sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Pêras

Já consigo ver as pêras maduras no alto das árvores. Coradas pelo ar enfeitam as pereiras estreitas que se aninham em fila pelo pomar da beira da estrada. Está batido pelo sol. Já consigo sentir-lhe o cheiro, que recobro dos arraigados da memória dos tempos em que eu subia a um escadote de ferro que arrumava nos troncos das árvores. De lá de cima via muitas coisas, que parece que ainda vejo. Consigo ver, por exemplo, a Sr António que guardava e orientava as tarefas enquanto carregava as caixas cheias do delicado fruto para cima do tractor guiado por Jaime, o Dono do pomar. Consigo ver a Célia que fugia para baixo de umas árvores distantes para matar o vício, e consigo ver a aguadeira que se passeava vagarosa por entre os carreiros enquanto toda a gente esperava pelo púcaro da água, que nunca mais chegava. Há pessoas no mundo que demoram demais para chegar, isto é uma verdade. Consigo ver o corrupio intenso do meio dia, altura em que o almoço se retirava de dentro das cestas de verga e se comia com gosto, com muito gosto e acima de tudo com muita fome, que os ares do campo dão-nos gasto ao corpo e qualquer mísera bucha sabe a manjar.
No calor da tarde muitas usavam pedir auxílio aos santos, sempre atentos do alto do céu. -Valha-me Santo António, valha-me nossa Senhora da Conceição, valham-me pronto, que bem preciso, seja um ou seja o outro, ou ainda qualquer um outro que o que não falta são santos aos quais precisamos de entregar o corpo quando a alma tremelica. No final da jorna o regresso era feito com um ar enxovalhado que apoquentava a minha avó. - Rica filha, não foi para isto que eu te criei. Foi, claro que foi para isto. Ela não sabia, e eu eventualmente na época também não, mas há experiências que deveriam passar por todos os corpos para delas retirarmos tudo o que há a retirar, a fim de guardarmos para a posterioridade o que pudermos reter dentro do invólucro mais precioso que Deus ao mundo deitou. Consigo até sentir o banho que me limpava do pó, me refrescava do calor e me entregava devagarinho ao cansaço, quando a hora do dia era já de sossego...

(Aquelas pêras olham-me oferecidas, bandidas. Qualquer dia ainda lhe cedo, agarro num cesto e trago-as comigo para casa, não antes de comer umas quantas a meio da jornada. Ao longo do trabalho, e isto em remorso por pecado, peço a bênção aos santos para que me alumiem os caminhos. Todos precisamos de algo que nos alumie e nos guie os caminhos. E se não for santo que seja outra coisa qualquer, desde que nos guie.)

4 comentários:

  1. Com que então querias "andar à chinchada" (o termo existe, mas não está dicionarizado) com a bênção de todos os santinhos, menina doutora? Vade retro satana, Numquam suade mihi vana (diria um deles, S. Bento de Núrsia), fogosa pecadora, que pêra é fruta proibida. Pois, pois, o guia é este :)

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  2. Deste-me fome de pêras :):):)
    Sempre encontraste o teu campo :):) Beijinho

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  3. Sim Paulo, andar à chinchada. Dicionarizado ou não, era isso mesmo que me apetecia :):) O pior era o local da coisa, demasiado exposto para tal afoitamento, e sendo assim contive a gula :)

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  4. Antígona querida, come umas. Se as puderes apanhar directamente da árvore, aproveita. Não há melhor :)

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