segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Depósito

Há muito tempo que não vou ao depósito da água e sinto saudades. Lá no alto do depósito de água haviam sempre namorados sentados num grande banco de madeira pintado de verde seco, guardados pela altura do edifício, imponente, quase tão imponente como os sonhos que ali se viviam. Os sonhos comandam vidas, é certo. Servem para que cá dentro construamos um futuro que não sabemos se vem ou se não, o que também nos possibilita a continuidade em caso de dificuldade declarada. Lembro-me especialmente de um casal bonito, daqueles que podem sonhar. Muito embora se possa sonhar só por nós, sonhar em conjunto,  seja em que circustância for, é sempre muito mais fácil. Encontra-se contingência, símbolo partilhado, vontade expressa e desejos comuns. Ele tinha um ar apatetado, sempre sorridente, de onde espreitavam uns dentes tortos e feios. Ela tinha uns caracóis despenteados e encolhia os ombros quando ele falava para ela, envergonhada. Pode ser engraçada uma mulher envergonhada, tem sempre um qualquer encanto a fragilidade feminina. Deixa um sorriso doce nos lábios, um ar meloso nos olhos, um jeito gracioso no corpo que não sabe muito bem para que lugar se mova perante o sabor do amor. Eles sonhavam muito e eu percebia isso, muito embora fosse pequena. Faziam planos de mãos dadas enquanto o sol se baixava no horizonte devagar, ao som do vento e dos pássaros que por ali se passeavam. Na encosta existiam umas silvas com espinhos fortes que cortavam a delicadeza do que ali se vivia, não fossem os corpos apaixonados julgarem possível a perfeição do momento. Não há momentos perfeitos e o mundo encarrega-se sempre de nos mostrar isso mesmo que não queiramos ver, que era exactamente o que eu acho que acontecia com os namorados. Duvido muito que eles as tivessem visto tal como eu as via. 
Os sonhos, e muito embora nos orientem, são sempre frágeis e delicados, o que nos pode até remeter para a debilidade da existência. Existem devidamente contextualizados dentro de nosso corpo, mas podem morrer num minuto ou num segundo. Podem ainda morrer apenas dentro de um e permanecer vivos no outro, em caso de sonhos partilhados, o que convenhamos, constitui uma incongruência tamanha na organização deste mundo. Ainda assim, gostava muito de descobrir, e julgo até que já o cá disse, onde se guardam os sonhos perdidos. Deverão haver locais reservados ao efeito, sem serem passado, nem presente, nem sequer futuro. Lá no depósito da água pode ser um sítio bom, mas haverão outros espalhados por aí. A existir um local abrangente, por certo será um qualquer lugar infinito e a cheirar a lilases. No ar permanecerão sensações, das boas, que nos fazem existir. Pena que por lá não haverão pessoas. Os sonhos perdidos são os que não nos pertencem, os que nos fugiram, os que não ficaram realizados, os que saltaram para fora do corpo sem cumprimento e realização, logo, bem vistas as coisas, nunca poderão constituir matéria visível. Talvez também por isso o lugar me pareça, e nos meus sonhos, tão aprazível e digno. Há dias, onde lugares assim me fazem falta. Lugares etéreos, só de coisas boas.  

( Nunca namorei no depósito da água, não faço parte dessa geração. Ainda assim pondero visita breve ao local, onde por certo encontrarei o cheiro viciado da latência adocicada do que ali se partilhou. As silvas na encosta não me causam qualquer incómodo. Perante a sua presença fecho os olhos e finjo que as não vejo, respiro o ar com força e volto a soltá-lo, repetindo o acto consecutivamente até à exaustão do meu corpo. Logo depois venho-me embora muito sossegada.)

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