domingo, 30 de janeiro de 2011

Venha o que vier

Houve o dia em que se soltou de si mesma. Cansada que estava do encobre do que lhe ia dentro, muitas mulheres assim se encontram, homens, alguns, menos por certo, que há coisas que são muito nossas. Não se lembra de ter falhado a condição a que se propôs, naquele dia de Inverno em que envergou um vestido de noiva, e foi levada ao altar pelo seu pai, que a entregou com orgulho ao que foi seu marido, desde ai até agora. Os filhos vieram cedo, primeiro ele, depois ela, um casal, obra portanto concluída, sendo que por ali se ficaram, que a vida nem era de fartura, e o pão para a boca, era uma riqueza conseguida em esforço. Mãe era uma palavra cheia, que lhe acatava a existência, pelo que o recato, a casa, a lida dos dias, a ela chegavam, como se o mundo, fosse local que nem existisse, ou melhor, existia, um pequeno, o seu, lá da sua casa, da sua aldeia. O seu mundo.
Desde cedo lhe tinham ensinado a cuidar famílias, num zelo extremoso e imprescindível a quem quisesse constituir uma boa Dona de casa, que não julguem cá, não ser tarefa de nobreza, que o rigor necessário é de uma dedicação elevadíssima, embora muitas vezes desdenhado por quem não lhe reconhece o valor. Ela reconhecia, fazendo dele toda a sua existência, ora na cozinha, ora nos bordados, ora nas lidas domésticas, sempre realizadas no preceito, primeiro varre-se o chão, depois limpa-se o o pó, e por aí fora, que o que não falta, são sabedorias destas, hoje, já quase esquecidas.
Porém, surgiu-lhe um cansaço. Não assim, num repente de nada, mas miudinho, lento, um ligeiro incómodo que se foi desenvolvendo periclitante, num corpo que se queria cedido a uma realidade para sempre, por isso lhe ter sido ensinado, por para isso ter sido fadado, por esse destino lhe ter sido dado. A primeira reacção foi a negação efectiva do seu estado de indignação, que Mulher de M grande não se cansa nunca da sua devoção, pelo que o que se lhe acendeu, foi um sentimento de incompreensão por ela mesma, esposa dedicada, mãe extremosa, Mulher. Porém, e ainda que na revolta, já não lhe chegam a casa, os filhos adolescentes, o marido. Nem se percebe, nem se encontra, precisa, nem sabe do quê.

E pergunto-me como é possível a ambição por algo que nem se conhece. Respondo-me a mim mesma de imediato, que o que a atormenta, nem é a ambição por algo, mas o cansaço por tudo. Venha o que vier.

2 comentários:

  1. Deve ser do jeito em que me encontro mas fez-se-me um nó na garganta...
    Um beijo para ti :)

    ResponderEliminar
  2. Que mulher é essa?

    Ivone Boechat (autora)

    Que mulher é essa
    que não se cansa nunca,
    que não reclama nada
    que disfarça a dor?
    Que mulher é essa
    que contribui com tudo,
    distribui afeto,
    tira espinhos do amor!
    Que mulher é essa
    de palavras leves,
    coração aberto,
    pronta a perdoar?
    Que mulher é essa
    que sai do palco,
    ao terminar a peça,
    sem chorar?
    Essa mulher existe,
    sua doçura resiste,
    às dores da ingratidão,
    resiste à saudade imensa,
    resiste ao trabalho forçado,
    resiste aos caminhos do não!
    Essa mulher é MÃE,
    linda, como todas são.

    ResponderEliminar

Deixar um sorriso...


Seguidores