terça-feira, 4 de setembro de 2012

Caixa de música



A caixa de música tocava uma melodia sempre igual. Duas bailarinas dançavam em roda lenta, deliciosas, sempre iguais. Ela enfeitava-se com enfeites no cabelo, no rosto, nas orelhas. As orelhas de uma mulher são um local bonito para se enfeitar, tal como uns cabelos, tal como um rosto. Na cómoda repousavam caixinhas de pó de arroz cor de rosa, batons vermelho sangue, lápis, frascos de perfumes densos a cheirar a Inverno. Da caixa saltavam colares de pérolas redondas compridos, anéis de pedras coloridas, pregadeiras de madrepérola. Todos os dias começavam sempre iguais. A caixa tocava a música de sempre, o pincel iluminava as maçãs do rosto polidas pelos anos, o lápis delineava uns lábios secos e definhados que em tempos beijaram, cheios, muito cheios. O batom enchia o pouco que havia de imponência e de luz. O puf do perfume deixava o pescoço a cheirar a açucenas, os colares e os anéis pousavam no corpo que era deles. Foi assim até os olhos, já quase mortos,  se sumirem de vez. Fecharam-se devagarinho, primeiro um, depois o outro, deixando do lado de fora uma vida que já não pertence. Ficará perdida, ficará guardada? As pérolas, juro, murcharam a cor. A caixa, hoje, calada como nunca. Já não há a música sempre igual com duas bailarinas a dançarem, lentas e deliciosas. Já não se enfeitam rostos naquele lugar ao espelho, pedaços de vida que ficaram a pertencer-lhe. Aos lugares pertencem coisas. Pessoas, acontecimentos, sons. Era ali. Que ela renascia,  um bocadinho, todos os dias. É ali que morre e fica guardada, em cada resto de pó, em cada toque da lembrança, ao espelho. Não toca, melhor dizendo, não dançam...Estarão tristes?

( A tristeza é um estado de espírito. Os estados de espírito são para sentir, quer sejam de tristeza quer sejam de alegria, quer sejam de outra coisa qualquer. São para ser vividos ao extremo dentro do corpo, amarfanhados, suportados, aguentados, chorados ou aplaudidos. São para nos percorrerem o sangue sem medo e sem limites, para que no apogeu os expurguemos, de forma forte e consistente. No final de tudo ficamos vazios ou cheios, depende, do que deles queiramos guardar.)

10 comentários:

  1. Como viver os nossos estados de espírito? Muito interessante.

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  2. Teresa, vivê-los apenas e só. Sem fugas e sem reservas. Não há outra forma de libertar o corpo, sentir o que é bom e matar o que é mau. Digo eu, claro. Sorrisos para si :)

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  3. Laissez faire, laissez aller, laissez passer...? E os outros...?

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  4. Paulo, não estás atento :):) E aquela parte em que digo que guardamos o que quisermos guardar???

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  5. Li bem: e aquela nossa parte que se esquece dos outros, hm...? :P

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  8. Ora, e como me parece que afinal até sei do que falas, apaguei as perguntas e deixo uma resposta, que não posso deixar os meus créditos por mãos alheias.:)O que guardamos, pode ser a gosto ou a contragosto. Há coisas que até deveríamos expulsar mas não queremos, outras existem que queremos e não conseguimos, não falando das que guardamos porque devemos e queremos, por não me parecer preciso...
    Falando das outras, depende, e nem sempre é fácil, não senhor. Mas julgo que quanto mais as resolvermos, as pensarmos e consciencializarmos cá dentro, mais depressa nos libertamos, se for efectivamente caso disso. E possível. E quando não é possível expulsar, é possível aprender a viver com. Beijinho...

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  9. Muito bom. São para sentir e encarar com a maior normalidade possível, o que nem sempre nos fazem sentir os outros. Contudo, não gosto da tristeza. :) (Também não gosto da alegria folia, parece-me sempre forçada:) )

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  10. Ninguém, digo eu, gostará de sentir tristeza. De nada nos vale, certo? Serve-nos, apenas, quiçá, para que saibamos sentir o inverso :)

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