segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Suzette

A harmonia do padrão preto e branco geograficamente disposto no corpo de uma pessoa, fica sempre bem. Não importa sequer a ordem de distribuição do mesmo, poderemos considerar linhas, quadrados, assimetrias diversas, enfim, uma panóplia de motivos mais ou menos rectos ou lineares que nos arrumam a vista, por vezes cansada de cores. Não falo aqui da elegância que confere o detalhe branco a um corpo vestido de preto, uma realidade sabida e sentida por qualquer mulher que se preze, isso deixemos para outra discussão. Não secundária, atenção, mas sobejamente avassaladora para que nela me concentre neste último dia do ano. Não me apetece, vagueio por ora entre ligeirezas de espírito verdadeiramente açambarcadoras, passas, bolos reis, sonhos de abóbora e uma agenda novinha em folha onde está escrito que tenho 365 dias para dar uso como eu muito bem entender, uma riqueza que só visto. Falo mesmo só na harmonia, até porque hoje encontrei a cinquentona Suzette devidamente adornada de um modelo do género, enquanto bebia o seu café matutino. Desejou-me os votos da praxe, ficam sempre bem neste dia, e continuou a conversa com o proprietário do café que a questionava sobre o seu magnifico estado de conservação ao longo do tempo. Fiquei ciumenta, confesso. A dita, esquecida pelos anos, vendia cor e esplendor devidamente enquadrado no rigor da indumentária, e ofuscou-me num milésimo de segundo, coisas da vida, às quais já estou habituada. Concentrada justificava o facto com um primor de fazer inveja, é a lucidez característica de cabeças sossegadas, qualquer coisa que há muito me abandonou, um delito atestado em cada centímetro, interno e externo, do meu ser. Erro de percurso, devo dizê-lo. O excesso de pensamentos, diziam-me ontem, é motivo mais do que suficiente para que percamos a clareza e para que fiquemos fatigados. Olhamos o todo, captamos primeiramente o conjunto, o real terreno onde nos deveremos mover, mas na ânsia do pormenor avançamos e encaramos o detalhe que por si só nos prende, ainda que possa valer nenhures. Julgo que eventualmente seria prudente sujeitarmos o pensamento ao treino afincado de contrariar esta tendência, nos limites da razoabilidade, claro está. Olhar de longe mais vezes, ausentes do corpo, se possível for, elevando a ideia significativamente até um qualquer píncaro isento de possibilidade de minúcia. E conseguir assim alguma leveza, própria de muito poucos, eventualmente até maior funcionalidade.
Entrar em 2013, por exemplo, é por si só um mero detalhe. Deve haver fogo de artificio perto, mas eu prefiro a fraca fogueira lá de casa. As passas dizem que são doze, mas eu gosto delas e sou capaz de fazer isso por mais, outro pormenor, espero bem não deixar de ser feliz por causa disso. Se delicadamente levantar voo, lá mais para a meia noite e ofuscada no barulho da festa, encontro tudo o que preciso de ter, num raio abrangente mas alcançável.

(Caso não tenham percebido, caso me tenha perdido, isto foram apenas uns votos de bom ano novo. A Suzette é verdadeira, o resto são divagações excessivas de espíritos miudinhos. Mas a malvada espicaçou-me a vaidade, devo confessar, estou mortinha por me enfiar num vestido preto debruado a branco. Os sapatos, esses, ainda não decidi, mas quaisquer uns que me elevem com a elegância exigida me parecem bem. Gosto de alturas, é  isso. Vá lá saber-se porquê.)

domingo, 30 de dezembro de 2012

...

Se podemos ser jovens aos noventa? Não sei, não faço a mais pequena ideia. Isto é, não faço uma ideia vivida, faço uma ideia confirmada em corpos externos ao meu. Não é a mesma coisa, claro que não é. Sei o suficiente para acreditar que sabemos realmente o que nos passa no corpo e pouco mais. Mas quando oiço uma pessoa de noventa dizer em sorriso desdentado que vai passar o final do ano na discoteca do momento, não posso deixar de sorrir. E de sentir, apesar de serem somente palavras, quiçá de humor momentâneo, que a juventude é uma grandeza do caraças que pode viver connosco para sempre. O para sempre, e ao contrário do que possa parecer, é um grito de liberdade. Por ser possível. 

sábado, 29 de dezembro de 2012

A Sua



(Há dias em que espero ansiosa que me agarres numa rua exposta aos olhos de quem passa ao lado. Não me incomoda sequer que percebam o meu ânimo inquieto, que sintam a urgência liberta, que me vislumbrem a pele que desliza por baixo das tuas mãos que me alcançam no exacto instante em que respiro fundo e sucumbo à vontade, forte, de te sentir perto. Não me canso nunca de te esperar, mas há dias em que esgoto respirares. Ensaio então, como se possível fosse, caminhar num sossego manso e discreto, fingir que não encastoaste o cerne de mim mas um outro sítio qualquer, para me permitir um descanso merecido por entre as noites vazias de nós. Mera ilusão sem substância, simples aligeiramentos sem sentido, que mal te capto à distância de uma ideia acordo esbaforida, perdida nas horas infinitas que me estancam e me deixam ausente de intenção, resumida unicamente à cadência, portentosa, de ti.)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Chão

O chão é um sítio que pisamos enquanto andamos de um lado para o outro, que sentimos debaixo dos pés como uma tábua rija que nos suporta os passos, ora trémulos, ora certos. Gostamos de o saber consistente, forte o suficiente para que nos guarde o corpo a direito, mais ou menos como uma linha recta nos segura as letras que deixamos escorrer dos dedos constelados de sentimentos, ora trémulos, ora certos. O corpo não é mais do que o lugar onde os sentimos, onde os arrumamos em cada escaninho embebido, onde afagamos as incertezas e arrematamos as certezas que nos guiam a cada aurora de dias escolhidos e vividos sem tempo, subjugados aos momentos construídos cá dentro, os nossos. Às vezes, vindas de desuniões abertas em chãos meramente ideados, sentimos confederações de forças maiores que nos tremelicam além do sossego reclamado. Que nos fazem subir, antagonicamente, claro está, ao cimo de um qualquer monte, mentiroso de vazio. Nessas alturas, em que o chão se agita, ansiamos um contrabalanço impositivo. E será porventura descalços, nos pés e na entidade, que sossegamos outra vez.

( Retirar o abrigo aos pés tira-me toda a graça. Retirar o abrigo à entidade, confere-ma outra vez.)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

sapatos

Um dia ainda vou conseguir sentir-me elegante dentro de uns sapatos pretos sem salto. Houve quem há pouco me dissesse que isso é pura ilusão da minha cabecinha fraca, que a verdade verdadinha é que os saltos fazem milagres por mim, que a mãe natureza foi aquela que me enjeitou ainda antes da nascença, deixando-me a uns bons centímetros do que seria desejado para que eu pudesse acomodar os meus pobres pés nuns quaisquer sapatos estilo sabrina, umas doçuras adornadas a laços, bolinhas, biqueiras de verniz e outras particularidades, que os transformam no sapato mais delicado que existe. Em tempos disseram-me, um senhor que me tratou de uma ciática malvada, que as mulheres ficam bonitas de toda a maneira, incluindo sem saltos. Disse-me aquilo a esticar-me o costado ao limite das minhas possibilidades, enquanto os meus ossos rangiam de dores infligidas em cada vértebra retorcida pelas suas mãos, e atirava-me as palavras como se fossem balas, pudesse eu e tinham regresso garantido. Não podia, estava peada, precisava daquela massagem para voltar a colocar os meus pés no chão e para conseguir caminhar a direito, uma necessidade mais do que urgente quando o nosso corpo cede às maleitas dos ossos. Em desespero, imaginem só, consegui prometer-lhe parcimónia, cuidado extremo e dedicado dali em diante, caminhadas frequentes a sapatarias a fim de substituir o arsenal que me ornamentava o armário, projectava até, vejam bem, novas bainhas nas calças que me permitissem a adaptação sem correr o risco de me estatelar no chão por desastrados tropeços. Foi tudo em vão. Acabei de deitar fora o último par sobrevivente, adquirido ao abrigo da moderação. Eram azuis e aos quadrados, uma candura que só visto, mas ressequíram, mirraram,  quase desapareceram. Deu-lhes uma moléstia qualquer, talvez a do abandono. Não há nada no mundo mais destruidor.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

A culpa morre solteira

Há coisas nas quais deambulo em frequência, mania de pessoa desassossegada, que em vez de descansar em chás quentes de cidreira com bolos secos e doces, se emaranha no vento frio que bate o jardim, vazio de gente. Não sei ao certo, e continuando a deambulação, se a culpa das desilusões que sinto é minha, ou se de quem me desilude. Já formulei  puros axiomas fundamentados em mim própria, já conclui até teorias brilhantes e eternas sobre o assunto, verdadeiramente válidas enquanto duraram, pedras basilares, guiões consistentes que me empurraram, um de cada vez, alternadamente. Aqui também entra em consideração importante o conceito de eternidade. Não sei muito bem o que o pressupõe, na prática deverá ser uma impossibilidade, dado que a finitude talvez seja das características  mais aplicativas a tudo o que vive no universo, pelo que logicamente, se deve aplicar também a convicções. A questão inicial, a minha dúvida, deverá então prender-se com a expectativa? Ou deverá, e em oposição, prender-se com a capacidade de entrega? Ou até, e indo mais longe, com a própria competência de cumprimento? Tendo em conta que eu posso querer dar o que não consigo, por questões diversas, ficando pois imersa em sentimentos de frustração e de falha dignos de sofrimento. O encontro a meio do caminho talvez seja uma das soluções. O irmos somente até à linha central, esperando que do outro lado a resposta seja idêntica só que inversa, numa harmonia plena e sem precedentes. Nunca haveria o malogro de uma esperança, nunca existiria a decepção subsequente, haveriam unicamente caminhos equitativos que por si só pressupõem a existência de uma coerência universal existente apenas na nossa mente, quando a mesma se emaranha nas projecções e esquece a vida real. Será então impossível, concluo. Não somos dotados de talento estrutural, pelo que o único caminho que nos resta parece-me ser o conhecido, o acidentado, o arriscado, o aventurado. Vou-o trilhando, por vezes a contragosto. Aguardo o que não devia, entristeço quando me dão de menos, ou quando espero demais, e o melhor seria não fazer caso dos verdadeiros culpados. Esquecê-los, deixá-los vaguear no mundo sem ónus acusatórios, permitir que respirem em paz e sossego por entre os demais, iguaizinhos, sem tirar, nem pôr. Eu própria, claro, fico aquém do caminho de muitas distâncias. Sinto-o amiúde na minha pele, nos olhos de quem me olha, no corpo de quem me deposita em pedestais que não mereço mas que me entregam, sem qualquer tipo de opção. Outra questão pertinente, pois. Como poderei rejeitá-los? Como preservar os que me elevam, para além do que eu consigo disponibilizar? Meras perguntas, com odor de café forte a amansar o vento, a mais inquieta das intempéries. Externas.

