do calor, porque gostamos do claro em vez do escuro, ou porque preferirmos o campo à praia, decisões simples, em nada complexas, sempre de fácil resolução. Mas vai mais longe, como todos já perceberam. É que se a escolha do campo e da praia poderá estar unicamente subjacente a uma sensação do corpo, se a decisão entre um pastel de nata e um croissant poderá estar sujeita à vontade do momento, tais decisões poderão ser mais complexas, sê-lo-ão na maioria das vezes, entrando automaticamente no âmbito de acção dos nossos constructos internos, projecções, memórias , imaginações. Encarando este ponto de vista que a mim me parece lógico, ingressamos numa linha condutora da vida que nos coloca imersos numa série de acontecimentos e de experiências tudo menos casuais, admitindo porém a casualidade do imprevisto, da oportunidade e da sorte, conceitos subjectivos mas ainda assim manifestos. Poderemos colocar o Homem como um ser que age em consonância e em resultado da sociedade e de si, carente da retribuição e da aceitação do seu ser, circunscrito ainda aos resultados e às projecções que nascem no mundo em resultados dessa acção, onde se transformam meras coisas, banais e vulgares, em coisas verdadeiras, com forma e sentido. 

( Se calhar parece muito gasto de palavras para o que vou dizer a seguir, admito até que o seja. Mas tudo isto era para dizer que em tempos idos comia farturas fritas na feira de Pernes. Não gosto de fritos, têm um cheiro forte e enjoativo, e para além disso o açúcar com que se polvilha a fartura irrita-me os nervos e a boca. Mas como-as. Como-as sempre com uma sofreguidão ávida e esfomeada.) 

sábado, 1 de setembro de 2012

Gata

Vou ter uma gata cinzenta de nome Julieta. A ideia não foi minha, nem da gata, nem do nome, que isto nestas coisas há que deixar o mérito nas mãos dos donos, não aprecio cá glorias que não me pertencem. A gata é cinzenta muito clara e já a imagino a passear-se por entre os móveis, os livros, os brinquedos espalhados e os anéis que esqueço em cada recanto da casa. Em tempos tive uma. Pequena, clarinha, de uma elegância inigualável, como de resto têm todos os gatos. Dormia enrolada nos pés da minha cama e era deveras assustadora para quem vinha de fora. Arqueava as costas, eriçava o pelo, e virava qualquer coisa semelhante a um felino mesmo à séria, do qual era melhor guardar distância. Já tive outros animais assustadores. Um cão um tanto ou quanto arisco, um peixe que devorava outros, uma tartaruga que mordia dedos, não sei, temo que seja da casa, ou, vá lá, da proximidade com a minha pessoa. Por mor das coisas, desta troquei-lhe as voltas. Era para vir o gato, vai vir a gata, que por certo seria o macho o verdadeiro detentor do síndrome ruim, por ser ele que me estava destinado. Bom, também foi pelo nome. Julieta ficou-me no goto, a alternativa Romeu não tem metade da graça, e para além disso uma gata é sempre uma gata, que por certo guardará o respeito necessário aos anéis, aos sapatos e a outras divindades femininas que encontrará espalhadas cá por casa. O Óscar, o pobre do Óscar é de momento a minha única fonte de ralação. 

( As cadeias alimentares são de facto uma coisa fantástica. Juntar animais que se comem uns aos outros é sempre um risco, mas dizem que se a convivência for precoce não haverá problema. Um a zero ganham eles sobre nós, que conseguimos sempre crescer ao lado de alguém, e vai-se a ver, em determinadas provações, aniquilamos quem temos ao lado sem dó nem piedade e completamente conscientes, ou seja nada a ver com instinto. Gosto de animais, no fundo é isso. Muito embora, e apesar de tudo, também possa gostar muito de gente.)

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( By Antica Murrina, Venezia. Sim sim, é linda eu sei.)

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