quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Varela

Olhá-lo hoje, é quase um sentimento de engano, como se o homem que foi em tempos, tivesse abandonado o corpo, que só isso parece justificar, a tamanha mudança. Era forte, alto e espadaúdo, barba comprida, bigode revirado, daqueles que se rufiavam na ponta de quando em vez, como um sinal de supremacia e intelectualidade. Era ainda dono e senhor da loja da aldeia, um digno posto para a época, local onde se vendia tudo o que possam imaginar, desde o bacalhau seco, dependurado por detrás do balcão, aos pacotes de detergente Omo, passando pelo leito Molico, e pela cevada Pensal.
Em dias de compras, a ausência verificava-se desde manhã cedo até ao sol já posto, sendo que o rumo era, invariavelmente, Santarém, capital de Distrito, onde muitas coisas se compravam, outras ainda, se catrapiscavam, que homem que é homem, não se faz cá rogado a determinadas situações, não vá até ficar mal visto, na sua condição de masculinidade. Foi num desses dias, em que um desaire forte se insurgiu, que Varela se arranjou com a sua segunda, que a primeira, Dona Maria, ficou esposa para sempre, era condição que perante Deus lhe destinou, pelo que nunca ousou sequer pensar, em tal posição lhe retirar. Ainda hoje, e para bem de todos lá em casa, longe dos tempos áureos, das compras, da loja e afins, é Dona Maria que se ocupa dele, que da outra, já nem sabemos o poiso.
Ousou viver um dia, talvez seja isso, deixando de se resignar à mercê daquele que lhe tinha um amor faseado, dispensado apenas e só em dias estipulados, dias esses, em que era a mais feliz das mulheres, que Deus ao mundo deitou. Nos restantes, todos os outros, que se constatavam muitos, era uma infeliz despedaçada, dona de um coração que palpitava no vazio, que a ousar enchê-lo, o que lhe vinha à ideia, não lhe deixava sossego, pelo que o melhor, era isso mesmo, picá-lo em força, e vazá-lo de tudo. Ousou tarde, tenho a dizer.
Mas no seguimento da história, e falando de quem interessa, que não é de todo esta pobre alma envergonhada, centramos-nos de novo em Varela, homem outrora robusto e imponente, que se mirra agora, devagarinho, sobre o olhar atento e cuidado de Dona Maria, criatura sempre sabedora da sua condição de primeira, e totalmente consciente da existência da segunda. Não deixa porém de salientar à boca cheia, que o seu digno marido, a ela, nunca faltou com coisa alguma, sendo que a única queixa de sempre, foram os longos dias de ausência, destinados a compras muitas vezes dispensáveis, com regressos de carro vazio, mas com dinheiro mais do que gasto.
De toda a envergadura, restam-lhe uns olhos azuis lindos de morrer, e uma Maria dedicada, que de tudo já o perdoou.
Foi a primeira, e a isso se sente obrigada. Este texto, merecia ter o nome dela.

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