( No cabaz do natal vinha um saquinho de chá de cidreira. Diz lá que modera a tristeza, a irritabilidade, a consternação e o desânimo ocasional, por permitir um equilíbrio do sistema nervoso. Ajuda a combater a insónia e favorece um bom funcionamento do estômago. Alivia enjoos e cólicas intestinais. Não percebo, juro que não percebo, a minha insistência no café.)

domingo, 23 de dezembro de 2012

votos e bolo rei

Tudo é o que é dentro de cada um de nós, e isto partindo do pressuposto do qual eu gosto muito, de que a existência nos nasce no corpo e na mente, imaginação incluída, claro, e fora disso nada me parece que exista. O meu Natal é por exemplo bolo rei, daquele de massa tenra ainda a saber a fermento, coberto com frutas verdes e encarnadas, pinhões ou amêndoas, que se pode torrar quando fica duro e barrar com manteiga, para comer acompanhado de café forte. Era também os fritos da minha avó, e é ainda muito mais coisas que agora nem vêm ao caso. Percebo claramente que existam milhões de Natais diferentes do meu, um para cada pessoa do mundo, podendo haver pontos que se tocam mas nunca concepções perfeitamente iguais. Não existem concepções perfeitamente iguais e isso é uma das coisas, para além das triviais que todos gostamos de pedir, que eu gostaria verdadeiramente que quem nos rege incutisse algures entre o coração e a cabeça de toda a gente, eventualmente aninhado num esconderijo esquecido, não fosse escapar pelos olhos ou pela pele, nunca mais se apanharia. Não sei, mas por vezes fartam-me as teorias das diferenças que quase ninguém respeita, a consideração pelo outro que quase ninguém tem, a continuidade da prevalência da superioridade, uma das mais tacanhas manifestações humanas, cometida em logro, só pode. É que isto até tem mais vantagens, práticas, é bem que se entenda, para além desta vertente natalícia e ligeiramente piegas que me inunda juntamente com o espírito da época. Permite por exemplo que na minha casa o bolo rei seja distribuído de forma sensata e completamente económica, sem qualquer tipo de sobejo, o que nos dias que correm é uma coisa valiosíssima, imprescindível arrisco dizer. O meu filho come as frutas, eu prefiro claramente as nozes, as amêndoas e os pinhões. O meu filho enfarta-se com o bolo no dia até não conseguir mais, eu morro por ele a saltar da torradeira, doirado e seco, quando já ninguém lhe consegue pegar. Não sei verdadeiramente como seria se todos gostássemos da mesmíssima coisa. Não sei o que seria de nós nas primeiras horas, em luta acesa por gulodices iguais, ou nos últimos dias do pobre acepipe, que assim chega para mim, torrado e delicioso. Poderia dar mais exemplos. Poderia até esticar as linhas do post para além do que seria possível alguém conseguir ler nos intervalos dos filmes natalícios, das rabanadas e das prendas que nesta hora já inundam as árvores do País, mas se calhar não é preciso, até porque tornar-me-ia maçadora, muito para além da conta habitual, e eu de facto não quero nada disso. É Natal. Enfartamentos só de bolo rei. Ou de azevias de grão, ou de licores de ginja, ou do que bem vos aprouver. Ide, ide. Em paz, saúde e amor.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

nomes

Nunca pensou muito no assunto. Às vezes até se esquecia, rabiscava-o depressa nas folhas quando era preciso, sem que sentisse qualquer aprumo quando o escrevia ou quando o dizia. Mendes. Desde sempre que assinava Mendes no fim do seu nome, num acto desprovido de significado ou sentido, achava até que poderia assinar outro, se de repente algum sussurro lhe murmurasse ao ouvido um nome qualquer, sem que isso lhe acartasse qualquer tipo de remorso ou manifestação corpórea de incómodo. Depois houve um dia em que pensou muito no assunto. Foi numa tarde de Dezembro perto do Natal, quando se fechou dentro de uma sala de livros empoeirados marcados a fotografias sépia com poemas escritos à mão. Todos tinha o nome de António Mendes, o avô paterno que nunca conheceu. Não sabe porquê nem porque não, mas a partir daquele momento o nome fazia-lhe um quê de história. Passara a ter um sentido, um qualquer conteúdo que até então desconhecia, quando era apenas dele. Não sei se explico porquê, há coisas que até deveriam ser sempre nossas. Deveriam ganhar conteúdo e sustento quando presas à nossa existência, deveriam guardar dentro das letras fundo suficiente para que delas nos orgulhássemos, mas a verdade é que precisamos do passado que não conhecemos e ao qual gostamos de pertencer. Engraçado, porque eu há muito que sou Ferreira, mas Raposo é há pouco tempo. Nasceu-me algures a meio da minha vida, quando um velho que já não vejo há muito me guardava numa soleira da porta, bem perto de mim. Dei-lhe sopas à boca, escutei-lhe os medos e arrecadei-lhe algumas dores cheias de remorsos vividos para sempre. Era um Raposo estranho e, julgavam muitos, sem coração. Se calhar, admito, o coração nasceu-lhe tarde, precisou de germinar-lhe no peito lá mais para o final da vida. O coração pode nascer-nos com o tempo, é um facto mais do que comprovado por mim. Pode nascer-nos apenas quando resolvemos que deveremos dar corpo ao sentir que guardamos escondido num local inacessível, que se calhar nunca tínhamos visto. Ou que nunca nos tinham mostrado. Estas pessoas a quem nascem corações no fim da vida, vivem duas vezes, quem sabe até mais. Todos nós, de resto, vivemos várias vidas ao longo de uma só. O meu avô teve duas delas totalmente distintas. Numa, já tardia, o nome dele nasceu em mim. Não em soletração, há muito que o sabia dizer, mas em substância.

...


( Agora já me parece que posso colocar uma música de Natal. Esta sempre foi das minhas favoritas, é provável até que já a cá tenham escutado. Entretanto também já posso afiançar que as receitas da consoada estão escolhidas. Bem como o local onde irei passar a noite, que não é sempre o mesmo. Mas o que me parece mesmo importante foi a carta que o meu filho escreveu ao Pai Natal. No final dos legos e dos jogos para a Nintendo, estava em destaque uma frase que dizia que queria paz para todas as pessoas do mundo. O mundo, este mesmo mundo onde vivemos, seria tão melhor se não crescêssemos nunca. Ou se crescêssemos mais devagarinho. Não sei, eu também penso na paz, no amor e na saúde de toda a gente. Não falo da boca para fora quando os desejo, mas a verdade é que eu acho que a pureza com que as crianças o fazem é outra. Nós adulto desejamos de outra maneira, talvez até porque sabemos a impossibilidade dos nossos desejos. Se calhar o segredo afinal encontra-se aí. O mundo, este mesmo mundo onde vivemos, seria tão melhor se não deixássemos de sonhar nunca. Haverão mais segredos, estou certa, mas estes agora parecem-me mesmo muito importantes. Pelo que os deixo aqui, ainda que certa da impossibilidade de cumprimento.) 

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

...

Temos a estranha mania de excluir ao infinito os que já se sentem excluídos. De fecharmos os olhos para a sua existência, de passarmos ao lado e de cara voltada, de os arrumarmos num local onde não incomodem, onde não atinjam a nossa sensibilidade, onde não nos façam comichão idêntica à que nos pode causar uma etiqueta esquecida no pescoço. Não é fácil, às vezes não chega fingir que eles não existem, porque os que incomodam mesmo arranjam forma de se insurgirem e de se mostrarem. E é mesmo nesses que gostamos de pegar para recolocar num qualquer sítio específico para desadaptados, onde existem programas ou currículos especiais, como por exemplo junto ao senhor António que arranja o jardim, ou junto à Dona Maria que faz sandes de fiambre no refeitório e que pode mesmo ser uma boa aposta para o adolescente agressivo. Retira-se da turma, abriga-se segundo um decreto ou, na impossibilidade, segundo a autorização máxima do executivo, e problema resolvido. A turma sossega, os professores voltam a conseguir dar as aulas, os meninos aprendem e não importa grandemente o que aconteceu ao desadaptado. Importa apenas que deixou de incomodar, e isso, isso é que importa. 

(Consigo, como que por obra de magia, entrar no corpo desta gente toda. Não a cem por cento, impossível, mas numa percentagem gigantesca, acreditem. O desadaptado, por exemplo, não gosto de estar lá dentro. Mas que raio de vida é esta que me bate desde que nasci, e que agora resolve que me há-de excluir, apenas porque eu faço igual com as pessoas à minha volta? Mas não foi isso que ela me ensinou? Mas não é isso que ela quer que eu aprenda? Então, e se não é, porque não me ensina outra coisa? Pode ser que eu aprenda... Pode, pode ser. Mas quem ensina, e agora sou eu do lado dos professores, tem sérias dificuldades. Como é que nós conseguimos manter em contexto de sala de aula, juntamente com outros vinte e muitos, um aluno conflituoso? Como conseguiremos ensinar a matéria? Como nos é possível gerir a turma e quem quer aprender? Salvem-nos, não sabemos o que fazer... Pois, não sabem, porque não é fácil. E o que eu gostava mesmo era de chegar aqui ao final e dar um remate certeiro, daqueles que às vezes arrisco, se ele fosse possível, mas o pior é que não tenho. Pelo menos sem grandes mudanças estruturais que me parecem miragens nos tempos que correm. Falar em bom senso, será muito? Se calhar é e se calhar também não chega, mas temo seriamente ter de ficar por aqui. Pode ser que nos valha, quando mais não seja para nos fazer pensar no que é que levou a isto, no como é que poderemos gerir isto, e ainda, mas não menos necessário, como é que conseguiremos combater as repercussões futuras. E sim, podemos reflectir sobre isto à lareira, em frente a uma caixa de Ferreros, com luzinhas a piscar na árvore e chás de alfazema a fumegar nas chávenas, na noite do novo ano. Sempre me parece melhor do que ver a Casa dos Segredos. Ou o Toca a mexer, que apesar de ter a Bárbara Guimarães em mini saia, é um tremendo atentado ao bom gosto.) 

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

India

Resolvi ir à India num dia de chuva pela manhã. Percorri os números do banco num relance rápido e fiz meia dúzia de contas que me disseram que o melhor era esquecer o devaneio e rumar a terras próximas, quem sabe até ficar por casa. Ainda assim resolvi consultar os sites de viagens conhecidos, procurar as melhores promoções que me permitissem uma estadia de pelo menos dez dias, incluindo uma visita ao Taj Mahal. Imprescindível. Consciencializei que para tal coisa necessitarei de entrar dentro de um avião um número de horas consideravelmente superior ao que me é humanamente possível. Analisei a agenda, demasiado cheia para poder retirar nesta altura do ano os dias que necessito para prosseguir com o meu destino, e ainda assim escolhi uma semana que me parece liberta de responsabilidades e que tentarei manter escondida do mundo só porque sim, tal e qual como se ali eu não existisse, como se naquela altura eu me apagasse aos meus, que por cá ficarão sossegados. Quando esse dia chegar vou acordar muito cedo. A mala estará pronta de véspera e eu vou com pouco mais do que a roupa do corpo. Um mapa, não quero perder-me geograficamente, uns fármacos de largo espectro, um telefone, preciso de manter alguns contactos na altura em que vergar à solidão e à distância. Não tenho a menor dúvida disso, vou ceder. Vou sentir-me perdida no meio das vacas sagradas, do hinduísmo e das tamburas, e vou sentir uma falta imensa da minha zona de conforto e das minhas pessoas. Provavelmente vou dormir até me cansar, ou então e em alternativa,  vou palmilhar descalça as ruas de Agra, cheirar as casas e as gentes, passar despercebida aos olhos de quem não sabe quem sou e encontrar, assustada, partes de mim. Depois vou regressar, as viagens de regresso são-me sempre muito mais fáceis. O avião nunca abana e se abanar eu não tenho medo. Gosto de chegar rente à noite, vejo as luzes ao longe, mas ainda consigo distinguir com exactidão os contornos dos prédios, das ruas e das pistas de aterragem, quando já me encontro muito perto do chão. Não bato palmas no final, nunca me apetece.

