domingo, 12 de agosto de 2012

Sopa

Um dia fomos lá a casa. Encontramos uma avó a uma sombra e um avô sentado na soleira enquanto esculpia um qualquer artefacto de serventia agrícola com uma navalha de bolso. No canto da boca um palito passeava-se de um lado para o outro num entretém que lhe atribuíram, muito embora nem fosse essa a sua real função, como todos vós sabeis.
Ao ver-nos, o velho tira a boina, coça na cabeça e sorri. Prontificasse a contar-nos a sua história, pelo que nos sentamos num banco de madeira, havia tempo. O sr. António tinha ficado na carrinha e provavelmente por esta hora já estaria sentado na taverna da aldeia a bebericar uma cerveja e a comer uns tremoços, coisa que nunca acontecia, segundo palavras suas, esquecidas de que o meu olfacto é um sentido prendado, em quase tudo semelhante à minha audição, a mais temível parte do meu corpo.
Era dali desde sempre. Havia corrido umas terras, vendido um gado, colhido uns hortos que lhe permitiram distribuição nos arredores e até na capital com vista a dar a devida educação ao filho, com o qual falhou. Não consegue ver a coisa de outra forma, deve de ter sido uma falha ruim, daquelas que não têm remédio nem sequer com o tempo, com os anos que passam e com as amarguras que se encontram, que só isto justifica tamanha consequência nascida num pai de família, pessoa que deveria ser capacitada para sustentá-la, e não para permanecer com o corpo encostado num balcão desde manhã cedo até se findar o dia, sem qualquer intervalo ou interrupção, enquanto a casa padecia por pão e por leite. Já procurou verdadeiramente onde possa ter falhado. Já construiu em retrospectiva todos os dias corridos, todos os ensinamentos efectuados e todos os castigos implementados, mas a verdade é que não conseguiu compreender onde é que errou, nem qual o momento exacto em que o seu adorado filho deixou de ser gente para passar a ser um emplastro, sem préstimo e sem perdão.
Após ouvirmos esta história tentamos abeirar a avó, uma senhora que se ajeitava para a lida da casa e que falava do neto com um orgulho maior. Tinha-lhe dado tudo o que não lhe deram em casa, acompanhado as noites e os dias, curado as doenças e as febres diversas, talhado os arrufos e afagado as virtudes, que segundo ela eram mais do que muitas, não houvera saído ao pai.
O nosso intuito era tentar perceber se o núcleo conseguiria albergar um adolescente em ascensão, mas não conseguimos deixar de sentir a fragilidade que nasce no corpo com os anos, e a brandura com que se olhava para uma malandrice própria dos quinze, que em tempo haviam sido castigados num outro corpo e em vão. O rapaz, alto e loiro, sorria entre dentes e no final convidou-nos a entrar. Lá dentro, num fogão antigo atiçado a lenha fervilhava uma panela de sopa de feijão com chouriço bem temperada com tomate, que se esvaia num cheiro sem igual. Na mesa, e aos três pratos já colocados, juntavam-se mais dois, rodeando um pão caseiro de aspecto rude e um prato com queijos frescos ainda enfiados em cinchos de metal que os seguravam inteiros na hora de coalhar. Sentamos em novo convite e comemos, enquanto as fitas coloridas da porta batiam com o vento, sob o olhar atento do velho. Falhei uma vez, disse por fim. Tenho em mãos não falhar mais nenhuma.

( Soube há pouco que não falhou. Não fosse a distância e já lá teria voltado, dava-lhes os parabéns, aproveitava e comia um prato de sopa. A sopa de feijão com chouriço é um acepipe digno de figurar em qualquer livro de culinária Portuguesa. Não merece de todo o descrédito que lhe dão.)

4 comentários:

  1. Olá CF, boa noite. Talvez porque também tenha o hábito de gostar de boas notícias, gostei imenso que tivesse partilhado esta sua memória. Muito obrigado. Um abraço e boa semana.

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  2. José, de facto, mais do que qualquer outra, são as coisas boas que merecem partilha...

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  3. Nem sempre é assim, mas quando é, tudo vale a pena. O que é isso da distância comparada com a sopa de feijão com chouriço...? :)

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  4. Nem sempre é assim, de facto... A distância, e neste caso, prende-se mais com tempo do que com espaço, mas realmente, que será isso???
    Hum, também gostas de sopa de feijão com chouriço?!?!

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