quarta-feira, 19 de setembro de 2012

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Cruzo-me com ela na porta do banco. Veste um fato cinza claro que lhe deixa a descoberto os ossos que lhe saltam do corpo magro e velho, composto na cabeça por um cabelo prateado. Segura-me no braço e pergunta-me se já resolvi o assunto da contribuição autárquica, que chegou outra vez. Aceno-lhe que sim senhora, que optei por não resolver nada, que ficou resolvido como está e ponto final. Insiste comigo que eu não deveria ser assim, que tem de se mudar o que está mal, que deveria reclamar o que tenho direito, que é por estas e por outras que o País está como está. Oferece-me os seus préstimos para me facultar toda a documentação que ela própria entregou na Câmara Municipal, fotocópias de avaliações, área da casa, localização urbana, etc e tal. Deixe, não é preciso, insisto, mas fico a  ouvi-la enquanto gesticula efusivamente mesmo à frente do meu nariz com um dedo escuro e cadavérico, muito feio e revolucionário. Vou acenando, o gesto típico que utilizo mecânicamente com o meu rosto quando a conversa nem por isso me agrada. Há quem já me tenha descoberto essa fraqueza. Há até quem me olhe meio de lado e me questione quando o executo insistentemente perante alguma história, e julgo que tem a ver com os meus olhos que normalmente se fecham para a pessoa em questão, mesmo que se mantenham abertos. Olham para dentro ou para fora, fixam-se num qualquer ponto de interesse, que naquele caso específico era a montra da sapataria mesmo ao lado. Era manhã, não estava para grandes divagações. Botas altas, pretas, castanhas, cor de caramelo claro e torrado, uma paleta de cores transformadas em arte divina que me assentariam que nem uma luva, assim viesse o inverno. No final do discurso e perante a minha indiferença, pergunta expectante se eu percebi. Percebi, percebi, claro que percebi, e prometi até pensar no caso, que o meu dia é ligeiro e por certo nada mais me ocupará o pensamento que não o discurso devidamente fundamentado da minha querida vizinha da frente. Digo-lhe adeus, até à próxima, e aí, sim, fico a fixá-la com olhos de ver. Abre a porta do carro e entra, senta-se ao lado do marido e segue caminho com um ar triste e fatigado, destilado vezes sem conta na minha disponibilidade, no hall de entrada do prédio, mesmo ao lado das avencas que adornam o inicio dos degraus da escada.

(Naquele exacto momento o que mais me apeteceu foi desenvencilhar-me de todos estorvos que me envolviam o corpo. Descalçar-me, largar a mala no chão, libertar-me da écharpe colorida que me enfeitava o pescoço e galgar a correr atrás do carro e do marido que a levava. Apanhá-la, retirá-la cá para fora, abaná-la e dizer-lhe que antes de alterarmos o que está mal, deveremos alterar o que nos faz mal, que aí, sim, a coisa faz todo o sentido. Não fiz nada, claro. Respirei fundo e recompus-me daquela ânsia interna, que provavelmente transpareceu cá para fora. Uma senhora não deve (quase nunca) perder a compostura.) 

2 comentários:

  1. Ora cá estou eu...Obrigada por não ter publicado aquilo com o nome de uma inst... (você sabe)! É fantástica! Parabéns pelos textos. Exprime-se muito bem... Quando for grande gostava de ser assim! É um bom elogio, portanto. Continue assim.

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  2. Nada que agradecer. Bem vinda, e muito obrigada :)

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