(Quando voltar, e ainda que sem nunca ter chegado a partir, vou sentir que o meu mundo sou muito mais do que eu. A liberdade é qualquer coisa que proclamamos como se fosse nossa mas não é. É um terreno idealizado e conspurcado pelo mundo que nós próprios construímos, e onde nos perdemos, uma e outra vez, sempre que descobrimos a verdade. Isto hoje aqui foi só uma história pequena e completamente desconexa. Mas podem ler uma a sério, muito mais abrangente e direccionada,  aqui. )   

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Senhora

Vejo-a descer apressada na calçada escorregadia que a leva à estrada. Na mão tem uns sacos de crochet azul por onde escapam fios de lã colorida, linhas de bordar, revistas velhas e casaquinhos de malha grossa. Na outra transporta uma mala de pele castanha, o que juntamente com um vestido azul com borboletas bordadas a fazer sobressair todas as curvas e reentrâncias internas e externas, a transformam num cenário mirabolante, com demasiadas coisas para se olhar ao mesmo tempo. Ela porém parece não ligar. Concentra-se em transportar a sua carga em braços, reunindo as forças para se manter erguida por entre os buraquinhos da calçada branca que lhe prendem os pés elevados nuns peep toes encarnados, lindos de morrer. Vai proferindo umas palavras baixinho que eu mal consigo decifrar ao longe, que lhe saem dos lábios nacarados e grossos, desperdiçadamente entretidos a falarem sozinhos. De vez em quando gesticula em dificuldades por entre a sacaria diversa que lhe entorpece as mãos, na altura em que a sua voz se eleva ao limiar da polidez, o que quase a deixa inserida para lá da linha na qual escolheu mover-se nos dias que  hão-se vir. Nessa altura percebo-lhe as palavras, oiço-a num grito seco e estridente, muito embora da sua boca não lhe saia quase nada. Não falamos só com a boca, eu já sabia, falamos com os gestos descompassados, com os passos em desequilíbrio, com a pele pálida e entristecida que tapa migalhas de gente partida. Abeirei-me dela. Cheguei-me mesmo muito perto, ao ponto de conseguir escutar os rumorejos  que coloriam ligeiramente ao passar os lábios doces e desenhados a pincel macio, dos quais nasciam lágrimas pequeninas que se perdiam num instante, no espalhafato do ornamento. Pensei falar-lhe. Julguei por poucos momentos que as minhas palavras poderiam acolher-lhe a intempérie que lhe explodia do corpo, mas resolvi ficar calada. As palavras, as que deixamos escorrer da boca quando aflitos no desespero disfarçado, podem mais não ser do que meros desperdícios inglórios, pelo que lhe dei as mãos e caminhei ao seu lado. Sozinhas e num tempo sem fim. 

domingo, 16 de dezembro de 2012

Pesadelos

Conseguimos reunir dentro desvios suficientes para que consigamos cometer actos de crueldade. Não me parece possível que nasçam connosco, que se encontrem enraizados na gente tal e qual o instinto de sobrevivência que nos acompanha desde os primórdios dos nossos dias e até sempre, leito da morte incluído. E então intrigam-me, inquietam-me, ainda que possam estar longe de mim. Normalmente viro-os e retorço-os, tento encaixá-los em teorias distintas desde as mais simples às mais intrincadas, com diversos complexos incluídos, ensaio entrar em cabeças que não me pertencem sem qualquer tipo de direito, conhecimento de causa, legitimidade ou exequibilidade, a fim de conseguir absorver qualquer coisa que me explique em coerência, o porquê da barbaridade extrema. Nunca nos é possível porém, e nos terrenos da personalidade, perceber com exactidão os comportamentos, projectar certezas absolutas ou estabelecer teorias irrefutáveis, pelo que acabo também eu a reger-me por meras projecções e ao abrigo de suposições que alio à humanidade, a mais  enredada das existências. Às vezes, muitas vezes, chego a esquecer-me dos limites. Embalo-me ingénua e desatenta nas blandícias simples da generalidade dos corpos, eventualmente os mesmos que de vez em quando se zangam com o mundo, e fico incrédula perante a revolta. Questiono-me de onde virá, deambulo perdida entre sacudires desnorteados, erros de percursos, perturbações nascidas ou construídas, mas permaneço insatisfeita no entendimento conseguido, sempre próximo de coisa nenhuma.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Contemplações



O mundo não acaba ainda, digo eu sem qualquer tipo de legitimidade probatória. Não deveríamos dizer estas coisas, muito embora os exercícios da lógica nos firmem as palavras que depomos por entre as certezas construídas no regimento dos dias, que nos compõem em jeito de irmandade, mais coisa menos coisa. Mas também e ao mesmo tempo, não sei se a coerência recebida por mãos de ciências distintas me deverá sossegar para além da razoabilidade encerrada nos limites do passado, sendo o porvir um domínio completamente inexistente e consequentemente imerso em total desconhecimento. Não sei se me apraz pensar muito no assunto. Não sei sequer se algum dia terei posições claras e definidas que excedam os limites físicos do meu corpo, sendo que até esses e muito embora supostamente previsíveis, deverão ser acautelados em planeamentos e projecções futuras, dada a fragilidade comprovada na qual nos movemos enquanto matéria e espírito, totalmente circunscritos, a quê, não sei. Depois abro os olhos e observo o redor que guardo em cada fragmento de mim. Escuto sons, sinto verdades, vejo uns horizontes que se abrem e se estendem sem  impaciências, quase como se as brisas divinas soprassem em quartos crescentes de luas nascidas em horas exactas, enquanto os planetas se alinham seguidinhos no domínio do sol que alumia Lisboa. Não sei ao certo o porquê das insistências. Não explico as ânsias curiosas que nos comem, que mais não são do que agonias de espíritos inquietos demasiado abarrotados por avidezes, excessivamente esquecidos de contemplações. Erro crasso, digo eu. Eventualmente, abusivamente e sem dever.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Dezembro

Dezembro é, e tal como Agosto, aquele mês em que as pessoas vivem. Soltam os tempos presos na pele, guardados na penumbra da espera ansiosa por umas horas perfeitas, que se idealizam por entre os desperdícios dos dias que passam parados em corpos desatentos. Gostamos de olhar de soslaio para as pessoas que correm à nossa volta, de as passajar ao de leve e à distância de um telefonema apressado, de as saber bem e de saúde num desvio imposto pelo cansaço imperfeito que nos come a paciência e nos faz adormecer, todos os dias à mesma hora, com a cabeça deitada em arrumações solitárias. Dormimos sobre o assunto ou sobre outra coisa qualquer, acordamos no outro dia com o entorpecimento igual ao da véspera, arrumamos o rosto ao espelho, abrimos as janelas que nos acordam por fora e descemos as escadas que nos ligam ao mundo, para hibernamos uma e outra vez, guardados até aos dias em que escolhemos viver. Normalmente em Dezembro, tal como em Agosto, vive-se. Descerram-se os corpos aflitos, sorvem-se os licores de um só trago, enfartam-se os estômagos e fervem-se os afectos abandonados nas lareiras que crepitam ao som da música do natal. Na hora marcada abrem-se os embrulhos e afagam-se os ânimos despertos, bebe-se um digestivo e arruma-se a casa, a mesa e o corpo, que espera, já quase adormecido, o Reveillon

( Gosto de Dezembro, o mês do frio. Gosto de Agosto, o mês do calor. Gosto de todos os dias e de todas as horas, e gosto dos instantes que me fazem gente. Não aprecio corridas ou excessos, nem vidas com hora marcada. Às vezes, muitas vezes, também eu corro demais.)

domingo, 9 de dezembro de 2012

O Senhor Zé comprou uma vez uma cadeira de massagens interessantíssima, onde ele se sentava todos os dias sem excepção, com o intuito de massajar as costas arrumadas pelo tempo, as pernas retorcidas pela fraqueza dos ossos, os músculos contraídos pela falta de magnésio, nunca tomou o suplemento, achou sempre que não era preciso. Trabalhou uma vida como engenheiro mecânico, aturou cães, gatos e pouca gente, não estava para isso, as pessoas tiravam-no do sério, as mulheres davam-lhe cabo da paciência e as vizinhas chegavam para que se consciencializasse a cada dia que o melhor era manter a solidão ímpar que conhecia desde sempre, a única onde encontrava um estranho conforto sem pés aquecidos, sem chás quentes adocicados a bolos, sem camisas engomadas a preceito, borrifadas com lavanda ou ornamentadas com lencinhos no peito. 
Depois e assim de repente, sem justificativas ou fundamentos que se vissem, começaram a surgir-lhe no caminho umas gentes simpáticas, pessoas que a troco de dinheiro lhe traziam para casa utilidades sem fim, desde panelinhas aptas a cozinhar sozinhas, a aspiradores que limpavam em profundidade e com eficácia comprovada, passando pela referida cadeira, isto entre outras coisas que lhe deixavam à porta sem ser preciso que ele saísse de casa, se deslocasse ao local da compra e acarretasse com as ditas, e saber-se-ia lá como, uma vez que todas as diligências eram de quem tão cortesmente lhe oferecia as oportunidades de negócios, do melhor que havia no mercado, e sem qualquer tipo de constrangimento. 
O Senhor Zé que não era cá de modas adquiriu tudo o que os euros disponíveis lhe permitiram comprar, umas centenas segundo oiço dizer, e armou-se de verdadeiras preciosidades, quase todas ainda encaixotadas e para sempre paradas, que se arrumaram à espera de existirem na dispensa da casa, já vazia de tudo menos do gato Sebastião, um matulão preto de olhos verdes com ar de poucos amigos que passa os dias a comer ração e a dormitar dentro das diversas caixas de cartão. Ainda ninguém o conseguiu apanhar, que segundo consta costuma virar-se a quem chega perto. Mete respeito, ordem na casa, e vida, muita vida, onde tudo o resto já morreu.  

(O mundo é um local escabroso para existir em determinadas alturas. Uma delas é o principio, a outra é o fim, o que só pode provar que a verdadeira existência deve de estar algures pelo meio. Depois ainda poderemos ter sorte, é um facto, mas isto de eu continuar a acreditar que a vida também é um jogo de azares, mete-me um medo do caraças.) 

sábado, 8 de dezembro de 2012

Grandiosidades

Chega-me sempre com um ar de vitória farta, daquelas que nos alimentam o ego como uma feijoada nos trata da gula, e cheinho de prosápias insólitas, grandes o suficiente para que não caia por terra nos próximos anos, ainda que a sua jactância não seja mais do que uma mera nica de coisíssima nenhuma, que ele aumenta para seu belo prazer, possivelmente crente de que é de facto maior. Armo-me de paciência, engulo devagarinho e de vários goles as sapiências que emana de si, aceno com a minha cabeça insistentemente e sem ouvir quase nada, olho de frente, não vá achar-me em desinteresse e esqueço quase tudo no limiar de um segundo, o grande pecado que me permite continuar a ouvi-lo como se de uma sumidade se tratasse. Hoje insistiu a fundo. Explicou-me por A mais B os pormenores de funcionamento de maquinaria diversa, fez questão de me dar a conhecer o que toda a gente já sabia, de descobrir o que há muito já lhe foi dito, de enunciar os pontinhos todos que percorreu até conseguir, por obra de mérito, resolver a séria problemática quase impossível. De vez em quando tem por hábito arquear os braços e girar os dedos em torno da testa, ao mesmo tempo que faz uma estranha pausa, como que em pensamentos profundos, capazes de comandar. No final de tudo, conversa e gesticulação adjacente, confesso, já estou normalmente enojada. Já não consigo muito bem disfarçar o enfado, continuar a engolir para dentro de mim vaidades inconvenientes, fingir que me encontro defronte a um qualquer ser dotado de inteligência maior. Hoje hesitei no que fazer. Pensei ser este o dia em que da minha boca sairia um chorrilho de palavras arremessadas ou umas faiscas dos olhos capazes de matar gente, mas acabei por respirar fundo e por o convidar para a festa do Natal, uma tábua de salvação, ou certamente não se calaria nunca, tal o empenho da dissertação. Ele disse que sim, claro, poderíamos até precisar dos seus préstimos. Anui com a cabeça e confirmei. Há sempre tanto para fazer. Carnes para panar, pratos para enfeitar, teatros para representar, músicas para cantar, fraldas para mudar, famílias por receber.   

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

...

A razão e a emoção talvez sejam os principais responsáveis pelos conflitos internos que nos nascem por dentro, encavalitados uns nos outros, cada um por si, em lutas ofegantes e arrebatadoras que nos levam as forças, nos tiram o fôlego, nos deixam indolentes de forças e de intenção. Não aprecio de forma nenhuma quando ambos se travam dentro de mim, quando o que sei ser certo não é o que me apetece, quando  ensaio deixar-me cair na impetuosidade irrequieta, sempre insinuante e encantadora. Normalmente desprezo estes sintomas, fortes o suficiente para que o meu corpo ceda rendido ao augúrio do alivio, para logo depois se matar de arrependimentos.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Machadinha


Um dia tinha eu poucos anos e cantava qualquer coisa parecida com este título numa eira de pedra cercada a fenos, mesmo ao lado do sapateiro que vendia botas cinzentas que eu não podia ter. O sapateiro tinha duas filhas, uma alta e magra a outra baixa e gorda, que me olhavam sempre com desdém enquanto eu brincava com o primo Rodrigo, que era delas e não meu. Lá dentro da sapataria tinha nascido um mofo que tingia as caixas de um cinzento desmaiado e que subia pelas paredes mesmo até ao tecto. O tecto era baixo e tinha umas telhas de vidro fosco que deixavam entrar alguma luz do dia para dentro do barracão atulhado de botins de borracha, pantufas de xadrez, sapatos de senhora de biqueira redonda e as botas cinzentas, acolchoadas, que me faziam as delicias e que nunca me foram dadas. Mesmo ao lado morava a minha amiga Nádia que partiu há muito e que eu nunca mais vi. A casa dela tinha um alguidar onde se tomava banho, uns buracos no chão onde cabiam os meus pés, um colchão definhado onde dormia gente, um pai que gritava muito e uma avó que um dia morreu a beber vinho de uma taça de pé alto. Tinha ainda uma mãe com um nome doce e um gato amarelo que desapareceu atrás de uma gata e não mais regressou. No alpendre havia um baloiço preso numas vigas de madeira grossas que rangiam a cada puxo das minhas pernas, que saltavam sempre mais alto, e que me fazia imaginar que tocava nos céus. A machadinha era dançada por muitos meninos na eira ou na estrada de terra batida onde os carros caminhavam devagarinho, sem pressas ou impaciências. Não haviam luzes verdes ou vermelhas, haviam cabras a cortar caminhos, silvas que cresciam para fora do lugar, amoras que luziam na nossa boca. Não haviam urgências, não haviam medos, haviam noites e dias e um tempo sem fim. Hoje o que me veio à memória foi só a música. De rompante, senhora de si, despontada por coisa nenhuma que se visse. As restantes vieram atrás. De mansinho, a instalarem-se com zelo, não fosse eu estar esquecida de todo e puxá-las para fora com força, definitivamente, para morrerem logo ali. Parvas que são. Podiam entrar sem permissão, jeitos ou cuidados, tal e qual a machadinha, intrusa e repentina, sem licença que lhes fizesse falta. Não há tempo que as guarde, que vêm daquele que não existia.

( Um dia, muito tempo depois, encontrei numa feira umas botas cinzentas muito parecidas com as do sapateiro da aldeia. Agarrei nelas, revirei-as de um lado para o outro, atestei a qualidade do acolchoado e a biqueira redonda, calcei-as nos pés e mirei-me num espelho de barbear preso na porta da carrinha branca. Ficavam estranhas, demasiado largas nas minhas pernas magras que quase pareciam dançar no meio do enchimento, nada a ver com a acomodação que eu sentia haver com as pernas das senhoras que as calçavam, roliças e torneadas, debaixo das saias de lã.)  

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

...

Tenho uma pontada nas costas do lado esquerdo do corpo. O pescoço dói-me, deve ser do tempo. Tenho uns olhos que vêem letras pequenas apenas quando devidamente enquadrados dentro de umas lentes de uns óculos pretos em massa, comprados há tempos, velhos, a carecer de aumentos de graduação. Não simpatizo com oftalmologistas. Irrita-me colocar aquelas armações disformes enquanto olho para um quadro com figuras pendurado na parede, para depois declamar compassadamente para que lado é que se encontra a abertura, da maior à mais pequena, até à máxima capacidade da minha visão. Tenho por outro lado clarezas mais limpas do que a água que nasce da terra. Se me perguntassem em tempos se quereria estas últimas realidades dando em troca a minha destreza fisica, teria dito que não. Hoje, e se me perguntassem se voltaria atrás, regressando ao que tinha e perdendo o que ganhei, daria exactamente a mesma resposta. Não poderia nunca voltar a viver sem mim. Talvez até seja este um dos motivos, pelo qual o tempo nunca recua.

( A medição dos limites será por centro um dos principais motivos pela aversão ao oftalmologista. Estou-me a borrifar para as estremas do meu corpo, não gosto de as testar, de as demarcar, de as calcular. De resto, não gosto de nada que me quantifique a existência, qualquer coisa muito superior a números, a centímetros, a pesos, e a todos os consequentes refreamentos.)

sábado, 1 de dezembro de 2012

Migas com entrecosto

O prato tinha entrecosto frito com muita gordura e migas cravejadas de toucinho saboroso, à portuguesa. A  sangria não tinha nada a ver com o resto, as frutas boiavam entre o gelo e a colher de pau, e temiam decerto o encontro com a pratada robusta, que precisava realmente de um outro sustento. Um crépe suzette na sobremesa. Nos olhos muito grandes pareceu-me que encontrei uma força pouco crente, um fazer-se à vida sem vontade e com muito medo, uma qualquer dissonância que não mais me largou o corpo. Já há muito que me vejo deparada com juventudes que crescem devagar ou depressa, depende. Depende da vontade, depende da circunstância, depende dos dias de sol ou de chuva, ou depende até de coisa nenhuma em concreto, um calhar, um acaso ou uma sorte que se pode encontrar numa esquina de um prédio, num acordar destemido, numa corrida sem direcção atrás de um caminho qualquer. Normalmente crescemos cheios de ânimo, fundado ou infundado, e é tão bonito que assim seja. Crescemos no encalço de uma paixão desmedida, de um sonho fugidiço, de um propósito que nos agarra a vontade e que nunca mais a deixa fugir para lugar nenhum que não o escolhido. E isso costuma ver-se nos olhos, também eles em crescimento, brilham por dentro, por fora e acredito até que vêm o mundo de uma outra forma qualquer. Acredito, não, sei. E era por isto mesmo que eu esperava encontrar-lhe vida que se visse. Vida impressa e vida expressa, vida latente, na espera de viver ainda mais. Não havia, c'um raio. Havia uma estranha junção, de acomodação, ligeiras felicidades, teimosia e alguma vontade, que mescla meu Deus. Na fartura da comida e na fraqueza do corpo. 

( Estive quase a comer-lhe as migas, a beber-lhe o líquido, a devorar-lhe o crepe. Aguentaria perfeitamente as incompatibilidades da mesa, podia engoli-las, digeri-las, sustentar-me por umas horas de antipatias gastronómicas.)

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Quase indignada

Tenho-me mantido meio em silêncio quanto às diversas medidas do governo. Aperto os cintos que tenho a apertar, encolho o estômago e emagreço o corpo (cof, cof), aqueço-me com um cobertor e esqueço o radiador, não seco roupa na máquina e se o faço, aproveito a noite e a tarifa bi horária, quase quase extinta. Não vou trabalhar a pé só porque ainda não consigo correr trinta quilómetros por dia e lavo-me com água quente, por enquanto, que os senhores do gás são uns simpáticos que resolveram bloquear-me o contador numa leitura sempre igual, ou seja, tenho-o de borla. Entrei de cabeça na crise e na austeridade, nos cortes e nas contenções, tal e qual como se fosse um projecto muito meu o deste País que se afunda devagarinho, deixo trabalhar na recuperação quem supostamente sabe o que faz, acolho as medidas impostas e pago com o meu trabalho, o meu suor, a minha dedicação, e nunca me encosto para ver o barco a passar em frente aos meus olhos. Não tenho reclamado, encaro como necessidade, e mesmo que não encare, ajo como se fosse, e até, confesso, me irrito com frequência com os excessivamente indignados que se revoltam contra o governo, contra a Alemanha, contra o sol e contra a chuva e ainda contra as meias que calçam todas as manhãs. Mas depois há dias em que eu mesma me canso desta minha acomodação, e em que me apetece perguntar a quem manda, mas que raio é isto? Quando oiço cortes na educação estremeço, tal como estremeço quando oiço cortes na saúde, por serem pilares demasiado importantes e já consideravelmente fragilizados. E parece-me isto tão básico, que não entendo como é que se consegue considerar a hipótese de se vir a taxar o ensino secundário. Provavelmente, e antecipando vozes que por certo se levantarão perante a onda de indignações, virá breve a público a informação de que a existir, se tratará de uma propina pequena, quase insignificante, uma migalhita de nada que só surtirá algum efeito por ser abrangente e por sair do bolso de toda a gente. Poderão até existir situações de bolseiros, aqueles sortudos que por serem ainda mais pobres não vão pagar, ou vão pagar menos, para conseguirem concluir o obrigatório sem definharem pelo caminho. O que parece que ninguém pensa é que retirar mais migalhas a pães já secos poderá não ser boa política, e ainda que se o País está tísico e empobrecido deveríamos pelo menos continuar a educá-lo, iluminando as mentes e abrindo as portas ao mundo. Para que daqui a uns anos possamos continuar a emigrar, tal e qual nos indicaram algures, sem ser só para irmos fazer o que ninguém quer, mas também para sermos cientistas, biólogos, paleontólogos, e por ai fora.

( Retirem deste texto os excessos. Por vezes também me acontece, é o que é. Aproveitem-lhe a ideia base e esqueçam o resto.) 

...


( Roubado do Facebook. Lembra-me umas bolas de chocolate que me enfeitavam em tempos a árvore de natal. Constituíam a minha única ânsia para que a quadra findasse. Só aí, eu podia comê-las.)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Fandango

Existem pessoas que julgam que o mundo cai a seus pés mal elas passam na estrada, as portas abrem, os carros param, os tapetes estendem-se e ficam vermelhos de repente, mesmo que sejam pretos, azuis ou às bolinhas. Não quero saber disso, estou-me nas tintas para os supremos da existência, os que atingem aquele lugar de topo onde o vento parece ser forte e levar com ele todas as ideias, todas as capacidades, tudo o que é sensato, e apenas deixa a opacidade de uma caixa rodeada de ossos e sem mais nada, onde só prolifera rataria e nichos de supremacia. Por mim podem até deixar-se estar nos píncaros da existência, inatingíveis, magnânimos, capazes de ser donos deste mundo e do outro, de governar a aldeia, a cidade ou o país, de ficarem plantados no campanário da igreja a ouvir o sino tocar nas orelhas e a sentir as rajadas a sacudir-lhe os interstícios da alma. Só não consigo muito bem perdoar, a eles e aos outros, o excessivo mando que por vezes emanam. Faz-me lembrar Fernanda, uma criatura matriarca com quem tive o desprazer de trabalhar um dia. Não havia gente que não vergasse na sua passagem, que não lhe venerasse os ditos, que não absorvesse o que dizia como se daquela boca nascessem apenas e só doutrinas absolutas, suficientes para que o mundo girasse a seus pés. Até na dança do rancho, num grupo que quase lhe pertencia. O fandango, por exemplo, das minhas favoritas e uma das que toda a gente admirava, era o primeiro a desaparecer do rol mal os azeites da senhora desciam em si. Irritava-a os passos certos e ritmados dos moços que saltavam no palco a estremecer as tábuas do chão, ficava vermelha de cólera contida nas carnes gordas e flácidas, eriçavam-lhe os cabelos amarelos e encrespados que lhe guardavam a cara redonda e gigantesca que nunca sorria. Hoje, não há fandango, gritava, e todos obedeciam. 
Um dia apareceu-me a arfar pela casa adentro rodeada de vestes pretas do Minho, carregadinha de oiro até ao pescoço. O seu Zé estava a passar mal, não suportou as reviravoltas da dança, não aguentou o vira da nossa terra e não teve braços para acolher Fernanda, a grande, e para a fazer girar até ao infinito da dança, que terminou logo ali. A tensão tinha disparado pelo corpo acima, a língua tinha-se enrolado para dentro, os olhos tinham-se revirado e só o pronto auxílio de muito povo permitiu ao Zé continuar na terra dos vivos, a abraçar Fernanda. Por momentos ainda julguei que a aflição e o préstimo das gentes lhe amansasse o corpo. Lhe comesse alguma bravura do ser, nem que fosse coisa pouca, e a fizesse olhar pessoas como pessoas e  não como uns quaisquer palermas que giram trôpegos à volta de si, a bailar ao toque de músicas cantadas numa única voz, sem reco-recos, sem pandeiretas, sem bandolins. Palermice da minha parte, pura ingenuidade, que já deveria na época saber que quem é muito grande dificilmente sente para além dos minutos da aflição e da gratidão, meros instantes rapidamente esvaídos na grandeza do que se julga ser. 
Ouvi dizer que o rancho ainda dança e que o fandango ainda cessa. Eu por cá, continuo a gostar de o ouvir. E de o ver, dançado a preceito e por quem o saiba fazer, com os pés retrocidos e cadenciados, toc, retoc, toc toc. Ora vejam só:



Chuva

A chuva insiste em baptizar-me horas que escorrem sem demora junto com ela, nas estradas invadidas de folhas de outono. Juntas fogem depressa, escoam-se nos ralos limpos da rua que sorvem famintos o líquido forte. Abranjo plenamente o desejo da natureza, compreendo-lhe a ânsia desaforada em levar para dentro de si grandes momentos, perdoou-lhe até a ousadia em preservar para ela os que eu guardaria ao infinito de mim. Mas a poder, roubar-lhos-ia, confesso. Derramar-me-ia concomitantemente, respiraria o cheiro, sorveria os sentires até aos limites do meu corpo e fundir-me-ia clandestina, nas gotas da chuva e do tempo que nos leva. Devagarinho, e só até mais logo.

( Gosto da chuva. Não penso muito sobre o tempo e suas vicissitudes. Ainda assim continua-me um conceito estranho. Um vazio onde nos movemos balançados, ora para um lado, ora para o outro.) 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Pastel de nata

Pela manhã discutia-se na pastelaria o preço e a qualidade do papel higiénico. O do Continente é o mais barato, mas não é de boa qualidade. O do Lidl, das florinhas azuis, é mais caro mas é muito resistente. Também sei destas coisas, atenção, só que nunca me apetece trazê-las para a mesa do café da manhã. Um pastel de nata, por exemplo, é sempre melhor companhia do que o conjunto das donas de casa que insistentemente me querem à mesa, a fim de partilharem comigo a loucura dos preços baixos. Nunca entendem que eu me sente na mesa ao lado, sozinha e tão sossegada. 

(Mas por vezes assumem-se como uma sumidade em orientação específica momentânea. Há dias em que dá um jeitão encontrar logo pela manhã um conjunto de distintas senhoras que sabem exactamente onde eu posso encontrar o bacalhau mais graúdo, a carne mais tenra, o skip confort dois em um ou o Bolo Rei com mais frutas cristalizadas, tudo ao melhor preço do mercado. Nesses dias disfarço o meu desapego e costumo sentar-me. No fundo somos todas felizes assim, muito mais do que seríamos se eu diariamente forçasse o meu corpo ao martírio. Por esta hora teria por certo ultrapassado a razoabilidade da minha existência e já as cuspiria pelos olhos, todas, em escadinha. Já nunca me sentaria na beira delas, já não faria companhia circunstancial em proveito meu, já não saberia onde me deslocar aquando de alguma necessidade específica. Já teríamos fugido umas das outras, por causas distintas, definitivamente. Devo ainda enaltecer aqui o papel preponderante do pastel de nata. Ele merece.)

domingo, 25 de novembro de 2012

Julieta


Não percebi o porquê da bicha deitar a língua ao fotógrafo que a guardou dentro da máquina. Uma delambida, grande vaidosa. Ainda menina, note-se. Só isso justifica o facto de não se deixar ornamentar com uma coleirinha vermelha de guizo a condizer, que a teria deixado um charme que só visto. Uma maçada, coisas de gente crescida.

(Não sei se lhe deva relevar esta e outras ingratidões ao fotógrafo. Ele, por sua vez, parece-me que já lhas perdoou.)

Alberto

Morreu o Sr. Alberto. A meio de um noite de Sábado para Domingo, mais precisamente às quatro da matina, a lanterna que percorre os quartos e aponta para as cabeças que respiram devagar e cansadas estremeceu e denunciou que ali já não havia vida. Para nada serviam insistências inconvenientes, não valia a pena abanicar-se o corpo até à exaustão do cansaço, um velho hábito despropositado que se tem com insistência na vã esperança de que o coração volte a cumprir o seu propósito, neste caso sempre certo, de há cento e dois anos a esta parte. Não respira, diziam-me. Tem a certeza?, pergunto ao longe, já colocou a mão em frente ao nariz? Tenho dizem-me. Então deixe, morreu.
Alberto era um velho que casou três vezes e enviuvou outras tantas. Já não dizia grande coisa, apenas comia e acenava com a cabeça para um lado e para o outro enquanto a escrófula lhe pendia para a frente, cada vez mais saliente. Sempre tive o hábito de lhe afagar o cabelo, dar-lhe os bons dias, fazer-lhe uma festa, muito embora eu soubesse que nunca obteria resposta, mas devo confessar que aquela protuberância no queixo me importunava. Isso e uma acentuada inclinação do seu corpo para o lado esquerdo. Há muito que não conseguia estar direito. Colocaram-se almofadas, cintos de imobilização, mudaram-se assentos, enfim, utilizaram-se as artimanhas ao alcance para o conseguir erguer, mas sempre em vão. A cada dia que passava a sua inclinação acentuava consideravelmente ao ponto da escrófula lhe acompanhar a tendência, dependurada para o lado cadente do corpo. Estava realmente velho.
Vêm lá os corvachos, diziam-me há dias, há morte para breve. Não liguei ao assunto, assumo. Faço sempre orelhas moucas para as crenças populares, insiro-as todas no saco da nescidade, armo-me da lógica que me governa e sigo em frente ciente de que neste mundo não há bicharada, fé ou habilidade que me supere o rigor da existência. Mas às vezes questiono-me a mim mesma. Penso para cá com os meus botões se não seria melhor dar ouvidos às bocas que crêem nestas verdades, nascidas dos anos que correm sem nexo e sem explicação, mas tão certas ou quase como aquelas que conseguimos escrever nas quadriculas absolutas dos cadernos da escola. Ou no mínimo assim são proclamadas. E por vezes, tantas vezes, cumpridas.
(Morreu a dormir. Do melhor que há, segundo oiço dizer frequentemente, de bocas que nunca morreram.)

sábado, 24 de novembro de 2012

...

( as imagens chocantes apelam mais. será? esperemos que sim...)

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Gertrudes

Não gosto de palavras recolhidas à força pela brutidade da minha boca. Ficam presas algures entre a língua e o estômago e provocam-me um refluxo gástrico considerável que me desconforta desde a planta dos pés até ao pico do cérebro. Quando tal coisa me acontece, quando uma parte de mim ordena ao resto que se cale, lembro-me sempre de Gertrudes, a sábia. Gertrudes era uma velha que vestia preto não por devoção, mas por deferência. Tinha o estranho hábito de clamar a céu aberto, sempre que se proporcionava, um cala-te boca que se ouvia até à aldeia vizinha, caso o vento estivesse de feição. Determinara em tempos e sob diversos propósitos, que haviam palavras que não eram para ser ditas, situações que deveriam ser abafadas, verdades que tinham de ser mortas ainda antes de o serem. Sabia muito a malvada velha, mas era um ser fechado que chispava dizeres só com olhos. Percorria a aldeia desde o salão das festas até ao cemitério, munida de um carrinho de mão onde transportava todos os utensílios que precisasse para a serventia do dia, ao mesmo tempo que ia engolindo muito do que tinha a dizer, um bocadinho de cada vez, empurrado com jeito por um respirar mais profundo que arrumava palavras em míseras reentrâncias, ainda livres. Cruzei-me com ela vezes sem conta e assustava-me sempre com o seu ar de exagerado inchaço. Tinha bochechas gordas, ventre opado, uma garganta demasiado saliente e umas pernas balofas prestes a rebentar, tal e qual um chouriço tosco alentejano. Um dia, morreu. Ninguém sabe ao certo porquê, ia a meio de uma caminhada entre um sitio e outro quando deu um grito estridente e caiu para o lado, levando com ela para todo o sempre toneladas de palavras presas ao corpo. Do lado de cá, e por entre as centenas de pessoas que a velaram, ficaram orelhas secas do pouco que ouviram. Do lado de lá, uma alma entupida de frases retardadas responsáveis por um eterno amargo de boca, uma acidez alojada nos buracos das gengivas descarnadas e nos dentes apoderecidos, uma língua retorcida de contrariada que Gertrudes eventualmente ainda guarda, tísica, nos restos de si. De vez em quando, e à medida que se funde de uma vez com a terra, deixa soltar meia dúzia delas, desta feita ao Deus dará. Sei disso porque há dias, em que juro, me passam perto. Sinto-lhes o peso e o cheiro bafiento, húmido e forte, agudizado pelo tempo e pelo caixão que as prendeu até ao dia da soltura. E pela podridão de Gertrudes, a sábia. Finalmente, quase quase vazia. 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Raízes



(A paixão é aquela coisa que nos resvala do corpo aturdida em adrenalinas transeuntes, que se afoga em instantes fugazes capazes de nos matarem à velocidade de um pelouro. O amor? Ora, o amor mora-nos dentro do peito, residente, de raízes varonis que nos cercam de vida, na existência do sempre. E então, escolhemos ficar.)

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

(...)


Os dias servem-me o nobre propósito de te encontrar numa estrada que cruza a árvore dos figos com o rio que nasce gelado, nas montanhas íngremes da serra verde. Por ora as fendas parecem largar cá para fora o ímpeto intimo da terra, jorros de líquido ensandecido que se recolhe por fim em sossego, no leito estreito e tortuoso que corre por entre os vales das terras esquecidas, as pontes de pedra tosca, as casas vivas só no antigamente. Não sei muito bem se as prefiro no Inverno ou se no verão. No verão encontram-se consteladas de flores, de vacas que comem pasto, de memórias de bicicletas de pedais e cestos de merendas com doces e pão. No Inverno tudo fica diferente, ainda que num mesmo lugar. As flores dão lugar ao infinito da água embaciada, no restaurante da encosta escorrem fios húmidos com cheiro a molhado, as pontes morrem sob a fúria que explode ao lado. Os caminhos? Esses hibernam e guardam-se do tempo, até que alguém destemido os descubra e os acorde outra vez.

sábado, 17 de novembro de 2012

das horas

Por vezes amanhece tarde, como se tal fosse possível. As manhãs nascem sempre a seguir às noites, exactamente onde devem nascer, a não ser quando alguma hora se estende ao infinito e se transforma em tempos esquecidos que não andam, em vidas presas que não saem, em suspiros arrancados a ferros por movimentos cansados. Cansa quando nos amanhece tarde e o nosso corpo ressente a demora, arfa de desejos cingidos aos dias que correm em compasso, agora um, depois o outro, numa melodia tocada em desespero por um instrumento qualquer. Afinal é possível a dissonância. As manhãs da hora certa só nascem todos os dias com o clarear da aurora, nascem no calendário que temos pendurado na porta do frigorífico da cozinha que olhamos de relance entre o iogurte magro e o haagen dazs, ou nos iPhones que tocam aos ouvidos para lembrar que é agora, um despertar que nos acorda quase sempre sem querermos. Mas o nosso corpo tem horas sentidas. Vive de outras manhãs e de outras noites, completamente perdido entre o tempo que quer e o tempo que tem, um contrabalanço que o obriga a adiar para a noite o que não pode ser cedo. A pedir um desejo, a deixar que em mim entrasse a utopia, e poderia muito bem considerar a questão. No cardápio escolheria um meio dia fresco, uma sesta dormida depois de um almoço farto, um sol só morno mas sem fim à vista numa chaise longue perfeita onde caberia o que eu quero. Eventualmente, mais logo, far-se-ia noite. Sakamoto no piano, sempre. E um Dom Pérignon a acompanhar. 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

90



" as palavras proferidas pelo coração não tem língua que as articule, retêm-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se podem ler"
José Saramago

Podia ter chegado aos noventa, hoje, não foi o caso. Deixou-nos um legado precioso transposto em letras, do mais rico que há. Aquela ali é uma, não só porque sim. Mas há mais. Muitas mais.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

(...)

Há muitos dias em que me canso. Canso-me das palavras brandas, dos olhares vazios, dos intentos impressos em dizeres que se apagam antes do próximo respirar, da espera dos afagos que se prendem a quilómetros de distância, ainda que nos meandros se esfalfem, bofes de fora, pernas corridas, para que cheguem rápido à beira de mim. Há dias em que me farto dos velhos que morrem devagar em cadeiras de costas direitas, que vivem os dias e as horas ao rigor do segundo, que esquecem que o tempo é aquela grandeza completamente indexada ao sentir, ou seja, para eles é muito, para mim é coisa nenhuma. Ou vice versa, depende. Há dias em que me canso das razões absolutas que nascem de gente igual a mim que não tenho nenhuma, mas que lhes sobem garganta acima com veemência, para destilar a sete ventos, como se o homem já tivesse descoberto tudo o que há para descobrir. Há dias em que me farto de mim e das minhas fraquezas, pequenas brotoejas que me comem por dentro com uma voracidade de leão, e que pungem um liquido fétido que eu deixo escorrer pela pele, pelos olhos, pela boca, sem que ninguém prove, ninguém sinta, ninguém cheire. Há dias em que não queria o mundo tal e qual ele é, com vontades guardadas por celas perfeitas impostas pela vida, coisa que não se vê mas que pode mais do que tudo o resto que possamos conhecer, que manda e desmanda nos corpos que caminham em filas seguidinhas rumo ao sítio que desconhecem mas que querem muito, por vezes esquecidos de que basta ela não querer. Por vezes canso-me, só isso. E canso-me ainda mais quando a impotência me arruma com os pés para o chão, quando oiço os discursos da calma e da sensatez, pequenos nadas, míseras palavras mortas e apagadas pela minha vontade, acesa, fugaz, peremptória, mas ao mesmo tempo tão miserável.

( mas depois há outros. quando as horas inquietas me aproximam do abraço esperado que nunca mais vinha, quando nuns olhos apagados encontro esgares de luzes arrancadas de coisas tão pequenas como nada, quando o meu filho me sorri e me conta as histórias do dia. e parece-me tudo tão fácil que até arrepia.)  

in/compatibilidades

A minha gata deveria ser uma gata elegante como todos os gatos, deveria passear-se pelos recantos da casa sem alagar as flores e as estatuetas que me enfeitam a zona de conforto, deveria cruzar a minha mesinha de cabeceira de norte a sul sem derrubar os livros que repousam em noites esquecidas, sem qualquer tipo de préstimo. Não me lembro da última noite em que abri bem os olhos para sorver os contos inacabados de Javier Marias, uma delicia de capa verde enfeitada com uma senhora de espartilho e um toucado na cabeça, uma das mais belas indumentárias femininas de todo o sempre, e recheada de letras que se juntam com o propósito de nos transportar a mente muito além do que se diz e do que se conta, ou seja, nos acordar no exacto local onde queremos despertar do natural estado de vigília para chegar a um outro, guiados a jeito por letras que se acabam, criteriosamente, antes do tempo. Lembro-me por exemplo da minha outra gata, branca e de olhos azuis, que conseguia a arte felina de se passear no meio de tudo sem que nada a pressentisse, uma elegância feminina que só visto, um passear subtil e ao mesmo tempo imponente, irrepreensível. A esta, julgo-a eventualmente desadaptada. Uma estranha forma de vida que encarnou num corpo pequeno e muito bonito, que esbarra com força nas portas, nas paredes, nas mesas, nas pernas do meu filho, em mim. 
Falo por ora num homem. Um homem que é homem há trinta e alguns anos, do qual sempre esperaram qualquer coisa que ele quase conseguiu ser. Não era o que ele queria, ele queria ser o que é neste preciso momento, altura em que deixou de ser sentido como útil, para passar a ser visto como um incómodo. Não que ele não tenha utilidade, que se note, mas tem uma utilidade desnecessária para ela, ainda que indispensável para ele. Incompatibilidades diversas, se é que me explico, se é que me entendem. Mas por que raio é que as outras hão-de ter um homem com um H muito grande, que bebe cervejas e vê televisão no sofá com um comando na mão e um cigarro na outra, e o dela há-de agarrar o ferro de engomar quando ela de repente se ausenta, por minutos, por instantes, por escassos segundos, bocados de nada que quase lhe roubam do corpo a única condição que concebe para si?

( Uma gata deve ser elegante, um homem deve ser um homem, uma galinha deve ser uma galinha e se cacarejar, melhor ainda. Agora mais longe. Um pássaro deve cantar para os nossos ouvidos mas não em exagero, um cão deve encher-nos de lambidelas aconchegantes quando nos apetece, e as outras pessoas devem dar-nos o que precisamos, mas só mesmo quando precisamos. E basicamente é isto.)   

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

(...)

Nem sempre o que somos nos passa pela pele. Do lado de fora temos o nosso mundo que se vê, somos braços e pernas, cabelos e pés, mãos e narizes, umbigos e bocas. Conhecemos a preceito o que temos de bom e o que temos de menos bom, disfarçamos as imperfeições, enaltecemos as outras, arrumamo-nos  num conforto construído com base na lógica, na coerência, no que sabemos que se vê, e lidamos com esta entrega desde que nascemos até que morremos. O resto, o resto sente-se, o que deve por si só ser motivo suficiente para acreditar. E nós acreditamos. Quem de nós não acredita nos medos que sente perante os dias, as pessoas, as dúvidas ou a morte, ou no crescer do ânimo na paixão e no desejo? Acreditamos, são pertenças de direito, são bocados do self que nos reside do corpo para dento e que nos corre no sangue, não temos como negá-lo. Deixar transpô-lo, a nu, cá para fora, pode porém ser um desafio. Não perante o outro, mas perante nós. Não é o que outro possa saber que nos prende cá dentro. O que nos prende cá dentro é o que poderemos sentir na sequência, despidos de pele.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Rua

Já encontrei sobre ela inúmeras fotografias a preto e branco onde se podem ver bicicletas a pedal, pessoas, uma fonte que deita água em repuxo no centro da praça. Muitas portas abertas com vitrinas imensas recheadas de casacos de fato e calças vincadas, chapéus de aba, tecidos e vestidos de chita floridos. Por vezes em fotografias encontro vida. Encerram histórias, movimentos guardados num clic impresso em papel brilhante que cuida para todo o sempre instantes únicos, como se perpetuasse ao infinito o rigor dos segundos, a criança que sorri, o velho que pedala, a senhora que olha e cobiça a montra bonita. Hoje passei cedo. Na rua a vida aparece como que esmorecida, apagada debaixo das memórias de uma cidade que já foi bem mais ocupada. Na loja dos três balcões, local que frequento com alguma assiduidade, encontro o senhor de sempre, misturado no espaço que já é seu por direito, munido do metro que mede os tecidos empilhados em filas garridas por detrás do mostrador. Continuam a existir inúmeras caixinhas de cartão com botões coloridos, pequenos e grandes, de plástico ou forrados a tecido, com ou sem buraquinhos. Uma delicia. Continuam a existir os carrinhos de linhas de costura, de renda ou de bordar, agulhas e alfinetes, lenços de bolso com iniciais bordadas, entremeios e fitas estrafor, para além de uma considerável panóplia de artigos de vestuário feminino e masculino, de criança e de recém nascido. Normalmente compro sempre a mesma coisa. Um metro de um, outro metro de outro, eventualmente ainda mais um. Dois dedos de conversa, o comércio fraqueja, a rua fica, devagarinho, vazia. Agradeço a simpatia, saio, e no portal de pedra quase esbarro no louco. Falava muito alto, gesticulava efusivamente com os braços, sacudia a longa cabeleira encardida para trás das orelhas e sorria muito, provavelmente feliz. 
A rua estava quase deserta. Lojas fecharam, dói-me francamente o coração. A loucura, essa, não sei se ainda me incomoda ou se já não. 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Interregno de segurança

( Luís Onofre - o que é nacional, é bom...)

- Ai filha, não sejas tão maçadora... ( dizia a minha avó quando eu debitava palavras em demasia.)

domingo, 11 de novembro de 2012

Vento

Estava um vento muito frio. Embrulhada calcorreava o passeio de pedra grosseira, raiada a riscas e desenhos azuis escuros que formam o brasão do Município. Houve uma vez, lembra-se perfeitamente, em que encontrou os estudantes universitários a contar as pedrinhas brancas, imensas, a maioria, enquanto no redor um pequeno grupo dançava a dança da chuva até que chovesse debaixo do sol de inverno. Não parariam até que tal acontecesse, ou até que algum veterano ordenasse. Não parariam ainda a contagem até que o número fosse exactamente o verdadeiro, apurado ao calhas por algum iluminado, ou até que algum veterano ordenasse. Não cessariam também as cervejas, nos que olhavam e governavam embrulhados em capas pretas, devidamente acomodados debaixo do toldo verde do café ao lado, até que a vontade as quisesse. Nada pararia. Ela também não. Caminhava apressadamente no tardio da hora, precisava de um jornal onde lesse isto e aquilo, de um café que a trouxesse de volta ao mundo além dos sonhos, precisava ainda de levar com o vento na cara, muito embora não goste dele, sente-se sempre afrontada pela sua impertinência. A chuva, por exemplo, permite-lhe a resguarda debaixo de um chapéu de lacinhos que se enrola numa fitinha quando não apresenta préstimo, e que lhe compõe a indumentária. O sol, e por sua vez, consegue ser estorvado por um chapéu de aba larga, naturalmente de verga, que enfeita a cabeça das mulheres com uma elegância ímpar. Mas o vento, esse endiabrado, insiste em causar-lhe transtornos, em  incomodá-la muito além daquilo que ela consegue compor e controlar. Não obstante, e ainda que presumido, não se verifica suficientemente capaz de lhe limitar os propósitos. Eventualmente uma questão de tira-teimas, um ganhas tu ou ganho eu, um jogo que ao fim e ao cabo não apresenta vencidos nem vencedores. Fico a olhá-la ao longe a fingir que espreito a imensidão do vazio. Vejo-a, cuidadosa, a ajeitar a roupa para mais perto do corpo. Abriga-se dele, do vento, esse endemoniado, não vá o estupor ter a ousadia de lhe roubar o cheiro que guarda da noite, já com um travo de saudade, colado nas entranhas da pele. Nunca lhe perdoaria.

A minha opinião.

Nem sempre me apetece focar assuntos polémicos. Mantenho-me normalmente à distância do que me parece ser razoável em medida de opinião, uma vez que estas são sempre pessoais. Mas existem assuntos que excedem o razoável. Já ouvi o discurso de Isabel Jonet de fio a pavio. Já li blogs, jornais, vi redes sociais, já falei e já ouvi. E parece-me, honestamente, que algum equivoco se instalou na situação. Primeiro, faz-me todo o sentido o que ela disse. Segundo, o que ela proclama em termos de gestão de recursos familiares já eu faço há muito, porque é assim que quero, acho, e tenho de fazer. Terceiro, ainda que ela se tivesse verdadeiramente excedido, o que volto a dizer, não considero, de forma nenhuma merecia ser alvo desta onda de indignações. Ser voluntária no Banco Alimentar, conhecer a realidade da pobreza do País, dar-se a esta causa nobre durante anos a fio é para poucos. Encontrar-se na liderança de uma causa que ajuda a pobreza, é para menos ainda, porque acarta repercussões diversas a vários níveis, por vezes difíceis de gerir. Como esta situação, por exemplo. Situação à qual ela nunca se sujeitaria se estivesse, como a maioria de nós, sentadinha no sofá a beber cházinho e a comer bolachinhas com pepitas de chocolate,  fartos de palavras vazias, enquanto na televisão, nas ruas e no País, outro alguém desse a alma e o corpo ao manifesto.  

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Frio

Que nada é por acaso, já todos sabemos (sabemos?). Esvai-se tal facto da memória, puro esquecimento, desatenção aos pormenores, estratégia? Pois, não sei. Olho por exemplo o andar. Diz-me coisas, tantas coisas. Diz-me coisas o andar do velho cansado e triste, combalido, cambaleante, arrumado numa bengala tosca e retorcida. Diz-me coisas o andar rápido do meu filho, desengonçado, traquina, despachado. Diz-me coisas o andar calmo do meu pai, de mãos invariavelmente coladas atrás das costas, cabeça baixa, passos certos e ritmados. Diz-me coisas o andar da jovem que abana delicadamente as ancas para um lado e para o outro enquanto os olhos miram a sombra, estará bonita? Diz-me coisas o andar da cozinheira ligeiramente tombado para a frente, nuns passos mortos e apagados, quase tão apagados como  os olhos que espreitam por detrás de uns óculos de massa amarela que lhe possibilitam ver os netos a crescer, devagarinho (é tão bom ver crescer devagarinho). Dizia-me coisas o andar da minha bisa, apressado, sempre com um destino qualquer, completamente avesso ao andar do meu avó, que nunca ia para lugar nenhum. Diz-me coisas o andar do jovem que semanalmente vem ter comigo carregado de vida que se quer soltar por todos os poros do corpo, e que ele guarda, sem grande jeito ou consequência, quase preso nas pernas e até nos braços. Diz-me coisas o andar elegante da senhora que toma café comigo todas as manhãs, expressivo e decidido,  mas que por vezes, em dias cinzentos que ninguém vê, se transforma num andar vagaroso, lento e demorado, completamente denunciador de um estado de espírito muito menor do que ela. Nesse dias, percebo perfeitamente, eleva a cabeça para além do razoável e pincela o rosto com pérolas de oiro, chuvisca-se de gotinhas minúsculas do seu melhor perfume e refugia-se assim do mundo, quase encoberta, discreta aos olhos de toda a gente. Deixa porém que lhe escapem, por entre os disfarces criteriosamente escolhidos a dedo, rasgos internos nos passos, nos olhos, nos  risos, nos simples gestos com que arruma os cabelos com o lenço colorido onde se abriga. Do frio. 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

(...)

Pode ser Outono ou Inverno, dia ou noite, aqui ou ali. Há chuva e no meu rádio toca no woman no cry, um clássico, impossível não gostar. Mas podia tocar outra coisa qualquer, há pequenas particularidades que aprecio, sejam elas quais forem, não me ocupam desde que mais exista. Dentro das primazias mas menor, muito menor do que a maior, temos a chuva, já ela importantíssima. Os dias de chuva convidam-me ao sossego e eu gosto dele mesmo nos dias de sol. Estes últimos têm porém o pormenor de me vascolhejarem por dentro, de acordarem partes de mim ainda que outras queiram apenas estar. Não somos completamente consistentes, digo eu. Somos repartidos em corpúsculos autónomos, em fragmentos particulares uns num lado outros no outro, muito embora o que possa valer seja a totalidade. Ou não. Por isso, e só por isso, talvez seja mesmo possível eu delinear olhos no espelho, por exemplo, enquanto o resto de mim não está. Ainda que no reflexo, e revelasse ele tudo o que eu encerro, se avistasse todo um sentimento, muitíssimo além de uns olhos tingidos a negro pelas minhas mãos, trémulas e imprecisas.

Nós

Fico sempre muito satisfeita quando se inicia à minha frente uma discussão feminina, por nada. Porque muitas de nós têm o extraordinário condão de conseguir transformar tudo em problemas. E conseguimos até, pasme-se quem disto não sabe, que aquele nada pareça mesmo um problema verdadeiro. Puxa pá, somos mesmo boas nisto. 

( Sim, sei que a exclusividade da proeza não é nossa. Mas há que levar os louros a quem os merece. E se não é só nossa, é no mínimo muito mais nossa.)

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Rosa

Dentro da minha mala repousam panquecas redondas e pequenas que o meu filho esqueceu. Repousam rebuçados de café sem açúcar e caramelos de pinhão El Caserio, um pecado. Na M80 tocam os Sétima Legião e na minha terra, mas não aqui, é feriado municipal. Quando saí pela manhã não haviam carros na rua e na pastelaria do costume grupos de pessoas em traje descontraído desfrutavam dos ares  matutinos. A Dona Rosa dos jornais estava inerte por detrás da banca, ladeada por Anas, Novas Gentes, Marias e outras que tais, enfeitadas com carinhas de cabelos loiros, muito bonitas. Quase que aposto que a Dona Rosa, e a poder, trocava de lugar com elas. Trocava o posto dos dias, os cumprimentos amáveis e despretensiosos dos senhores do banco, os sorrisos afectuosos das senhoras roliças que compram livrinhos de receitas e de croché, o próprio rosto cansado pelos anos e o corpo já velho, pelo mundo onde a beleza e a facilidade se transformam em felicidade, como que numa relação causal, perfeitamente consequente. Deve de ser tão fácil viver assim. Tenho dias em que também a mim me apetece desfazer-me em delicadezas para a Dona Rosa. Apetece-me pegá-la nos braços, afagar-lhe os cabelos amarelados e baços, encostá-la no meu regaço e dar-lhe confortos simples que eu não sei se ela conhece. Toda a gente deveria conhecer o prazer dos confortos simples. Uma pretensão minha estes excessos de inquietação, é o que é. Não tenho nenhum direito a retirar conclusões abusivas do estado dos outros apenas porque os cumprimento e do rosto não lhes retiro emoção, porque não me emitem vida de dentro do corpo que os acolhe, porque não lhes consigo ler nos olhos coisa nenhuma. Entrei no carro e resolvi comer um caramelo de pinhão El Caserio. O açúcar às vezes faz-me falta e os de café não me traziam nada de novo à boca, logo após a bica da manhã.

(A bica da manhã é um dos minutos do meu dia. Quando tenho tempo transforma-se em hora, ou até, na loucura, em horas. Acontece muito pouco. E parece de facto uma coisa tão simples.) 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Tempo

Não tenho nada contra os meteorologistas, mas é que prevêem todos o imprevisível com base numa reunião de dados que a atmosfera muitas das vezes esfumaça com um sopro de mestre. Mas insisto em consultá-los, em prover-me das imprescindibilidades adequadas para fazer frente ao frio quando é frio, à chuva quando é chuva, ao sol quando é sol, e por aí adiante. Não gosto particularmente do vento. Tenho por hábito amaldiçoar os santos quando os senhores o apregoam para os dias seguintes, de desejar a estes o redondo engano, de considerar ainda mais seriamente a probabilidade que têm da falha declarada, um sentimento profundamente mesquinho da minha pessoa, devo dizer, que qualquer meteorologista que se preze deverá ter um orgulho imenso em conseguir informar com exactidão quem o escuta, ainda que dali se antecipe uma qualquer intempérie séria e danosa, capaz de alagar as árvores que se encontram no jardim em frente à minha casa, ou os caixotes do lixo verdes que todos os dias recolhem os desperdícios do bairro. Houve um dia no Inverno passado em que o meu vizinho de cima, meteorologista de profissão, me trouxe a preciosa informação de que uma tempestade se aproximava. Deveria recolher os estendais, fechar as janelas, vendar as frestas que pudessem permitir ao vento o acesso à parte de dentro das minhas quatro paredes, que só assim impediria estragos maiores que felizmente não aconteceram nem aqui nem em lado nenhum perto, mais ou menos guardado a preceito. Este fim de semana que passou, por exemplo, foi outra dessas situações. Apregoou-se chuva forte, deram-se alertas coloridos, colocou-se a população de diversos distritos em cuidados redobrados, mas o que eu senti foram irresistíveis sopros de sossego, distantes de tempestades, de chuvas torrenciais, de ventos ou de qualquer outra inclemência atmosférica que me pudesse perturbar o corpo ou o espírito.

sábado, 3 de novembro de 2012

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Experiências

Todos têm a mania de me dizer que o mundo é redondo. A própria astronomia manda satélites para o espaço, fotografa, prova e comprova que o mundo é uma bola gigantesca suspensa na atmosfera à qual nos mantemos ligados pela força da gravidade. Eu própria já vi inúmeros documentários, já estudei o sistema solar de fio a pavio, já decorei o nome de todos os planetas, uns maiores outros mais pequenos, uns mais quentes outros mais frios, uns longe outros perto, alguns detentores de uns anéis circundantes que me parecem lindíssimos, todos com a particularidade de terem uma forma mais ou menos redonda. Assim, à vista de qualquer um. O meu próprio filho, detentor de um globo azul que habita a secretária do quarto, já me explicou a magia do mundo no qual eu não acredito, já me ensinou que no hemisfério norte ficam uns países e no hemisfério sul ficam outros, já me explicou que na África do Sul ninguém vive de cabeça para baixo, já me disse que a água do Oceano Polar Antárctico não cai para o vazio do nada. No mundo que eu conheço, sem ser de fotografias, livros, bolas redondas enfeitadas com desenhos de Países, no único que eu experimento para além dos limites do razoável, não há um círculo. Há montes e vales, precipícios e cavernas profundas, sítios onde há muita gente e outros onde não há nada nem ninguém, locais privilegiados onde poucos chegam, lugares inexplorados que nem eu própria conheço. A harmonia do círculo é qualquer coisa que eu não reconheço porque não a vivo, não a encontro, não posso acreditá-la nem confirmá-la como possível na natureza, muito embora me digam, de fontes seguras, que o mundo é redondo. Posso até achar que se ele é perfeito, eu, e em consequência, também deveria de ser. Também deveria, e em vez de me apresentar em protuberância, ser detentora de um círculo interno onde tudo se encontrasse devidamente distribuído, onde nada caísse nem resvalasse, onde não houvessem vazios ou cheios, onde uma cadeia alimentar perfeita e natural mantivesse a ordem e o seguimento do meu corpo. É que o meu corpo só acredita naquilo que sente, naquilo que experimenta e naquilo que toca, nos cheiros que já cheirou e nos sabores que já provou. O resto, o resto são exterioridades, sítios impossíveis, coisas que sabemos serem sem experimentarmos, muito embora as possamos validar pelo que se crê universal e pelo que construímos no imaginário, um sítio onde tudo acontece sem o rigor dos sentidos. São sempre frágeis conclusões, ainda que leis cientificas, que apenas sabemos. Os sentidos fazem-nos muita falta. Trazem tudo cá para dentro, e depois sim, somos gente que sabe do que fala.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Santos

Hoje é dia dos santos, gostaria até de me encostar a eles. Poderia entrar numa igreja, que teria de ser a da aldeia, molhar os dedos na água benta da entrada e dirigir-me com respeito, iludida pelo cheiro das velas brancas que alumiam o altar, para me ajoelhar defronte à Santíssima Trindade, a santa que guarda a terra, dizem, e ainda as gentes. No bolso levaria o terço prateado e benzido em Fátima, já amarelado pelo ror dos anos, que se encontra guardado num sítio que eu não sei qual é. Deveria eventualmente dar-lhe uso, o que guardo, guardo sempre com algum propósito, e acho até que um dia aquele terço pode vir a fazer-me falta. Os vitrais coloridos deixariam entrar este sol de Outono que me aqueceria o corpo, no exacto momento em que da minha boca sairiam orações que me levariam directa ao refúgio da Santa. Ela deve-me isso. Em tempos, ainda menina, transportei-a debaixo de chuva em ombros, vestida com uma batina azul celeste emprestada pelo pároco da freguesia, e percorri a aldeia inteirinha sem um ai e sem um ui.  Na passagem da procissão as pessoas deixavam oiro e flores penduradas no manto, oferendas devotas de quem tão bem conhece a guarida dos céus. Houve a meio da caminhada quem me quisesse auxiliar no carrego, houve até quem se oferecesse com uns olhos de conforto para me transportar a carga, mas eu não cedi. Tinha prometido a mim mesma, a mais sonora de todas as promessas, que cumpriria o trajecto todinho, nem que para isso tivesse de amargar as dores infligidas pelo andor redondo que me vergava os ombros e me comia as forças. No final do percurso, consciente que estava do preço da fé, retirei uma a uma as dádivas entregues e confiei-as  todas ao Padre António, que as recebeu glorioso da crença do seu povo. Nesse dia a minha avó ficou com um orgulho muito grande em mim. Ofereceu-me um vestido florido que eu nunca vesti e que guardei longe da vista e do corpo. Cheirava-me a velas, a flores, a oiro e a mantos de santas, e cheirava-me ainda à sua fé, que eu não conhecia, mas que sabia ser a coisa à qual ela se entregava quando precisava de colo. 

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Rimas

Lembro por exemplo as lengalengas de infância que eu ouvia até à exaustão da boca da minha avó. Ou as histórias, sempre as mesmas, as minhas. Um conforto para o corpo, vá perceber-se. Representarão eventualmente uma precoce precisão de familiaridade, de interiorização, de embalo por continuidade, uma acomodação do corpo e do espírito ao que conhecemos e nos soa tão bem. Será isso? Será que, e extrapolando, nos fazem falta sucessões de rimas que se afiguram nossas, e que repetidas nos amenizam as ânsias da alma e do corpo, e nos transportam em permanência para o que sabemos, mas que necessitamos amiúde, de voltar a saber? E a sentir?

(por rima entendo o que na vida se encontra em harmonia comigo, inteira. é pessoal e intransmissível, o que faz com que seja sempre somente minha. porém no seguimento é possível, isto quando olhos olham para dentro de outros olhos, como que numa astúcia da magia, encontrar uma única onde cabem dois corpos. e haverá lá conquista maior do que esta?)

...

Se o arrependimento matasse havia muita gente que não estaria aqui. Já se teria esvaído, feito em partículas de nada, voado numa ventaneira daquelas que não se vêm mas que se sentem com uma força capaz de arrancar corpos ao mundo. O senhor Vítor, por exemplo,  um velho alto e muito magro é uma dessas pessoas. Desde há muito que presenteia a mulher todas as segundas, quartas e sextas com arrepiados de amêndoa, celestes de Santarém, broas com nozes e cálices pequeninos de vinho do Porto que a ajudam a empurrar para baixo as gulodices trazidas em mãos e entregues na boca, as mesmas mãos que em tempos lhe deram outros tratos menos meigos, menos atentos, menos dedicados. Fala porém nisso com uma clareza de cortar a respiração. Entrega-se ao passado, revive os dias, as horas e os minutos, deixa que lhe escorra pelo sangue os actos que cometeu e encarquilha-se perante o próprio génio, diria até que quase que lhe sucumbe, tentando então e em desespero confiar-se ao perdão, não ao de alguém, mas à sua própria absolvição. Os ensaios de remissão de culpas perante nós mesmos devem de ser uma das cargas maiores que poderemos transportar em peso nos ombros. Não deve ser fácil esquecer o delito, não se deve mitigar com procedimentos abonatórios dirigidos ao alvo da culpa, não se deve afrouxar com o passar dos anos, pelo menos enquanto se encontrar nos olhos em questão o peso da pena. O peso da pena parece nascer tardiamente em alguns corpos que vieram ao mundo. Aliado à contrição é qualquer coisa que não deveria existir, por acartar dores evitáveis. O peso da pena aliado à contrição deve vergar em demasia, que só isso justifica excessivas dedicações nascidas em completa inversão dos actos, e em consciência. Este, e em particular, vive imergido em bolinhos doces e bons que adoçam a boca de uma mulher que vive encolhida num sofá de braços castanhos, enquanto o marido entra e sai, às segundas, quartas e sextas e em mais dia nenhum, sem direito a qualquer excepção, que os restantes servem para arrumar a casa, estufar ganso de vitela no tacho e zelar pelo arejamento das divisões. À quinta, invariavelmente, compra rebuçados de mentol verdes numa mercearia da cidade, que distribui à sexta por todas as pessoas pelas quais passa, quem sabe se para tentar sufocar ainda mais alguma interna questão.

domingo, 28 de outubro de 2012

...

A sala não caiu de velha nem de êxtase, aguentou-se impávida e ruidosa perante a exímia voz do Manel Cruz. Misturam-se gerações perante um mesmo propósito, o que é sempre um acontecimento de relevo. Para os novos poderá ser estranho, eventualmente sentido como uma intromissão de gente muito crescida que ainda se julga capaz de ouvir música da boa. Digo eu que seja isso, não sei bem, não me lembro e hoje já estou do outro lado. Do lado que acha o máximo os miúdos de dezoito ouvirem o que eu ouvia aos vinte, muitos anos depois. Mas os miúdos de hoje estão diferentes, ou então fui eu que tive sempre muita sorte com os amigos que arranjei na minha adolescência. Sou uma pessoa de sortes, já tenho pensado e gosto muito de continuar a sentir isso. Não me parece possível que algum dos meus amigos tivesse a insensatez  de me deixar a cambalear ao Sábado à noite, com a fácil frase chega bem a casa. E se ela não chegou, como é? E se no caminho teve azar e encontrou alguém de má vontade, como terá sido? Mas o que raio é isto de se ter dezoito anos, vestir calções muito curtos com saltos muito altos, beber muito e voltar sozinha para casa? E ainda ter uns amigos que gritam chega bem enquanto a porta do metro apita e se fecha, levando-os todos lá dentro, ficando apenas ela na estação? Não sei, não sei o que é mas soa-me a estranho. Quando eu tinha aquela idade e na pacatez da cidade de interior, o grupo colocava as raparigas em casa sem ser preciso alguém ter bebido o que quer que fosse. Era barulhento e passeava pelas ruas, uma tormenta para a vizinhança mas um sossego para os pais. Agora não sei muito bem o que sossega os pais. Os pais têm cada vez menos sossego e talvez até tenham razões para isso. Não quero generalizar, acredito que haja muitos bons amigos nos jovens de hoje. Quero até acreditar que aquilo foi uma situação pontual que por um mero acaso encontrei, onde se juntaram erros típicos da adolescência, todos convergidos num único momento. Mas é que se não foi só isso, hipótese também a considerar, alguma coisa está muito errada por aí.

sábado, 27 de outubro de 2012

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

...

Existimos, mas é dentro do nosso corpo. O que deitamos cá para fora é o que sabemos ser certo dizer, ou ainda, e indo mais longe, o que conseguimos converter em palavras. Não quero com isto indiciar que dizemos coisas despropositadas, mas só que o que sentimos é bem mais complexo do que aquilo que se pode expedir, ou até mesmo tentar dar, ordenado, em frases seguras e lineares. 

(Até mesmo porque as palavras, e agora extrapolando, nunca dizem tudo, por muito que sejamos detentores de um léxico surpreendente. Isto porque conseguimos sentir para além do razoável, cá dentro somos perfeitamente ilimitados. Da boca para fora obedecemos a padrões, o que é por si só uma valente contenção.)

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